Como se escreve a história de um quilombo? E como aprender algo novo sobre Palmares, o mais famoso e duradouro entre eles? Até agora, estudiosos privilegiaram como fonte histórica a cópia de um relato sobre a expedição do capitão Fernão Carrilho (c.1640-c.1703) contra os quilombolas em 1678. A chamada “Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco” foi publicada de forma anônima somente no século XIX e ganhou novos sentidos na interpretação de historiadores, antropólogos e ativistas negros comprometidos com diferentes projetos de nação. Foi tal documento, portanto, que ajudou a fixar alguns “fatos históricos” a respeito de Palmares, como a geografia dos mocambos, seu tamanho e mesmo os nomes de líderes como Zumbi, que governou Palmares entre 1678 e 1695. Em Guerra contra Palmares: O manuscrito de 1678, a historiadora Silvia Hunold Lara e o filólogo Phablo Roberto Marchis Fachin questionam a estabilidade do que sabemos sobre Palmares, chamando a atenção para o manuscrito seiscentista original e seu fascinante processo de transmissão ao longo do tempo.
Em edição cuidadosa da Editora Chão, a “Relação” localizada por Silvia Lara no arquivo da Torre do Tombo em Portugal vem transcrita na íntegra ao lado da versão que lhe deu origem, hoje guardada na Biblioteca de Évora. A grafia atualizada, imagens e notas explicativas sobre os termos de época ajudam o leitor a navegar o contexto em que as narrativas foram produzidas. O livro traz também mais 14 documentos inéditos sobre a história dos mocambos palmarinos produzidos entre 1671 e 1691 em Pernambuco e Lisboa. Completa o volume um posfácio caprichado que oferece a um público amplo a rara oportunidade de explorar os processos de criação e circulação do manuscrito de 1678.
Lara e Fachin atribuem a autoria do que renomeiam como “Relação da ruína dos Palmares” a Antônio da Silva, vigário da matriz do Recife de 1658 a 1697. Assim, aprofundam a análise da ode às forças contratadas pelo governador Pedro de Almeida para derrotar os escravizados fugidos como “instrumento político” a serviço do projeto colonial português. Na visão do vigário, a erradicação dos “palmares, cercas ou mocambos” era uma continuação das guerras do século XVII: vencida a invasão holandesa (1630-1654), cabia, então, lutar contra o inimigo interno que ameaçava destruir a capitania de Pernambuco. Apesar do tom oficial, a “Relação” deixa transparecer informações sobre a organização política, social e econômica dos escravizados, a origem comum de muitos deles em Angola e a diversidade étnica das forças que combateram os palmarinos.
A Relação percorreu caminho desconhecido do Recife até Lisboa no século XVII e caiu no esquecimento até sua publicação na Revista do IHGB em 1859. A partir daí, com o crivo de autenticidade fornecido pelo endosso da monarquia brasileira, o manuscrito da Torre do Tombo se tornou a base dos estudos sobre Palmares. O cotejo com o original de Évora do qual é uma reelaboração, porém, revela os silêncios da narrativa canônica de Antônio da Silva. “Textos são produzidos e lidos por gente”, lembram Lara e Fachin, de modo que perspectivas alternativas são sempre uma possibilidade. Um exemplo vem da negociação dos termos de paz entre quilombolas e o governo colonial em 1678. Guerra contra Palmares inclui a transcrição do papel que os seguidores de Ganga Zumba (? – 1680) receberam naquele ano, concedendo-lhes a mercê de morar no aldeamento de Cucaú e a emancipação das crianças nascidas em Palmares. Salta aos olhos o fato de que foi um sargento do terço dos Henriques, milícia de homens de cor formada durante as guerras contra os holandeses, quem, numa sociedade quase totalmente analfabeta, redigiu o acordo a ser lido em voz alta em Palmares. Descritos como “bárbaros” por Antônio da Silva, afrodescendentes emergem, então, como autores da história brasileira enquanto ainda grassava (ou desgraçava) a escravidão. No jogo entre letramento e oralidade, entre documentos originais e suas releituras, Guerra contra Palmares é uma contribuição bem-vinda para estudos sobre a resistência negra no Brasil e sobretudo um convite a repensar a importância dos quilombos para as histórias que continuamos a contar sobre o Brasil.
Isadora Moura Mota é professora assistente na Universidade Princeton.
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