A peste negra, causada pela bactéria Yersinia pestis, é conhecida pelo surto que matou dezenas de milhões de pessoas entre 1347 e 1351, na Idade Média, quando foi transmitida por ratos e pulgas. Antes, havia registros de caçadores-coletores infectados com uma ancestral da doença há 5 mil anos na região onde agora é a Letônia, no norte da Europa, e de algumas ondas menores que ocorreram em todo o continente europeu durante a Idade do Bronze e no final do Neolítico, há cerca de 4 mil anos. Assim, arqueólogos e geneticistas se surpreenderam quando encontraram os esqueletos de diferentes famílias do Neolítico com sinais da infecção, denotando um surto mais extenso e prolongado. Eles analisaram 108 esqueletos de nove sítios arqueológicos da Suécia e Dinamarca e publicaram os resultados na revista Nature em 10 de julho.
Os esqueletos estavam sob grandes estruturas de rocha que poderiam servir como locais funerários, os megalitos. Os mortos foram sepultados entre 5 mil e 4,9 mil anos atrás, durante o chamado declínio do Neolítico, quando houve um recuo no aumento da densidade populacional conquistado até ali graças à agricultura, à redução da vida nômade e aos avanços tecnológicos.
Um objetivo dos pesquisadores era entender se a queda populacional estava relacionada à peste. “Os novos dados mostram que a infecção foi bem distribuída e perturbadora. É uma evidência circunstancial de que uma epidemia pode ter causado o declínio”, disse a Pesquisa FAPESP o geneticista dinamarquês Frederik Seersholm, pesquisador em estágio de pós-doutorado na Universidade de Copenhague e primeiro autor do estudo. Dos 108 esqueletos analisados, 17% tinham sinais da doença. É um número significativo, ainda mais quando considerada a extensão de território entre todos os sítios. Em uma única família, escavada no sítio Frälsgarden, 12 dos 38 integrantes analisados estavam infectados.
A pesquisa também ampliou o conhecimento sobre as variantes da bactéria. “Quando começamos o estudo, só conhecíamos um genoma de peste para o período final do Neolítico, que é o Neolítico Tardio Idade do Bronze [LNBA]”, conta Seersholm. Nos sítios de Frälsegarden e Hjelmars Rör, separados por 8 quilômetros de distância, eles descobriram que pelo menos três ondas afetaram as famílias ao longo de 120 anos: A, presente logo nas primeiras gerações, B e C, que afetaram da terceira até a quinta geração de agricultores.
“É como o coronavírus, que teve as variantes alfa, ômicron e outras. Mas ainda não dá para saber as diferenças de letalidade e outros aspectos. Temos que ser cautelosos”, explica o geneticista brasileiro Thomaz Pinotti, que concluiu em fevereiro o doutorado em titulação dupla na Universidade de Copenhague e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Também não é possível saber quais sintomas esses agricultores tiveram.
Um desafio foi coletar as moléculas de DNA minimizando a destruição das amostras. Pinotti, acostumado a lidar com a extração de material genético antigo degradado pelo clima quente e úmido das Américas, ficou responsável por essa tarefa. Os métodos que ele usa são demorados, mas permitem extrair mais moléculas de material genético, e foram por isso selecionados por Seersholm.
Ao listar os genes das bactérias, os pesquisadores viram que aquela linhagem da peste não tinha um deles, conhecido como ymt, presente em exemplares mais recentes de Y. pestis e que garante a sobrevivência no estômago de pulgas. “Isso significa que a pulga não foi o meio transmissor. Pode ter sido de humano para humano, porque a bactéria se aloja no pulmão ou em piolhos”, pontua Seersholm. A parasitologista Daniela Leles, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que não participou do estudo, concorda com a hipótese: “Mesmo que a pulga seja o meio mais conhecido, isso não impede que ela seja passada por piolhos ou por aerossóis, no caso de humanos”.
Além de identificar a praga, os arqueólogos conseguiram, pela comparação de genomas dos agricultores, relacionar graus de parentesco entre os sepultados de quatro dos nove sítios: Frälsegarden, Hjelmars Rör, Landbogarden and Rössberga, todos na região de Falbygden, sudoeste da Suécia. Para Pinotti, é nesse encontro que reside o valor da pesquisa. “Reconstruções familiares e estudos de transmissão da peste são difíceis, mas outros pesquisadores já haviam feito essas investigações separadamente. A novidade é conectar as duas coisas, ainda mais em um tempo tão antigo.”
A árvore genealógica reconstruída para o sítio Frälsegarden contou com 61 indivíduos (seis gerações), dentre os 38 analisados e 23 inferidos, de uma família patrilinear e patrilocal – em que os descendentes homens herdam os bens e não costumam migrar, diferentemente das mulheres. A tradição era seguida tão à risca que, com a exceção de uma mulher encontrada no sítio, todas as outras eram aparentadas a outros grupos. A única geneticamente ligada às pessoas do local constituiu família com um primo de terceiro grau.
Os sepultamentos seguiram a lógica da árvore genealógica. Em Frälsgarden, o megalito é um corredor que leva ao centro de uma câmara horizontal com caminhos para a direita (norte) e esquerda (sul). Os mais antigos foram colocados a norte, enquanto gerações mais recentes foram enterradas no centro-sul. A exceção foi uma jovem menina que, além de não ter parentesco com ninguém da família, foi enterrada primeiro em outro lugar, depois exumada e levada à câmara de pedra, onde os ossos, já um pouco desarticulados, foram depositados na parte centro-norte. Os homens estão distribuídos de forma mais uniforme e as mulheres, concentradas ao centro do megalito.
“Se queremos nos preparar para o futuro, é melhor olhar para o passado”, defende Seersholm. Afinal, mesmo que controlados, ainda existem casos da peste hoje em dia, inclusive em países vizinhos ao Brasil, como o Peru. “É um grande problema médico, porque além de ser contagiosa, a taxa de letalidade é alta se a doença não for detectada logo no início”, acrescenta Leles.
Essa possível utilidade prática contribuiu para a realização do trabalho: Seersholm afirma que, sem as preocupações surgidas com a pandemia de Covid-19 em 2020 e 2021, o acesso à verba para financiar o projeto teria sido mais difícil.
Artigo científico
SEERSHOLM, F. V. et al. Repeated plague infections across six generations of Neolithic farmers. Nature. On-line. 10 de jul de 2024.