Atrasos na comunicação via satélite não são incomuns no território nacional, um problema que pode comprometer serviços baseados no funcionamento das transmissões de rádio e do sistema GPS, como o controle de tráfego aéreo e terrestre. A interferência é resultado de uma combinação de dois fatores: a produção na alta atmosfera de bolhas de plasma, uma sopa de íons, partículas com carga elétrica positiva e negativa; e a posição geográfica do país, perto da zona equatorial, mais suscetível aos efeitos de uma anomalia magnética que potencializa o efeito das bolhas.
Desenvolvido pelas agências espaciais do Brasil (AEB) e dos Estados Unidos (Nasa), um nanossatélite foi lançado em 26 de novembro do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, para investigar essa questão de perto. O Sport – acrônimo em inglês para Scintillation Prediction Observations Research Task – decolou a bordo de um foguete Falcon-9, da empresa norte-americana Space X, que tinha como missão principal levar suprimentos para a Estação Espacial Internacional (ISS).
O instrumento de observação foi criado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em parceria com o Marshall Space Flight Center, da Nasa, e universidades norte-americanas. O satélite pesa 9 quilos e tem o tamanho de uma caixa de sapato. A previsão era de que ele ficaria armazenado dentro da estação espacial até 29 de dezembro, quando seria liberado para iniciar sua jornada no espaço. O Sport vai circular a Terra por pelo menos um ano, a uma altura entre 350 e 400 quilômetros (km).
O satélite custou cerca de U$ 6 milhões, divididos em partes iguais por Brasil e Estados Unidos. Sua missão é estudar a formação das bolhas de plasma na ionosfera, que provocam o espalhamento e a colisão dos sinais de rádio, um fenômeno chamado cintilação. A ionosfera se situa entre 80 e 600 km de altitude em relação ao nível do mar e é uma região em que o clima da Terra e do espaço se encontram. Também é onde circula boa parte dos satélites importantes para as atividades humanas, além da própria ISS. A formação das bolhas é decorrente da incidência da radiação solar na ionosfera, uma camada da atmosfera considerada bastante instável.
“A cintilação ocorre com mais intensidade de setembro a abril, sobretudo entre o pôr do sol e as 2h”, diz o físico Mangalathayil Abdu, pesquisador aposentado do Inpe e ex-professor do ITA, um dos líderes na missão Sport no Brasil, que contou com financiamento da FAPESP. “Em certos momentos, pode ocorrer todas as noites.” Indiano de nascimento, Abdu foi um dos responsáveis pelo primeiro registro de bolhas no plasma ionosférico no Brasil, em 1976. Ele coordenou o programa de pesquisa ionosférica do Inpe entre 1978 e 2008 e segue à frente de projetos na área.
De dia, a radiação liberada pelo Sol excita moléculas que flutuam pelo ar. Isso gera um campo elétrico que faz com que essa parte do céu concentre um trânsito intenso de partículas eletrizadas. A densidade desse plasma varia de acordo com a época do ano e o momento do dia. À noite, quando não há influência da radiação solar, as partículas eletrizadas que estavam “soltas” no plasma tendem a se recombinar em moléculas de gás. Assim, surgem bolhas de plasma, que se concentram nas faixas escuras das imagens usadas nesta reportagem.
Trata-se de um movimento natural da atmosfera, que é mais comum em áreas ao redor da linha do Equador. No caso do Brasil, há ainda um agravante extra: a influência da Anomalia do Atlântico do Sul, fenômeno magnético que faz com que a radiação emitida pelo Sol chegue mais próximo da superfície do que o normal, causando mais excitação – e bolhas de plasma – sobre a região.
O Sport está em desenvolvimento desde 2017. O ITA foi responsável pelo design do nanossatélite. Os instrumentos a bordo ficaram a cargo da Nasa e das universidades norte-americanas do Texas, do Alabama e do estado de Utah, além da empresa privada Aerospace, também dos Estados Unidos. São seis instrumentos ao todo, que medem aspectos como o campo magnético e elétrico, velocidade e densidade dos íons na atmosfera. Os dados captados pelo satélite serão enviados ao Inpe e à Nasa e, depois de processados, disponibilizados publicamente.
A missão do satélite é investigar as condições que são favoráveis para a ocorrência da cintilação no espaço e, assim, talvez descobrir uma maneira de prever quando essas perturbações podem aparecer e afetar o sistema de comunicação. Se for possível saber quando um satélite vai ser afetado por esse fenômeno, a perda de comunicação pode ser contornada por meio da transferência de seu sinal para outro satélite, fora da área de influência das bolhas de plasma.
Apesar de o fenômeno da cintilação já ter sido estudado da Terra pelo Observatório de Rádio Jicamarca, no Peru, a presença de um nanossatélite no espaço dedicado a esse objetivo deve possibilitar avanços na compreensão da formação das bolhas de plasma. “Com observações feitas do espaço, esperamos flagrar certos aspectos do fenômeno que não conseguimos da Terra”, disse, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o físico norte-americano Jim Spann, cientista líder em clima espacial na Nasa que participa do projeto. “Diferentemente de outros satélites lançados para investigar o clima espacial, o Sport está numa órbita que não é a do equador geográfico. Por isso, ele também consegue mapear o equador magnético [que compreende áreas mais ao sul e ao norte do planeta].”
Além de acompanhar de perto o desenvolvimento do projeto no Marshall Space Flight Center, Spann foi quem sugeriu o nome do nanossatélite. O motivo nada tem a ver com ciência, mas com seu passado em solo brasileiro. Filho de pais missionários religiosos, ele morou no Recife dos 5 aos 18 anos. Durante a estada na capital pernambucana, o físico tinha o hábito de assistir aos jogos de futebol com o pai e os irmãos no estádio. “Meu time de coração é o Sport Club do Recife”, conta, em um português com sotaque nordestino e acento de um falante da língua inglesa. O novo satélite pareceu a oportunidade perfeita para homenagear sua equipe. “Sport é um nome que faz sentido em inglês e em português”, diz.
Projeto
The Scintillation Prediction Observation Research Task (Sport) (nº 16/24970-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Mangalathayil Abdu (ITA); Investimento R$ 4.783.335,43.