Fruto da inteligência provocativa de Leda Tenório da Motta, Cem anos da Semana de Arte Moderna reflui à cisão modernista de origem entre Oswald de Andrade (1890-1954), do qual é partidária confessa, assim como os concretistas, e Mário de Andrade (1893-1945), cujo grande apoiador seria Antonio Candido (1918-2017), seguido por vários acadêmicos uspianos.
Leda considera superior a escola de Oswald porque vê nela a crítica e a criação andando juntas, enquanto, do lado marioandradino, sobressairia o dedo recriminador dos críticos contra os criadores, a medir as suas obras em termos de ajustes edificantes, nacionais e sociais. Isso se daria como decorrência lógica do esquema da formação candidiana, em cujo sistema, baseado na tríade autor-obra-público, o termo interno é sempre o mais espremido. Vale dizer, a linguagem acaba sendo submetida à vida do autor e à condição da nação; no caso brasileiro, a literatura teria infalivelmente de prestar contas à nacionalidade transplantada e ao atraso econômico.
Idêntica tentativa de contenção da “liberdade futurística das palavras” no “leito de Procusto” da pedagogia nacional, assim como de repulsão das vanguardas por uma “angústia sociológica de enquadramento”, estaria evidente na crítica de Roberto Schwarz ao poema “Pós-tudo”, de Augusto de Campos, publicado em 1985. O “arremedo paródico”, que reacende a “blague de Oswald” e a “imitação jocosa de Joyce”, sofre uma “crítica professoral”, típica do “país das ideias fora de lugar”, onde as vanguardas serão sempre “etéreas e alienadas, pecado e palavrão”.
Outro ponto-chave da dicotomia, segundo Leda, está em O sequestro do barroco, livro de Haroldo de Campos (1929-2003), saído em 1989. Nele, Haroldo critica a perspectiva histórica linear e teleológica de Formação da literatura brasileira, de Candido, que postula uma origem simples e convencionalmente datada para a literatura brasileira, que apenas pouco a pouco vai se tornando complexa, até atingir o seu ponto pleno no modernismo. Para Haroldo, contudo, a origem da literatura brasileira é “vertiginosa”. Com Gregório de Matos (1636-1696), o padre Antônio Vieira (1608-1697) e o “barroco”, já nasce adulta, plena esteticamente, valendo mais contar uma história com momentos de ruptura e transgressão do que de continuidade e formação.
Sem querer me meter no assunto, mas estando há anos metido nele, sempre me pareceu estranho que num texto de crítica ao nacionalismo de Candido haja também a reivindicação de um barroco “nosso” e de um Gregório precursor da comicidade malandra da “nossa literatura”. Fico em dúvida se é pior excluir o “barroco” dos estudos sob a alegação de estar ausente da formação do país ou incluí-lo, como antecipação da malandragem nacional.
Mas tudo isso é bem conhecido. O aspecto mais surpreendente do derby construído no presente livro é o que opõe um Oswald, “feminista avançado”, a um Mário, “efeminado viril”, regulado pela “lei do pai”. Para Leda, Oswald seria afim dos “desconstrucionismos”, “filosofias não sistêmicas”, “pensamentos pós-coloniais”, “teorias de gênero” e “identidades sedentárias”, ou seja, um irmão e semelhante do século XXI, muito mais do que o Mário parado no tempo iluminista-romântico-marxista.
Numa visada psicanalítica, Leda ainda remete esse ponto da dicotomia a outro, a do “totem e tabu” freudiano, no qual “o macho em posição de mando” é devorado pelos filhos, “revoltados contra a proibição da promiscuidade sexual”, e ainda a “interdição das mulheres do clã”. O que ela também traduz da seguinte forma: contra a “escolástica do amor infeliz” de Mário, levanta-se Oswald, disposto à alegria do “repasto canibalesco”, do qual resultaria uma “familiaridade” não burguesa, “fusional” e “desterritorial”. Como se percebe, os convocados a tomar partido são agora Jacques Lacan (1901-1981) e Julia Kristeva, aptos a reinterpretar a vertigem do “novo afloramento do desejo”, que é também “redesignação dos corpos” e “travessia trans”.
Concorde-se ou não com os argumentos, o ato ilocucional que o efetua mostra que o fôlego do time oswaldiano continua ágil em devorar novas trincheiras. Agora é ver como reage o adversário, mas já está claro que a animação paroquial vai passar pela capacidade de anexação dos estudos culturais e da militância identitária.
Alcir Pécora é crítico literário e professor de literatura na Unicamp. Publicou Máquina de gêneros (Edusp, 2001).
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