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Ciência política

Bastidores do voto

Cientistas investigam o papel do dinheiro e dos tribunais no ciclo eleitoral brasileiro

Patricia Brandstatter

No Brasil, uma eleição pode ter um turno só, como nas eleições proporcionais, para o Legislativo, e em municípios com até 200 mil eleitores; ou pode ter dois turnos, para cargos do Executivo, quando nenhum candidato conquista mais de metade dos votos na primeira rodada. Mas também há quem fale em um “terceiro turno”, paralelo à escolha dos cidadãos: o recurso ao poder Judiciário. Em eleições para prefeito, em todo o país, candidatos que venceram a disputa têm quase o dobro (89,7%) de risco de serem processados, por adversários ou pelo Ministério Público, do que os que perderam. Por outro lado, os vencedores têm muito menos interesse em acessar os tribunais: para cada cinco processos abertos por derrotados, só um é iniciado por vitoriosos em um pleito (18,2%).

“Quem ganha uma eleição não quer mais pensar em disputas, muito menos judiciais. O que quer é paz para tomar posse e governar”, afirma o cientista político Wagner Pralon Mancuso, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Ele é um dos responsáveis pela pesquisa “Um estudo da relação entre dinheiro e política a partir de processos da Justiça Eleitoral”, com os também cientistas políticos Vanessa Elias de Oliveira, do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (Cecs-UFABC) e Bruno Speck, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Apoiado pela Fapesp e pela Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa, DFG, no projeto desenvolvido em parceria com uma equipe liderada por Markus Pohlmann e Elizângela Valarini, do Departamento de Sociologia da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, os pesquisadores analisaram as eleições de 2008, 2012 e 2016 para prefeito em todo o país, concentrando-se em processos que, na tipificação da Justiça Eleitoral, envolveram de alguma maneira o uso do dinheiro nas campanhas. Por isso, foram considerados o abuso de poder econômico, a captação ou o gasto ilícito de recursos financeiros de campanha e corrupção ou fraude.

Das 38.525 candidaturas analisadas, 3.873 sofreram processos, ou seja, 10,1%. Os dados mostram que, comparando-se as eleições para prefeito em 2008 e 2012, houve uma enorme expansão tanto na chance de processar (293%) quanto na de ser processado (228%). Em 2016, no entanto, os números retrocederam: a probabilidade de ser processado foi 145% maior do que em 2008 e a probabilidade de processar 70%. Parte dessa variação pode ser explicada por motivos estatísticos, incluindo a digitalização dos processos pela Justiça Eleitoral, que aumenta a disponibilidade de dados, diz Mancuso. Outra parte, no entanto, pode ser consequência da pequena reforma eleitoral de 2015, que proibiu as doações de empresas, implicando redução geral de gastos, inclusive com processos.

O fenômeno da judicialização da política não é exclusivo do Brasil nem inteiramente novo

O dado indica que pode estar correta a hipótese de que o recurso à Justiça muitas vezes constitui um “terceiro turno” das eleições. “Se a preocupação for passar a eleição a limpo, não importa se um candidato teve 1% de votos contra outro com 99%. Se quem teve 1% comprou votos, também está errado”, argumenta Mancuso. “A contestação eleitoral é essencialmente contra candidatos competitivos, talvez porque a Justiça não tenha recursos para examinar todos e, por isso, olha só para os mais competitivos; talvez porque os candidatos usem os processos como arma contra quem está na frente”, aponta, acrescentando que novas etapas da pesquisa são necessárias para demonstrar se, de fato, esse fenômeno revela o uso da Justiça como “arma política”.

A análise dos processos na Justiça Eleitoral não é parâmetro para mensurar a corrupção que eventualmente acontece em uma disputa eleitoral, já que a maior parte dos processos é rejeitada ou acaba em absolvição. O que se pode medir com esse método é a chamada “judicialização da política”, ou seja, a crescente atuação do poder Judiciário nos processos eleitorais.

A judicialização, de acordo com Mancuso, pode ter duas causas: “Tornar o processo eleitoral mais limpo”, evitando abusos e estratégias desleais, e “permitir que o mau perdedor entre na Justiça como se fosse um terceiro turno, tentando a sorte”. É o que o cientista político denomina de “uso estratégico da judicialização do processo eleitoral”. Em sua avaliação, o papel crescente do poder Judiciário pode ser um fator de desequilíbrio político, caso o uso frequente de processos reflita tentativas de sufocar financeiramente candidaturas menos robustas.

O fenômeno não é exclusivo do Brasil nem inteiramente novo. Em 1995, o cientista político sueco Torbjörn Vallinder se referia a uma “expansão global do poder do Judiciário”. “Os estudos de judicialização ganharam bastante espaço no Brasil a partir do início deste século. No começo, tratavam sobre como as instituições judiciárias influenciavam o processo político, mas não necessariamente a competição eleitoral”, relata Vanessa Elias de Oliveira.

Segundo Oliveira, estudar os processos nas eleições é indispensável para entender a relação entre política e dinheiro. “A relação envolve a corrupção eleitoral, além do uso inadequado ou ilegal dos recursos públicos e privados no processo. Uma parte importante desses problemas deságua no Judiciário ou é decidido por ele”, afirma. Por isso, a pesquisa se concentrou em processos que envolvem recursos monetários, deixando de lado processos tidos como “comuns”, como calúnia e publicidade irregular, por exemplo.

A professora da UFABC considera que os resultados ainda não permitem determinar que a judicialização promove um “terceiro turno”. “Mas evidencia que a Justiça já é parte do processo político-eleitoral. Ela se tornou um pressuposto. Vai ser mobilizada pelos atores tanto para influenciar o resultado político quanto para marcar posição, simbolicamente, sobre determinadas questões”, pondera. “Para a democracia, a possibilidade de acionar o Judiciário e contestar o resultado da competição eleitoral é importante”, conclui.

Poder do dinheiro
A pesquisa desenvolvida pelos três cientistas políticos integra um universo de investigações que tenta responder mais claramente a uma questão que toca a vida de todos: em que medida o poder financeiro afeta as decisões políticas, eleitorais em particular? Como observa o cientista político Rodrigo Horochovski, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), um tema clássico nos estudos da política é o risco de que a democracia seja enfraquecida pela força do dinheiro, transformando-se em “plutocracia”, governo dominado pela riqueza.

Os estudos quantitativos sobre a relação entre dinheiro e voto foram impulsionados nos Estados Unidos na década de 1970. No Brasil, de acordo com o cientista político Ranulfo Paranhos, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), as primeiras investigações sobre dinheiro e voto datam do fim dos anos 1990. “É uma ideia intuitiva, mas que precisa ser demonstrada: gastar mais dinheiro implica receber mais votos? As pesquisas mostram claramente que sim”, afirma Paranhos. “Em seguida vêm as perguntas interessantes: quanto impacto tem o dinheiro realmente? Quem se beneficia mais? Que tipo de gasto produz e qual efeito?” Segundo o professor da Ufal, descobriu-se para os deputados federais do Brasil o mesmo que o cientista político Gary Jacobson encontrou em relação aos congressistas norte-americanos: “Quem se beneficia mais com o gasto eleitoral é o desafiante. Para o candidato à reeleição, convencer o eleitor é mais caro”. Ou seja, no cenário hipotético em que dois candidatos obtenham a mesma quantidade de votos, aquele que já estava no cargo precisou gastar mais dinheiro para obter esse resultado.

Na pesquisa “Dinheiro e sucesso eleitoral em 2008, 2012 e 2016 no Brasil”, apresentada no ano passado, Horochovski e equipe estudaram a mudança da lei eleitoral em 2015, cuja principal ambição era reduzir a importância do poder financeiro. O objetivo não foi alcançado, segundo o estudo. “Quem gasta mais dinheiro continua ganhando as eleições. Por um lado, o custo de conseguir um voto caiu em 2016, após subir entre 2008 e 2012. Por outro, os votos que vieram se concentraram em quem tinha investido mais”, diz o professor da UFPR. A diferença da média de gastos entre os candidatos que conseguiram se tornar vereadores e os que ficaram pelo caminho foi de 629% em 2008, 685% em 2012 e 664% em 2016.

Hoje é muito difícil um candidato se eleger sem contar com uma equipe profissional de advogados, contadores e publicitários

Horochovski é um dos coordenadores de grupo de trabalho que investiga estratégias de ação e influência do dinheiro no sistema político, da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs). Os primeiros estudos desenvolvidos no âmbito do GT, estabelecido em 2011, tratavam sobretudo de financiamento eleitoral. Paulatinamente, o escopo foi sendo ampliado para incluir o lobby e outras formas pelas quais os interesses privados interpelam os atores políticos.

“Mais recentemente, entraram as questões ligadas à judicialização e à corrupção. A maior parte dos trabalhos sobre financiamento eleitoral trata de doações legais às campanhas. Mas depois dos últimos escândalos, aumentou o incentivo para estudar o que é ilegal”, relata Horochovski. “É claro que esse é um campo mais difícil, porque a informação sobre gastos fora da lei raramente está disponível.”

Mesmo tendo de se limitar ao exame das finanças legais, as pesquisas deixam clara a força dos recursos financeiros no êxito eleitoral. Estudando as eleições municipais desde 2008 com a metodologia de análise de redes, Horochovski e sua equipe mostram que quanto mais a posição de um candidato é central na estrutura de financiamento dentro de um partido, maior sua probabilidade de se tornar vereador.

Como ponto de partida, a pesquisa de Mancuso, Oliveira e Speck testa a hipótese de que quem tem mais dinheiro aciona mais o Judiciário, por ter capacidade de mobilizar advogados e recorrer à Justiça. “Ou seja, esse seria um instrumento que favoreceria os candidatos mais ricos”, resume Oliveira. “A mesma questão aparece na judicialização das políticas públicas. A se confirmar essa hipótese, a judicialização seria mais uma fonte de desigualdade.”

Por ora, o que os números têm revelado é uma crescente profissionalização das campanhas, estimam os pesquisadores. Hoje é muito difícil se eleger sem contar com uma equipe profissional de advogados, contadores e publicitários. “A judicialização criou um nicho importante de trabalho para juristas. Os políticos perceberam a importância da via jurídica e a usam cada vez mais. O resultado é a formação de um exército de advogados especializados”, afirma Oliveira.

A profissionalização, no entanto, pode ser excludente, tornando mais difícil a vida de algumas candidaturas, sobretudo aquelas com menor peso nas estruturas partidárias e menos acesso aos profissionais, observa Horochovski. “Constatamos, entre outras coisas, que aumenta o número de candidaturas que a Justiça considera inaptas. Na maior parte das vezes, não é por causa de fraudes ou corrupção, mas por problemas contábeis, jurídicos, burocráticos”, relata, acrescentando que a incidência de candidaturas tidas como inaptas entre mulheres é maior do que entre homens. “Um motivo é a distribuição de recursos dentro dos partidos, que precisam indicar candidatas para cumprir a cota. Mas, quando analisamos os perfis dessas candidatas julgadas inaptas, a principal ocupação é dona de casa.” Nesse caso, o dado sugere, na avaliação de Horochovski, que os partidos não indicaram candidaturas para ser realmente competitivas.

A profissionalização das campanhas transparece em pesquisa publicada em 2018, por Paranhos e equipe, sobre eleições municipais entre 2008 e 2016. A pesquisa distingue as despesas das candidaturas entre os itens de “estrutura” e “estratégia”. No primeiro grupo, entram o aluguel para instalar o comitê eleitoral, combustível e outros. No segundo, custos com publicidade e prestação de contas. No intervalo de oito anos entre essas três eleições, as despesas com estratégia se expandiram mais rapidamente. Se em 2008 o gasto com estrutura ainda era 52,31% maior do que com estratégia, em 2016 já perdia para o segundo grupo por uma margem de 14,68%. Dentro dessa rubrica, a despesa com publicidade se destaca, demandando das campanhas, em média, mais do que o dobro do segundo item, o transporte: R$ 65,5 mil diante de R$ 29 mil. “Com  campanhas mais profissionais, vêm os gastos com estratégia. A publicidade conta muito. Os candidatos a prefeito, em cidades menores ou maiores, tendem a ver o gasto com publicidade como um investimento que faz efeito”, comenta Paranhos.

Métodos utilizados
A exemplo de outras investigações quantitativas nas ciências humanas, as pesquisas sobre gastos e processos eleitorais se beneficiam do avanço da digitalização, que abriu um vasto universo de dados para os estudiosos, além de facilitar o trabalho de classificá-los e compará-los. Só a partir de 2008 há uma quantidade suficiente de processos digitalizados, observa Mancuso. O acesso a processos em papel, dos anos anteriores, exigiria um esforço extraordinário, uma equipe enorme e um orçamento invejável.

As informações referentes aos pleitos mais recentes estão disponíveis no Sistema de Acompanhamento de Dados Processuais (SADP), que apresenta os principais dados de processos do país e ao qual os TREs estão todos integrados. “Para saber os detalhes, seria preciso acessar o Diário da Justiça, onde não é tão fácil pesquisar”, diz Mancuso, referindo-se ao meio oficial de publicação do poder Judiciário. “Por sorte, tudo que precisávamos estava disponível.” O SADP já não é o registro mais atualizado. Desde 2016 está no ar o sistema de Processos Judiciais Eletrônicos (PJe), que contém todos os arquivos referentes a um processo e, segundo Mancuso, “é bastante completo”.

Porém o que ajuda também pode atrapalhar. No trabalho de coleta das informações, a equipe de pesquisa encontrou um obstáculo inusitado, na figura de um instrumento de segurança: o sistema PJe utiliza a tecnologia “captcha”, que tenta evitar o acesso por robôs, justamente o expediente usado pela equipe para “ler” os processos, relata Mancuso. Com a nova etapa, passou a ser necessário entrar manualmente em cada uma das páginas. “Por sorte, o PJe vale principalmente para as eleições a partir de 2018, então não afetou tanto a nossa pesquisa”, diz.

Embora a qualidade dos números disponíveis e a facilidade de acessá-los tenham se expandido nas últimas décadas, permanecem sérias limitações. “Algo que já está evidente é que, quanto mais abrangente é o período dos dados que queremos usar, maior é a quantidade de problemas e menos confiáveis são as informações”, afirma Paranhos, elencando algumas das dificuldades: lacunas nas séries de dados, preenchimentos errados, falta de padronização. Por outro lado, o professor da Ufal celebra a plataforma electionsBR, criada pelos cientistas políticos Denisson Silva, Fernando Meireles e Beatriz Costa, que reúne bases de dados de eleições brasileiras disponíveis no Tribunal Superior Eleitoral.

Projeto
Crime corporativo e corrupção sistêmica no Brasil (nº 17/24464-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Wagner Pralon Mancuso (EACH-USP); Investimento R$ 239.547,14.

Livro
Oliveira, V. E. de. Judicialização de políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2019.

Artigos científicos
Marchetti, V. e Cortez, R. A judicialização da competição política: O TSE e as coligações eleitorais. Opinião Pública. v. 15, n. 2. 2009.
Deschamps, J. P.; Junckes, I. J.; Horochovski, R. R. e Camargo, N. F. “Dinheiro e sucesso eleitoral em 2008, 2012 e 2016 no Brasil”. Revista de Administração Pública, 2020
Guimarães, F.; Nascimento, W.; Paranhos, R. Silva Júnior, J. A.; Silva, D. “Meu Dinheiro, Minhas Regras: Tipos de gastos de campanha para prefeito no Brasil (2008-2016)”. Revista iberoamericana de estudios municipales, 19, 2019

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