Em cuidadosa edição da Chão Editora, Francisco Doratioto, professor do curso de história da Universidade de Brasília (UnB), referência nos estudos sobre a Guerra do Paraguai, apresenta-nos uma fonte primária de grande força narrativa – as memórias escritas por uma mulher que viveu a violência do confronto entre Estados nacionais vizinhos e da proscrição política.
Nascida na França, Dorothée Duprat de Lasserre imigrou com a família para o Paraguai aos 10 anos, no contexto dos esforços de aproximação entre os governos dos dois países, encabeçados, na década de 1850, por Napoleão III e Carlos Antonio López. Francisco Solano López, filho primogênito do presidente paraguaio, nomeado ministro da Guerra e Marinha, foi enviado a Paris com esse propósito, e lá encontrou um imperador motivado a construir pontes com uma América “Latina”. Entre outros, assinou-se um acordo para a vinda de imigrantes franceses que formariam uma colônia agrícola, precária e de vida efêmera, às margens do rio Paraguai.
Aos 14 anos, Dorothée casou-se com o conterrâneo Narcise Duprat, comerciante em Assunção. O casal viveu com considerável conforto no ambiente sufocante da cidade em que, desde os tempos de Gaspar Rodríguez de Francia, líder da independência e ditador longevo, abundavam espiões na espreita de sinais de deslealdade. Com a ascensão de Solano López ao poder, sucedendo seu pai, Duprat chegou a ser preso por dívidas que envolviam a poderosa primeira-dama, a irlandesa Elisa Alicia Lynch.
Em dezembro de 1864, em meio a disputas políticas na região platina e pelo direito de navegação de rios que dividiam e interligavam os territórios nacionais na América do Sul, tropas paraguaias invadiram a província de Mato Grosso e, em abril do ano seguinte, a província de Corrientes. Brasil e Argentina aliaram-se em reação, trazendo consigo o Uruguai.
A guerra não tardou a pender contra o Paraguai. Nos campos político e simbólico, Solano López empenhou-se em inflar os ânimos contra os inimigos externos e internos. Na família de Dorothée, seu pai, o irmão e o marido foram presos e executados como traidores. Dorothée acompanhou a prisão de cada um deles, mas só saberia de suas mortes ao final da guerra.
Desde 1868, com a evacuação de Assunção, ela e sua mãe foram condenadas a viver como destinadas, ao lado de outras mulheres forçadas a vagar pelo país prestando serviços reclamados pelo governo, buscando alimento na mata e nos campos devastados, negociando bens que lhes restavam com indígenas e autoridades locais, enquanto alternavam lares provisórios com longas marchas sob o sol quente e aguaceiros. Saída de um rastro de mortes por inanição e doenças, Dorothée conseguiu chegar ao quartel-general do Exército imperial brasileiro. Seu breve encontro com o conde D’Eu foi registrado em documentos localizados por Doratioto. Partiu do médico e coronel Francisco Pinheiro Guimarães a sugestão para que ela escrevesse “algumas notas” sobre sua experiência.
O manuscrito em espanhol foi finalizado em 1870 e enviado pela autora para publicação no jornal argentino La Nación. Um capitão do Exército brasileiro elaborou uma transcrição do original, guardada pelo governo imperial e traduzida ao português para a presente edição. O texto também contou com versão em inglês e, tardiamente, foi publicado no Paraguai.
Seu testemunho lança luz sobre muitas dimensões de uma guerra – ao lado dos horrores, os gestos de solidariedade cotidianos, as estratégias de resistência. Segue-se a ele o posfácio primoroso de Doratioto, no qual se discutem a guerra, os usos políticos do passado pela ditadura de Alfredo Stroessner no século XX, os debates historiográficos das décadas recentes. Particular atenção é dada à participação e à sorte das mulheres no conflito. As “notas” de uma sobrevivente que nos chegam do século XIX constituem uma exceção, pois a maioria das mulheres no Paraguai não tinha acesso ao letramento, tampouco a papel e tinta.
O organizador encerra o livro seguindo os passos de Dorothée na Argentina, onde morreu octogenária, casada pela segunda vez e mãe de uma menina, envolvida na fundação de uma biblioteca popular e de uma escola primária. Entre o documento e o estudo que o acompanha, é uma leitura que se faz com avidez e se rumina lentamente.
Gabriela Pellegrino Soares é professora de história da América contemporânea na Universidade de São Paulo (USP).
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