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ESPELEOLOGIA

Bactérias, construtoras de cavernas ferríferas

Atividade microbiana permite que a água escave rochas muito resistentes

Caverna do quadrilátero ferrífero em Minas Gerais: rocha é mais dura do que as calcárias, mais comuns

Augusto Milagres / Instituto Prístino

Se você visitasse uma caverna formada em rocha de minério de ferro, provavelmente teria de se espremer para passar pela entrada, geralmente mais estreita que em outros tipos de cavidade. Adentrando sua escuridão, as chances de encontrar grandes lagos ou rios subterrâneos seriam muito baixas. Ao olhar para o teto e para o chão, seus olhos não deveriam encontrar formações como estalactites e estalagmites, raras nesses ambientes subterrâneos ferruginosos.

Essas particularidades ocorrem porque as formações de ferro são menos moldáveis pela ação da água do que as rochas carbonáticas, como os calcários, que abrigam a maioria das cavernas do Brasil. E, há pelo menos 30 anos, pesquisadores procuram entender como, apesar das adversidades, elas conseguiram se expandir nesses ambientes. São cerca de 2.517 cavidades, 13,7% das 18.358 cavernas catalogadas no país, segundo o Anuário do patrimônio espeleológico brasileiro ‒ 2018. “Como transformar uma rocha super-resistente, praticamente insolúvel, em solúvel?”, questiona o geólogo Augusto Auler, do Instituto do Carste em Belo Horizonte, Minas Gerais, que se debruça sobre o assunto desde o início dos anos 2000.

O papel vital dos microrganismos nesse processo é uma possibilidade aventada desde os anos 1980, mas ainda não havia evidências fortes o suficiente para explicá-lo. Agora um estudo conduzido no Quadrilátero Ferrífero, que abarca a região metropolitana da capital mineira, pode ter decifrado o enigma: bactérias que vivem dentro das paredes dessas cavernas transformam o óxido de ferro de fase Fe(III), mais densa e quase insolúvel, em óxido na fase Fe(II), mais solúvel.

“Essas bactérias solubilizam o ferro dentro da rocha. Quando perfuramos as paredes de três cavernas, vimos que havia um material aquoso, como se fosse um tipo de barro, que chamamos de sub muros”, conta Auler – o termo vem do latim para “atrás da parede”. O processo está detalhado em um artigo publicado em outubro de 2022 na revista Scientific Reports, escrito em conjunto com pesquisadores das universidades de Akron e de Berkeley, nos Estados Unidos. Entre eles a microbiologista Hazel Barton, que, ao lado do geólogo brasileiro, investiga a ação desses microrganismos desde 2013.

Esse processo é escondido pela camada externa da parede. Como as bactérias vão tornando a rocha mais porosa, a água pluvial, que se torna ácida com o gás carbônico atmosférico (CO2), consegue se infiltrar nas pedras e, ao longo dos milhares de anos, promove seu colapso, abrindo ou expandindo espaços. Essa proposta de mecanismo intramuros de formação de cavernas é uma novidade na espeleologia, ramo da ciência que estuda as cavidades naturais. “Nenhum outro tipo de caverna se forma dessa maneira”, diz o geólogo. “Nas cavernas de ferro, os processos são cíclicos. Elas vão sendo recicladas. As paredes colapsam, a camada exposta ao oxigênio se cimenta novamente e o processo intramuros recomeça”, observa Auler. Geralmente, nas cavernas de calcário a escavação acontece na face externa da rocha, pela ação da água que entra pelos canais e fissuras.

Augusto Auler / Instituto do CarstesMaterial pastoso do interior das paredes (à esq.) e chip de ferro usado para experimento de corrosãoAugusto Auler / Instituto do Carstes

Sem oxigênio há mais de 100 mil anos
Em trabalhos anteriores, tanto em cavernas ferríferas de Carajás, no Pará, como no Quadrilátero Ferrífero, Auler, Barton e outros colegas já tinham identificado comunidades de bactérias redutoras de ferro que poderiam transformá-lo em mais solúvel. Nesses estudos, citam o formato dessas cavernas como uma possibilidade para a ação: elas geralmente são formadas por pequenos salões interligados por corredores estreitos, como se tivessem surgido de maneira isolada e depois se conectado.

Na pesquisa mais recente, os pesquisadores decidiram perfurar as paredes ao perceberem que sua resistência variava de um ponto a outro. Para entender o que estava por trás disso, inseriram placas de ferro denso dentro das paredes das duas cavernas. Retiraram um ano depois e perceberam, em imagens de microscopia, que as placas tinham adquirido pequenos poros. Por meio de um programa de computador que calcula a quantidade de ferro mobilizado no período, estimaram que levaria cerca de 129 mil anos para uma caverna ferrífera padrão se formar – elas costumam ser pequenas, com 30 metros de extensão em média. O estudo agora envolve cultivar as bactérias em laboratório, para identificá-las e entender como a composição da água influencia esse processo.

“Dissolver o ferro é complexo e, para que isso ocorra, é preciso um ambiente sem oxigênio. A proposta do mecanismo intramuros ajuda a explicar o crescimento dessas cavernas”, observa o geólogo brasileiro Paulo Vasconcelos, da Universidade de Queensland, na Austrália, que não participou do estudo. Segundo ele, como os condutos de passagem de água dentro das rochas têm oxigênio, seria muito difícil que a redução do ferro ocorresse nesses espaços.

Há nove anos, Vasconcelos orientou um estudo que analisou 147 amostras da formação de rocha ferruginosa que recobre alguns campos rupestres, ou canga, do Quadrilátero Ferrífero e constatou uma grande variação de idade na formação de suas camadas. “As rochas sofrem dissolução e recimentação do ferro, por meio de um processo recorrente de redução-oxidação. Esse processo começou há mais de 55 milhões de anos e ocorre ainda hoje”, explica. “A canga se regenera de forma contínua. Isso já era um indício de que, para o processo ocorrer, era preciso ação de microrganismos.”

Os resultados, fruto da pesquisa de mestrado da geógrafa Hevelyn da Silva Monteiro, orientada por Vasconcelos, foram detalhados em um artigo publicado em abril de 2014 na revista científica Geochimica et Cosmochimica Acta. Posteriormente, Vasconcelos também analisou amostras de canga de Carajás e de rochas ferríferas na região de Hamersley, no oeste australiano. Os estudos indicaram a existência de bactérias redutoras de ferro e sugerem que elas poderiam viver em nichos sem oxigênio. Em um experimento, ele e outros colegas da Universidade de Queensland simularam um ambiente em biorreator onde essas bactérias conseguiriam reduzir e dissolver o ferro, como descreve artigo de julho de 2020 na revista científica PNAS. “As condições são análogas, mas Auler e colegas identificaram diretamente onde, no ambiente das cavernas, essas bactérias anaeróbicas concentram seu trabalho”, observa Vasconcelos.

Augusto Milagres / Instituto PrístinoAs cavidades em substrato de ferro têm entradas mais estreitas do que as cavernas mais comunsAugusto Milagres / Instituto Prístino

“Seria interessante isolar essas bactérias. Com elas, talvez seja possível desenvolver um mecanismo mais sustentável para remover o metal das rochas em rejeitos de mineração, por exemplo”, reflete o biotecnologista Leandro Moreira, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que não participou do estudo. Ele pesquisa a microbiota de ambientes ferruginosos do Quadrilátero Ferrífero e tem analisado um conjunto de amostras retiradas do solo, cavernas e plantas e anfíbios da região. “Temos o maior banco de bactérias cultiváveis isoladas da região, hoje com mais de 2 mil organismos armazenados, dos quais 98% ainda não foram identificados”, observa.

Moreira e seu grupo de pesquisa procuram identificar bactérias que possam ter aplicação na indústria, principalmente contra fitopatógenos e na biotransformação de metais. Em um estudo em que coletaram bactérias do solo e do teto de sete cavernas ferruginosas e de uma amostra de solo de canga, eles viram que 15 isolados bacterianos teriam potencial para serem usados como biocontroladores de pragas como o cancro cítrico, a fusariose e a antracnose do feijão, causadas pela bactéria Xanthomonas citri e pelos fungos Fusarium oxysporum e Colletotrichum lindemuthianum, respectivamente. “As cavernas ferríferas têm uma microbiota muito rica, um patrimônio genético negligenciado”, observa o pesquisador. Os resultados foram publicados em agosto de 2021 na revista científica Sustainability. Em artigo publicado em 2021 na revista Diversity, sua equipe indicou também que pequenos impactos causados por atividade humana podem causar grandes mudanças na composição microbiana das cavernas ferruginosas.

Bactérias em rochas carbonáticas
“Nos últimos anos, o estudo da geomicrobiologia na formação das cavernas tem avançado bastante”, observa o geólogo Ivo Karmann, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP). E não apenas nas ferríferas. Ele coordena um grupo de estudo que tem investigado como a ação de microrganismos contribui para a formação de cavernas carbonáticas que armazenam grandes reservatórios de água subterrânea na região da chapada Diamantina, na Bahia. “Tentamos entender como os condutos dentro da rocha se expandem e se transformam em aquíferos expressivos”, conta ele.

Em um desses trabalhos, o geólogo Tom Morita, que realiza mestrado no IGc-USP sob orientação de Karmann, testa uma hipótese proposta em 1999, em trabalhos anteriores de Auler. “Investigamos se o início da ampliação dos condutos dentro de rochas calcárias da região ocorreu pela ação de bactérias que metabolizam o sulfeto metálico. Nesse processo, elas liberariam enxofre no aquífero, formando o ácido sulfúrico que corrói o calcário. Esse seria o início da caverna”, explica Morita. Depois dessa primeira etapa, o processo de ampliação ocorreria da forma clássica, com a água da chuva acidificada se infiltrando no solo e dissolvendo a rocha. “Acreditamos que seja uma gênese mista”, conta ele, que agora trabalha na identificação das bactérias coletadas.

Estudar cavernas e sua formação é procurar conhecer os elementos que não estão mais lá, que foram levados para outro lugar. “Estamos olhando para o oco, para o vazio. E isso nos permite pensar na formação do relevo, na concentração de materiais em determinado lugar. São instrumentos para explicar a história da Terra e sua paisagem”, sintetiza Auler.

Artigos científicos
PARKER, C. W. et al. Enhanced terrestrial Fe(II) mobilization identified through a novel mechanism of microbially driven cave formation in Fe(III)-rich rocks. Scientific Reports. v. 12, 17062.12 out. 2022.
AULER, S. A. et. al. Silica and iron mobilization, cave development and landscape evolution in iron formations in Brazil. Geomorphology. v. 398, 108068. fev. 2022.
MONTEIRO, H. S. et. al. (U-Th)/He geochronology of goethite and the origin and evolution of cangas. Geochimica et Cosmochimica Acta. v. 131, p. 267-89. abr. 2014.
LEVETT, A. et al. Biocement stabilization of an experimental-scale artificial slope and the reformation of iron-rich crusts. PNAS. v. 117, n. 31. 21 jul. 2020.
LEMES, C. G. C. et al. Potential bioinoculants for sustainable agriculture prospected from ferruginous caves of the Iron Quadrangle/Brazil. Sustainability. v. 13, n. 16. 20 ago. 2021.
LEMES, C. G. C. et al. 16S rRNA gene amplicon sequencing data of the Iron Quadrangle ferruginous caves (Brazil) shows the importance of conserving this singular and threatened geosystem. Diversity. v. 13, n. 10, 494. 11 out. 2021.

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