No final do século XIX e início do XX, um médico pernambucano seguiu uma trilha parecida à de outros que procuravam novas formas de tratar os distúrbios psíquicos, como, na Europa, o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939). O também neurologista e psiquiatra Antônio Austregésilo Rodrigues Lima (1876-1960), que assinava suas obras como Antônio Austregésilo, explorou o que mais tarde se tornaria a psicoterapia e deu contribuições teóricas críticas à psicanálise, como o aprimoramento do diagnóstico da histeria, então largamente atribuída às mulheres, diferenciando-a de outros problemas psíquicos ou físicos.
Como sexólogo, queria entender o que acontecia na vida noturna do Rio de Janeiro. “Ele circulava pelos cabarés, conversava com as prostitutas e se interessava pela vida como ela é”, diz o psiquiatra Paulo Dalgalarrondo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos autores de um artigo sobre o médico pernambucano publicado em julho de 2020 na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.
Austregésilo escreveu livros em linguagem relativamente simples sobre sexualidade, como Neurastenia sexual e seu tratamento (1919) e Conduta sexual (1939), propondo a educação sexual como instrumento de controle do que via na época como desvios de sexualidade, incluindo a homossexualidade. Defendia a abordagem sem hipocrisias sobre o tema nas escolas e a disseminação ampla da sexologia para os estudantes, algo que ainda hoje causa desconforto entre setores mais conservadores da sociedade brasileira.
Austregésilo era pardo e, diferentemente de outros afrodescendentes, pôde se dedicar aos estudos – o pai era advogado. Aos 16 anos, mudou-se do Recife para o Rio de Janeiro para cursar medicina. Seu interesse pelos distúrbios mentais se expressou em 1899 com seu trabalho de conclusão de curso, intitulado “Estudo clínico do delírio”. Na década seguinte, integrou a equipe do psiquiatra negro Juliano Moreira (1872-1933), que, de 1903 a 1930, dirigiu o Hospício Nacional de Alienados, o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil, inaugurado em 1852 no Rio de Janeiro (ver Pesquisa FAPESP nos 124 e 263).
Um dos pioneiros da psiquiatria no Brasil e um dos fundadores da Academia Brasileira de Ciências, que presidiu de 1926 a 1929, Moreira aboliu o uso de camisas de força, retirou grades das janelas dos quartos dos pacientes, criou espaços para diálogo com as pessoas em tratamento e separou adultos de crianças. Ele e Austregésilo estavam convictos da função disciplinadora e moralizante da psiquiatria. Defendiam o higienismo, que apregoava o saneamento das cidades para evitar epidemias, e recomendavam a higiene mental e física para prevenir distúrbios mentais.
Austregésilo também tratou da eugenia, estratégia por meio da qual se pretendia melhorar a espécie humana esterilizando indivíduos considerados inaptos, como os portadores de doenças hereditárias, ou impedindo a reprodução das então chamadas raças inferiores. Em Conduta sexual, ele defendeu a esterilização penal de criminosos reincidentes, mas se opôs à visão racista, que atribuía os distúrbios mentais à cor da pele, liderada pelo médico paulista Renato Kehl (1889-1974), que fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo.
Crítico de Freud
Em 1912, Austregésilo se tornou o primeiro professor da recém-criada cátedra de neurologia da Faculdade Nacional de Medicina, depois integrada à Universidade do Rio de Janeiro, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Naquele ano, com seu aluno Faustino Esposel (1888-1931), publicou na revista francesa de psiquiatria L’Encéphale um artigo sobre um sintoma ainda não descrito da lesão do trato corticoespinhal. Esse conjunto de axônios, os prolongamentos dos neurônios, transmite sinais do córtex cerebral para a medula espinhal e controla os movimentos voluntários. O chamado sinal de Austregésilo-Esposel consiste em uma pressão nos músculos e nervos da região central da coxa que faz o dedão do pé erguer-se e os dedos vizinhos se abrirem em leque e pode indicar lesão na medula espinhal ou doença cerebral.
Outro trabalho pioneiro, publicado em 1928 na Revue Neurologique, dessa vez com o colega neurologista e conterrâneo Aluízio Marques (1902-1965), foi a descrição do primeiro caso de distonia (contrações musculares involuntárias) pós-traumática, com base em um paciente de 25 anos, que desde os 13 apresentava esse sintoma, resultado de traumatismo craniano ocorrido em consequência da queda de um bonde.
Austregésilo visitou centros de pesquisa médica na Europa e nos Estados Unidos e representou o Brasil em congressos internacionais de neurologia. Uma das pesquisas que orientou na Faculdade de Medicina do Rio foi a do cearense Genserico Aragão de Souza Pinto (1888-1958), cuja monografia de final de curso, defendida em 1914, foi o primeiro trabalho acadêmico sobre psicanálise no Brasil.
Eleito em 1914 para a Academia Brasileira de Letras (ABL), Austregésilo escreveu 35 livros. Em seu discurso de posse, ele alertou sobre “a tendência para o mimetismo exagerado das coisas do Velho Mundo” nos meios intelectuais brasileiros, algo que se refletia, segundo ele, num certo “desdém das nossas qualidades originais”. A psiquiatra e psicanalista Silvia Alexim Nunes concorda: “A psiquiatria brasileira era muito importada”.
Sua obra inclui escritos de psicanálise e ensaios literários. “Ele foi lido por um público mais instruído, além dos médicos, como professores, advogados, engenheiros e funcionários públicos”, afirma Dalgalarrondo, da Unicamp.
Em dois livros publicados em 1916, Pequenos males e A cura dos nervosos, Austregésilo defende o uso do diálogo no tratamento de distúrbios mentais. “Ele apostava numa terapêutica baseada na persuasão, na ideia de que o paciente poderia ser convencido a corrigir o que era considerado erro de pensamento por meio de conversas com o terapeuta”, afirma o psicólogo Mikael Almeida Corrêa, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), autor de um artigo sobre as primeiras obras de Austregésilo publicado em junho de 2024 na Revista Brasileira de História da Ciência.
Segundo Corrêa, esse foi um método precursor das atuais terapias cognitivo-comportamentais, desenvolvido pelo neuropatologista suíço Paul Charles Dubois (1848-1918). Nessa abordagem, a cura de condições clínicas como hipocondria, ansiedade, pânico e fobias se daria pela reeducação da mente e do corpo.
Austregésilo considerava a teoria psicanalítica, que começava a ganhar espaço no Brasil no início do século XX, apenas como mais uma entre várias alternativas interessantes de tratamento dos distúrbios psíquicos. Seu olhar crítico o levou a criar uma abordagem semelhante à de Freud sobre a estrutura da mente humana. Para o médico austríaco, a psique pode ser compreendida como a interação entre o id (o inconsciente, no qual residiria a libido, formada pelos desejos e instintos), o ego (a base da personalidade consciente, que se ajusta aos desejos) e o superego (a instância da consciência moldada pela moral e pela repressão dos desejos).
O médico pernambucano propôs uma estrutura alternativa, formada pelo que chamava de fames (fome, em latim), libido e ego. A fames corresponde às necessidades de sobrevivência mais básicas, relacionadas à própria nutrição, descritas por ele como “força interior da matéria viva” no livro Fames, libido, ego, publicado em 1938. Ele concebeu a libido de forma mais estritamente correspondente ao desejo sexual, enquanto Freud a via como motivadora de desejos para além das necessidades sexuais. Por fim, Austregésilo via o ego como a estrutura que articula essas duas motivações básicas.
No livro de 1938, apesar de celebrar o que considerou “a visão genial de Freud”, Austregésilo fez críticas à psicanálise, que chamou de “doutrinas dogmáticas”. Segundo ele, os freudianos pensavam que tudo podia ser explicado pelas chaves psicanalíticas do “sábio de Viena”. Também tinha reservas quanto ao suposto papel predominante da libido nos distúrbios psíquicos: “Estou de pleno acordo que na espécie humana a libido apresenta na origem das neuropsicoses papel muito saliente, mas não sou exclusivista como querem Freud e seus adeptos”.
Em um artigo sobre o estado da arte da psiquiatria, publicado em 1945 no Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, ele escreveu: “Corpo e espírito formam uma unidade fisiopatológica. O clínico deve ter sempre em mente que há raízes psíquicas nas enfermidades orgânicas, como há amiúde nas enfermidades funcionais elementos orgânicos”.
Suas críticas não tiveram uma influência duradoura entre os psicanalistas brasileiros de meados do século XX. Segundo Nunes, os higienistas, incluindo Austregésilo, adaptaram o que viram de interessante na psicanálise – a ideia de inconsciente e a possibilidade de poder acessá-lo de alguma forma – numa chave moralizante e pedagógica, voltada para a correção dos comportamentos, algo que não estava entre os objetivos da psicanálise freudiana.
As falsas histerias
Um distúrbio que recebeu muita atenção dos psiquiatras no final do século XIX e começo do XX foi a histeria. Caracterizada geralmente por crises psíquicas, desmaios e tremores, era vista desde a Antiguidade como algo próprio das mulheres – hysteros é a palavra grega para útero. No século XIX, diagnósticos de histeria serviram a um processo de controle médico e disciplinarização do corpo feminino, gerando uma onda de internações de mulheres cujo comportamento não era o esperado do papel de esposa e mãe, segundo a moral predominante. No início do século XX, embora fossem atribuídas causas neurológicas ou psíquicas à histeria em detrimento das vinculadas ao aparelho reprodutor feminino, o suposto distúrbio ainda era fortemente associado às mulheres. Além disso, os diagnósticos eram frequentemente feitos de maneira pouco rigorosa.
Insatisfeito com os exames imprecisos, Austregésilo distinguiu histeria de síndrome histeroide ou pseudo-histeria e argumentou que muitos casos de histeria eram, na verdade, outros problemas físicos ou psíquicos, como demência precoce, tumor cerebral ou intoxicação alcoólica. “Ele limpou o terreno e tornou os diagnósticos de histeria mais precisos”, diz Nunes. “Nisso, teve sucesso e foi muito influente.” Segundo a psicanalista, Austregésilo não seguiu a tendência dos psiquiatras da época em caracterizar as mulheres que apresentavam sinais de histeria como degeneradas, embora estivesse convencido do ideal higienista de educação para um comportamento mais próximo da moral vigente.
Dalgalarrondo observa que Austregésilo mostrou rigor ao estudar as eventuais relações entre doenças infecciosas, como a sífilis, e alterações psíquicas associadas a elas, como uma infecção do sistema nervoso central conhecida como neurossífilis. Ainda hoje não se sabe, por exemplo, se as alterações mentais seriam o efeito direto da ação de um patógeno ou indireto, resultante de um desequilíbrio das defesas do organismo. “Apesar de não contar com o conhecimento atual, ele não era simplório, como se poderia supor, e tinha consciência da alta complexidade das relações causais investigadas”, avalia o psiquiatra da Unicamp.
Austregésilo foi eleito deputado por Pernambuco em 1921. Reeleito três vezes, exerceu o cargo até a Revolução de 1930. Ao pesquisar sobre a história da Casa do Brasil na Cidade Universitária de Paris, inaugurada em 1959, a historiadora Angélica Muller, da Universidade Federal Fluminense (UFF), encontrou um projeto anterior do edifício que retrata o prestígio do médico pernambucano.
Em 1926, Austregésilo viajou à França para mediar as negociações diplomáticas para a construção de um prédio que abrigasse estudantes brasileiros em Paris. “Quando voltou, propôs um projeto de lei pedindo a construção de uma casa do estudante brasileiro na capital francesa”, conta Muller. O projeto foi aprovado naquele mesmo ano e o financiamento sancionado pelo então presidente Washington Luís (1869-1957). Em 1930, porém, quando Getúlio Vargas (1882-1954) assumiu o poder, foi esquecido. A ideia de construir a Casa do Brasil em Paris foi retomada, em outros moldes, apenas na década de 1950.
Artigos científicos
AUSTREGÉSILO, A. Os progressos da psiquiatria. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana. v. 24, n. 12. dez. 1945.
CORREA, M. A. Havia um “Freud brasileiro”? Notas biográficas e análise teórica das primeiras obras de Antônio Austregésilo. Revista Brasileira de História da Ciência. v. 17, n. 1. p. 325-44. jan.-jun. 2024.
DALGALARRONDO, P. et al. Das psicoses associadas a infecções no Brasil: 100 anos da contribuição psicopatológica de Antônio Austregésilo. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental. v. 23, n. 3. jul.-set. 2020.
NUNES, S. A. Histeria e psiquiatria no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. v. 17, supl. 2. p. 373-89. dez. 2010.