MANU MALTEZSentado ao meu lado no sofá, aproximou-se mais, e pôs a sua grande mão sobre a minha. Senti a palma da minha mão tocando uma saliência do joelho, premida agora pela mão dele – o volume assim alheado de sua mão que parecia pesar muito, sobretudo depois de algum tempo, décimos infinitesimais de segundo, em que ela se deixara cair sobre as costas da minha, desinterditada, permissiva, concedendo-se à volúpia do silêncio de minha mão embaixo cuja imobilidade era, de susto, uma imobilidade de cera.
Aí foi que ele baixou os olhos longa e tristemente sobre as costas de sua própria mão, esta que continuava sobre a minha, pressionando-a e obrigando-me a premer a esquiza protuberância no joelho. Do mesmo modo que ele, baixei os olhos para as próprias pernas: era a minha mão direita que, frouxa, largava-se sobre a minha perna direita e era a mão esquerda dele, agora dona de um peso em todos os sentidos enigmático, que pesava sobre ela. Assim como se ele detivesse um poder paranormal, mediúnico, capaz mesmo de comandar a migração da energia que acumulava em algum lugar secreto do corpo (seria o coração?) direto a algo que pensei ser um olho bem no centro das costas da minha mão, sobre a qual ele deixava cair todo o peso de sua mão esquerda, e em razão do que novamente eu sentia uma estranha saliência no joelho, alguma coisa que lembrava um nascente furúnculo ainda que dura matéria óssea ou um quisto ou ainda um aterrorizante tumor, hipótese tão sombria quanto facilmente descartada, já que tumorações doem e nem são duras como um osso; parte integrante do joelho aquilo não era.
Confesso que minha curiosidade tem sido bem maior que o meu pânico e foi por isso que continuei imóvel, como se nada estivesse acontecendo, só pelo gosto de saber aonde iria dar aquela mão sobre a minha, forçando esta para baixo onde eu comprimia o estranho calombo no exato interstício onde a rótula parecia se inserir ao osso do fêmur. Relevem-me o parco saber anatômico, mas considerem a intranqüila situação de um homem, mais curioso que covarde, moralista, ou coisa que o valha, às três horas da tarde, na sala acanhada de um dentista de subúrbio, tendo ao seu lado no sofá um homem apenas, como tantos, de meia-idade e jaqueta amarela demasiado juvenil para um homem de meia-idade, mas nada além disso – alguém provavelmente atrás de um orçamento mais em conta para uma prótese ou a banalíssima extração daquele molar que com os anos acabou ficando assim meio mole. Ao pensar no seu molar, lembrei-me logo que certamente tinha dois caninos – um em cada canto da boca. Aterrorizaram-me a súbita consciência de ambas as coisas – a da boca e a dos caninos…
Mas preferi continuar seguindo a curiosidade, melhor conselheira que o medo: o homem cruzou as pernas e num movimento nervoso, ritmado, começou a balançar o pé da perna que acabara de cruzar, olhando agora nitidamente para um pequeno quadro no lado oposto da parede e que representava o Amigo da Onça vestido de branco e segurando um boticão nas finas mãos matreiras. Nosso dentista do subúrbio era homem que ria do próprio ofício e mais de uma vez foi pego, meio bêbado, contando piada ou fofocando sobre colegas. O quadrinho ali, na sala de espera modesta, era um jeito de, rindo de si próprio, ajudar os clientes, afastando, de todo, o fantasma do medo – vício e virtude de quem precisa dos dentistas, e nem só dos dentistas. Tive pena do homem e até me solidarizei com ele – claro, fácil, como não pudera perceber até então -, a mão, pesada, sobre a minha, e o olhar fixo no quadro deveriam bastar para me comunicar o terror que sentia na espera ansiosa de nosso fiel Dr. Nildo. A mão presa embaixo da dele, mexi com ela, assim num movimento cordial, como quem diz deixa isto pra lá, não há razão para temores, o Nildo é a fina flor da odontologia moderna e, depois, estamos à beira do terceiro milênio, os anestésicos continuam operando milagres e se alguém ainda sente dor na cadeira de um dentista deveria simplesmente procurar outro dentista, não mais que isso. Ele pareceu não haver entendido a mensagem – a grande mão em garra deu-me dois súbitos e precisos apertões um de cada lado de minha mão sob a dele. Estremeci, mesmo porque agora ele tinha descruzado as pernas mas batia, ainda ritmado, ambos os pés sobre o assoalho de madeira, com um ruído capaz de ser ouvido até, não duvidem, pelo dentista e seu cliente, nos intervalos da broca enervante. E se fosse um maníaco? Um serial killer? Mas o diabo era que ele, em hipótese alguma, se mostrava misterioso ou sombrio, o que me pareciam condições inextricáveis para a existência de maníacos ou serial killers. Prossegui dando razão ao meu impulso primeiro, que é sempre o mais nobre e o mais fino e o mais delicado e que me parece protegido de todo o mal, porque é ele sempre quem determina, autoriza e, por fina instância poética, acaba instaurando a ordem na atmosfera nem sempre serena do meu cotidiano.
Não me ocorre quanto tempo já passara, até aí, mas calculando em retrospecto, creio não ter transcorrido além de cinco, no máximo dez minutos, instante em que fui tomado por uma decisão quando principiava a me sentir desconfortável – muito mais a mão – que, a esta altura, já sentia no dorso o meloso suor do homem (seria diabético?). A decisão consistia em não seguir adiante no que eu chamava de curiosidade, caso ele, o homem, encostasse a sua perna na minha. Mas como não era essa espécie de intimidade que o animava, ele continuou perfeitamente sentado, os pés agora ritmados no assoalho, mas de modo intermitente – coincidindo o estalar da ponta dos sapatos com a broca do dentista, uma vez que ambos os ruídos atravessavam o frágil tabique separando a ante-sala do consultório propriamente dito. De novo senti piedade de nós – a broca do Dr. Nildo Arantes como que riscava a tarde, levantando o pó feito só de osso queimado. Os pés ritmados no chão faziam sentido – não suportava o barulho da broca, como se fosse uma coisa assim, para além de toda força humana.
Dois ou três minutos se seguiram a estas considerações e devaneios, quando, sentindo que o dentista, para variar, estava de novo atrasado, ameacei apanhar uma revista na mesinha de centro, o que, claro, eu deveria fazer com a mão que o homem premia contra o meu próprio joelho. E foi aí que sofri a trágica consciência de que a protuberância, fosse o que fosse, tinha desaparecido e o que eu tocava era, acreditem, arrepiante – nem o tecido do jeans eu tocava mais… Sem coragem de baixar os olhos e muito menos deitá-los ao vizinho de sofá, senti nitidamente que o que a palma de minha mão apertava era o puro osso do fêmur, esqueletizado, no exato interstício do joelho, esse engenho admirável. Debitando tudo ao inaudito daquela mão sobre a minha, não desisti de apanhar a revista e quando tentei libertar a minha mão de sob a sua grande mão (assassina?) observei que o homem aproximava de meu rosto o seu rosto. Jamais esquecerei o arrepio que me percorreu do cóccix ao cerebelo, uma espécie assim de imprevista epifania, que não era, aceitem, do desdobramento de qualquer erotismo. A rigor nem erotismo era.
Desistindo da revista, tentei lhe entrever, com o canto do olho, a sombra bigoduda e só lhe enxerguei os olhos aterrorizados e tomei da outra mão, a esquerda, até então inútil, e levando-a ao dorso da mão dele, ficamos uma mão sobre outra, três, assim juntas, as mãos, estoicamente amigas e solidárias.
Em retribuição, o homem não teve medo e pôs sobre o dorso, agora de minha mão esquerda, como um triunfo, também a sua outra mão – e percebi, antes da vertigem da qual só acordei mais tarde, assistido pelo dentista e um seu vizinho farmacêutico, dois dedos apenas, o médio e o indicador, numa mão curva e escura e magra, de pêlos ríspidos como espinhos, agarrando-se ao dorso de minha mão fatigada feito uma pinça ou a cola do escorpião, sendo que as unhas, de ambos os dedos – longas e afiadas – constituíam duas garras de resplendente esmalte incolor.
Ainda perguntei por ele, mas o velho dentista só me respondeu com outra pergunta, se eu me referia ao homem de jaqueta amarela, e se era aquele lá, ó, que vai ali, já longe, e, a passos lentos acaba de dobrar a esquina em direção à estação-tubo onde tomará o expresso de Santa Cândida?
Digo que sim, corro à rua e chamo por ele, inutilmente chamo por ele; mas por mais que eu chame, já é tarde, não adianta, ele não vai me ouvir jamais.
Wilson Bueno, escritor, autor, entre outros livros, da reunião de contos-blues Bolero’s Bar e dos bestiários Manual de zoofilia, Jardim zoológico e Cachorros do céu.
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