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ARTE

Arte feita de idéias

Pesquisa no MAC -USP põe museus em xeque com arte conceitual

Como vemos a arte? Infelizmente, às portas do século 21, com olhos emprestados de 200 anos atrás, uma miopia que, ainda mais grave, se estende também aos nossos museus, os quais, em vez de seguirem a evolução do tempo e da sociedade, preferem se manter como espaços sacrossantos para a fruição do belo. A distância, é claro. Cansada desse descompasso, a pesquisadora Maria Cristina Freire decidiu que era hora de questionar não o objeto de arte, mas qual o objeto da arte. E começou a cutucar o trabalho dessas instituições em seu próprio trabalho: o Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP), ao qual está ligada há 10 anos.

“Preocupava-me como o museu tratava a produção contemporânea, em especial a chamada arte conceitual, que não se enquadra nos padrões da arte tradicional”, conta. “Esse grupo de obras, dos anos 70, estava à deriva no MAC, empilhadas nos corredores, o que, para mim, era lugar simbólico, uma espécie de limbo já que, dentro dos limites rígidos dos nossos museus, ainda preso aos velhos conceitos das belas-artes, não havia classificação possível para aquelas criações experimentais que pediam reflexão e não admiração”, analisa.

Em 1997, Cristina recebeu um auxílio à pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) no valor de R$ 11,7 mil para desenvolver o projeto A Estética do Processo, Arte Conceitual no Museu de Arte Contemporânea da USP: levantamento e pesquisa e, pouco depois, ganhou da instituição mais duas bolsas de Capacitação Técnica que garantiram o desdobramento da investigação teórica na prática da documentação, catalogação e restauro das obras que analisava. A professora acaba de lançar o resultado de sua pesquisa em livro, Poéticas do Processo: Arte Conceitual no Museu (Iluminuras, 197 págs.)

Movimento iniciado nos anos 60, nos EUA, a arte conceitual pretendia pôr em xeque a confortável arte tradicional que pouco exigia do espectador além de seu olhar admirado. Usando materiais inusitados, como lixo ou xerox, os novos criadores queriam que o público visse suas obras como reflexões sobre o mundo contemporâneo, articulando estética às questões sociais e políticas.Ainda está vago? Bem, os próprios estudiosos têm dificuldades em classificar essa modalidade artística cuja base, no entanto, está explícita em seu nome: conceito, idéia, para além da forma. “Entendo a arte conceitual como aquela em que vigora a preponderância da idéia; que tem uma atitude crítica frente às instituições, em especial, os museus; que crê no uso de meios transitórios e materiais precários (como livros de artistas, fotos, vídeos, filmes superoito, papéis, lixo, etc.); e utiliza canais alternativos de circulação, como o correio, no caso da arte postal”, define a pesquisadora.

No Brasil, os principais nomes associados à arte conceitual são: Regina Silveira, Carlos Zílio, Genilson Soares, Júlio Plaza,entre outros. Mas não havia barreiras para a expressão. “Graças aos esforços de Walter Zanini, criador do MAC, os criadores nacionais entraram em contato com os meios internacionais e tiveram a possibilidade de experimentar novas técnicas”, diz. Eis a chave do estudo de Cristina: retomar essa função primordial dos museus, entendidos como espaço de experimentação e não de sacralização.

Para tanto, Cristina iniciou um levantamento do acervo do MAC-USP, entrevistando os artistas daquele período (a fim de entender o impacto e as intenções do movimento conceitual) e partindo, em seguida, para a prática, identificando obras, iniciando a sua catalogação e conservação. Os resultados foram surpreendentes. “Descobrimos, por exemplo, fotos valiosíssimas do polonês Krzysztof Wodiczko, que, hoje, o museu não teria condições econômicas de comprar e de que o próprio artista, quando esteve aqui no ano passado, nem mais se lembrava”, conta.

“São testemunhos de tempos em que se pensava o museu como um fórum de debate e não de venda de camisetas e marketing cultural”, critica a professora. E que, ainda assim, num curioso paradoxo, lotavam as exposições. “Embora tivessem por função incomodar o espectador, levantar dúvidas e não distraí-lo, as mostras ficavam cheias”, revela. “Apenas os críticos não entendiam a arte conceitual, porque acreditavam que a arte e os museus exigiam uma atitude reverencial”, avalia Cristina.

Mas, lembra a pesquisadora, esses desencontros não foram privilégios dos trópicos. No Moma (Museum of Modern Art), de Nova York, os curadores pegaram One and Three Chairs, obra de Joseph Kosuth, que reunia uma cadeira e suas figurações artísticas em fotografia e palavras e mandaram a cadeira para uma ala do museu, a foto para o departamento de fotografia e o verbete de dicionário (as palavras) para a biblioteca. A instituição americana, aliás, foi o paradigma de museu de arte contemporânea importado para o Brasil. “Em que predomina a pedagogia visual, narrar a história da arte como uma ideologia do progresso, modelo adotado pelo MAM, do Rio, e, mais tarde, pelo MAC”, fala.

Beneficiada pelo auxílio da FAPESP, que pagou a telecinagem de 12 filmes de artistas conceituais e permitiu a compra de equipamentos e materiais para o ordenamento do acervo do MAC, Cristina pretende implementar um arquivo de arte contemporânea que abra um espaço definitivo para essas obras na instituição. “Elas são testemunhos fundamentais daquele tempo e dos esforços de um grupo de artistas em partir da práxis ritual da arte para a práxis política”, avisa. A conclusão de sua pesquisa é um duro golpe nos museus. “As instituições não acompanham as novas propostas dos criadores há pelo menos duas décadas”, assegura. Há olhos que precisam, com urgência, de um oculista para olhar o futuro de frente.

Maria Cristina Freire é graduada em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado e doutorado em psicologia social na mesma instituição. Fez mestrado em administração de museus e galerias de arte na City University, de Londres. É pesquisadora e professora do MAC-USP.

Projeto
A Estética do Processo, Arte Conceitual no Acervo do Museu de Arte Contemporânea: Levantamento e Pesquisa
Investimento
R$ 11,7 mil

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