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Brito Cruz e Roberto Freire

Brito Cruz e Roberto Freire

Os dois debatedores lembraram que cabe à sociedade e a seus representantes escolher se, quando e como usar o conhecimento criado com o método científico

Freire e Brito (à dir.): ciência à sociedade

Marcia MinilloFreire e Brito (à dir.): ciência à sociedadeMarcia Minillo

Um físico que faz incursões pela política e um político com incursões no mundo da ciência encontraram-se no final da tarde do dia 8 de abril no auditório da exposição Revolução genômica, no Parque do Ibirapuera em São Paulo: Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fapesp (e presidente da Fundação de 1996 a 2002), um interessado nas políticas para o desenvolvimento científico e tecnológico, e Roberto Freire, o senador, o primeiro parlamentar a falar em Lei de Inovação, inspirada na lei francesa de 1998. No encontro não trataram estritamente de inovação, mas de algo mais amplo – os benefícios e limites do conhecimento –, personificando trajetórias e linhas de raciocínio distintas, mas convergentes. Brito ressaltou o valor do método científico para o progresso do conhecimento, que fez o homem “mais senhor de seu destino e mais capaz de entender a natureza e, dentro dela, a si mesmo”, enquanto Freire valorizou o uso social, amplo e participativo do conhecimento. Ambos falaram em torno das duas perguntas que nortearam o debate: “A ciência torna o mundo melhor? Por quê?”. Concordaram que a ciência faz o mundo melhor, mas não sozinha: as escolhas da sociedade sobre o uso do conhecimento são tão importantes quanto o próprio conhecimento.

Ao abrir sua exposição, Brito Cruz valeu-se da constatação de que há no mundo atual uma tendência para se ver o conhecimento científico sob uma ótica excessivamente utilitarista. Essa visão, lembrou, ganhou força depois da Segunda Guerra Mundial, quando o financiamento da pesquisa científica passou a ser feito de forma sistemática, organizada pelos governos, com recursos públicos. Esse fato tornou essencial “estar preparado para explicar ao contribuinte os benefícios da ciência”. Segundo ele, essa explicação ao contribuinte deve ter horizontes amplos: idéias nascidas da ciência podem, muitas vezes, ajudar a humanidade de forma indireta e pouco evidente. Por isso, a explicação deve fugir do utilitarismo e da propaganda fácil. Até mesmo descobertas com aplicações evidentes e que poderiam ser imediatas, como a descoberta do fungo que poderia exterminar bactérias – a penicilina – , exigiram algumas décadas antes de ela se tornar o primeiro medicamento da classe dos antibióticos – os medicamentos mais usados no mundo.

DDT e Prometeu
Brito Cruz acredita que uma pergunta mais ampla – se o conhecimento, não só o produzido pela ciência mas também pela arte, pela literatura e pela filosofia, serve para tornar a vida da humanidade melhor – deveria se sobrepor à preocupação de aplicação utilitarista e imediata do conhecimento obtido com a pesquisa científica. “Mais do que pensar somente se o conhecimento serve ou servirá para fabricar alguma coisa, é necessário valorizar a idéia de que o exercício da curiosidade leva o ser humano a descobertas científicas que podem ajudá-lo a entender o mundo”, disse. “Conhecer mais e melhor ‘apenas’ para saber mais é tão importante quanto conhecer mais para criar aplicações.” Para ele, a astronomia é uma área de pesquisa que representa esse desejo primeiro e o esforço da humanidade para entender a origem e os destinos do Universo. O conhecimento que nasce daí pode também levar a aplicações – na forma, por exemplo, de mapas que ajudem a guiar os viajantes –, mas não é a expectativa da aplicação que move o astrônomo.

Em seguida, Brito Cruz falou sobre as formas pelas quais a humanidade lida com a ciência e sobre como uma mesma criação científica pode ter destinos distintos dos originalmente imaginados: “A humanidade aprendeu que o exercício de querer entender coisas novas, na maioria das vezes, tende a criar melhores condições de vida; acontece também de o avanço do conhecimento criar problemas novos, diferentes daqueles que se pretendia resolver”. Como exemplo, citou o inseticida conhecido pela sigla DDT (dicloro-difenil-tricloroetano), de baixo custo e bastante eficiente, largamente utilizado depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente em lavouras, mas que, como se descobriu mais tarde, poderia causar doenças e provocar graves desequilíbrios ambientais. Em 1962 a bióloga norte-americana Rachel Carson escreveu Primavera silenciosa, o livro em que apresentou o caso contra o DDT de forma contundente. Segundo ele, os problemas causados pelo DDT não são motivo para banir a ciência, mas sim para buscar mais conhecimento que ajude a rea­lizar os desejos de progresso.

Brito lembrou que a busca de conhecimento e o paradoxo de conseqüências inesperadas acompanham a humanidade há muito tempo. Tanto o receio do conhecimento quanto a paixão por ele aparecem nas histórias que sustentam a civilização – os mitos – e expressam valores profundos do ser humano. Um exemplo é Prometeu, que levou aos homens o segredo do fogo, até então mantido somente entre os deuses. Como punição, os deuses o acorrentaram a uma coluna de pedra. Não era o bastante: toda noite uma águia bicava o fígado de Prometeu acorrentado e ainda vivo. Seu suplício não tinha fim, porque o fígado, como os gregos pareciam saber há milênios, antecipando-se ao que a medicina confirmaria mais tarde, é um dos únicos órgãos do corpo humano capaz de se regenerar. Assim, a águia que voltava toda noite sempre tinha o que comer. “De forma interessantemente análoga – obter o conhecimento e ser castigado por isso –, a Bíblia cristã e a Torá judaica narram a expulsão de Eva e Adão do Paraíso por terem provado o fruto da árvore do conhecimento.”

Viver mais
Mas a convivência dos homens com o conhecimento tem manifestações menos trágicas. Um benefício claro do conhecimento científico acumulado nos últimos séculos é a possibilidade de viver mais: se durante a Idade Média as pessoas raramente chegavam aos 30 anos, abatidas por infecção, fome ou doenças, hoje ter 90 anos não é mais tão surpreendente. Viver mais, porém, lembrou Brito, traz novos desafios: “Se a sociedade não se organizar, viver mais pode trazer um problema, por exemplo, para o sistema previdenciário, que depende da relação entre o número de anos de trabalho e o número de anos na aposentadoria. Como não se fará um argumento sobre viver menos, torna-se essencial criar condições para o sistema previdenciário funcionar quando todos vivem mais. Esse exemplo simplista ilustra como às vezes saber não é o suficiente: mesmo que cada um saiba que o sistema não pode funcionar, a sociedade tem dificuldades para organizar uma sistemática legítima, que arbitre quem vai sofrer, e quanto, com as perdas da mudança”.

Brito Cruz observou que freqüentemente não é possível ante­cipar o que vai acontecer em conseqüência de uma descoberta, mesmo quando se trata de objetivos positivos como a ampliação da expectativa de vida ou do bem-estar humanos. “Uma das ilusões sobre a ciência é esperar que a humanidade possa chegar um dia a descobrir tudo que há para ser descoberto. Há limites: a complexidade de certos sistemas e fenômenos desafia a compreensão humana. Mas o homem insiste e prossegue, adicionando elementos à explicação do mundo que vem sendo construída”, comentou, citando em seguida o avanço do conhecimento sobre o corpo humano obtido desde o trabalho marcante de Andreas Vesalius, um dos pioneiros em descrever os órgãos do corpo humano e suas funções, ainda no século XVI.

Embora a ciência contribua para o desenvolvimento da sociedade, “não pode ser somente o cientista que vai dizer o que fazer com o conhecimento”, ressaltou. A ciência deve servir à sociedade, e não o contrário. “A sociedade precisa se organizar e criar os instrumentos para escolher como deseja usar o conhecimento científico no interesse público.” Essa é uma das razões, segundo ele, pela qual qualquer cidadão, “para não ficar submetido a crendices ou a agendas ocultas”, deveria conhecer noções básicas de ciência. No mundo de hoje, para ele, é preciso ter noções sobre o átomo, sobre as funções do DNA e sobre as teorias que explicam a origem do Universo da mesma forma que é preciso saber algo sobre o funcionamento da economia, da inflação e da história. Para Brito, a ciência pode ajudar a sociedade a tomar decisões melhores, mas para isso é necessário que mais pessoas na sociedade entendam o método da ciência. “A história das descobertas mais impactantes ajuda a entender o método”, defendeu. Um exemplo clássico de desconhecimento sobre um fato básico da natureza é a resposta de entrevistados a uma pesquisa de opinião feita na França. “À pergunta se comeriam DNA, os entrevistados com freqüência respondiam: ‘Não, de jeito nenhum!’ Mas há DNA nas verduras, na carne, em muitos dos alimentos de todos os dias. A ignorância leva o ser humano ao medo e à prevenção, numa atitude defensiva compreensível, mas atrasada, co­mo a dos que, no passado, temiam que cometas, raios ou trovões fossem sinais do descontentamento dos deuses com os humanos”.

“Mais ciência ajuda o ser humano a ser mais dono de seu próprio destino”, prosseguiu Brito. Ele acredita que a sociedade, para construir o próprio destino, deve se fazer representar por pessoas que conheçam o método científico, que ele definiu como “uma criação dos homens, não de Deus, que nos permite acertar muitas vezes, corrigirmos os erros em outras e sempre aprender mais sobre o que ainda não sabemos”. Em seguida, acrescentou: “A ciência é uma das formas de adquirir conhecimento relevante para a humanidade, mas não é a única. Por exemplo, um conjunto muito importante de conhecimentos a humanidade adquire pela arte, pela literatura, pela cultura”.

Em sua vez de falar, Roberto Freire lembrou que havia se formado em direito e nunca havia tido contato próximo com temas puramente científicos – até entrar na política e se tornar “um político que pela primeira vez inventou de fazer uma lei de inovação tecnológica no Brasil”. Nesse percurso, relatou, teve de enfrentar fortes preconceitos, que barravam a possibilidade de os cientistas se integrarem à economia de mercado. Freire encontrou na França uma lei que representava a possibilidade de desfazer esse bloqueio e depois correu no Brasil sem maiores imprevistos, a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Freire contou que entrou em contato com os conceitos sobre inovação tecnológica a partir dos movimentos políticos e sociais que emergiram em maio de 1968 na França e rapidamente ecoaram por outros países, como Checoslováquia e Itália, chegando também ao Brasil. Nessa época já havia iniciado sua própria trajetória política como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e mais tarde se tornaria deputado estadual e senador. “Para os comunistas”, lembrou, retomando a efervescência do ano de 1968, “toda aquela movimentação representava uma discussão concreta, porque a classe operária e o PC entraram em choque com o movimento estudantil francês. Mas por que na França, onde o PC tinha uma presença hegemônica, os operários não haviam se associado aos estudantes?”

Maio de 1968
Pouco depois Freire leu um livro que continha muitas das repostas que procurava. Era o Toda verdade, cujo autor, o filósofo comunista francês Roger Garaudy, examinava as perspectivas do socialismo, a partir da atuação do PC no movimento de 1968 na França e da intervenção soviética na então Checoslováquia. Lendo Garaudy, que mais tarde seria expulso do PC francês por causa das críticas que publicou, Freire constatou que, em paralelo à visão de luta de classes entre operários e burgueses, que conduzia os comunistas, a rebelião estudantil em maio de 1968 na França havia mostrado que os estudantes detinham o conhecimento, essencial para promover mudanças econômicas. “O processo de acumulação de conhecimento havia dado um salto que não era apenas definidor da cultura, mas representava uma ruptura com ciclos definidos”, observou. “Era o início de uma nova civilização, a primeira expressão política do valor do conhecimento.”

Foi um momento decisivo também para o próprio Freire, que começou então a discutir – “inicialmente nos setores mais à direita do partido comunista” – o valor estratégico da inovação tecnológica. “A esquerda era então o que tentava entender o futuro, o mundo que está aí, não o que está preso ao passado. Como nos preparamos para a revolução científica e tecnológica? Na Constituinte de 1988 percebemos que não era difícil falar de ciência para os políticos. Em alguns estados essa questão avançou mais que em outros, como em São Paulo, em que a verba para ciência está vinculada à arrecadação de tributos.” Possivelmente, acrescentou, esse avanço representa uma herança da Constituinte estadual de 1947, que permitiu a criação da Fapesp.

Pouco depois, indagado por um dos participantes, ele retomou esse ponto e explicou que os debates sobre ciência e tecnologia corriam com relativa facilidade na Assembléia Nacional Constituinte “porque os políticos respeitam e admiram os cientistas”. Segundo ele, a imagem mais comum dos cientistas é de pessoas que salvam vidas, que passam a vida em um laboratório e, portanto, tornam-se pessoas diferenciadas. “Muito mais difícil”, prosseguiu, “é fazer o país investir em ciência, especialmente neste governo, que gerou ambigüidades para a política nacional de ciência e tecnologia”. Para Freire, o Brasil perdeu dinamismo nesse campo. Segundo ele, os impasses da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) mostram a dimensão dessa perda de dinamismo. “Em 1995 o governo sancionou uma lei, mas não conseguimos avançar na aprovação das pesquisas com células-tronco – estava proibido. A CNTBio permitiu que as pesquisas nessa área avançassem, inclusive com seu aproveitamento na economia de mercado. Com o governo Lula a CNTBio tem dificuldade para funcionar, até para se reunir. Porque criaram um Conselho de Ministros que vai autorizar se as pesquisas liberadas pela CNTBio podem ser aproveitadas pela economia. Estamos lá parados. O que é que podemos falar da esquerda hoje, como a Via Campesina, que destrói laboratórios de pesquisa? Isso é fascismo da pior espécie.”

Em seguida, Roberto Freire sentenciou: “A esquerda não pode ser Torquemada”, referindo-se ao frade dominicano Tomás de Torquemada, um dos líderes da Inquisição na Espanha do século XV. Segundo ele, a ciência pode ser Galileu ou Giordano Bruno, dois físicos do século XVI que enfrentaram resistências por causa de suas idéias novas, “mas não Torquemada”. Não é só no Brasil, porém, ressaltou, que a esquerda bloqueia o avanço e repudia novos conhecimentos. “Para concluir, gostaria de dizer que se nós hoje temos a vida que temos é por causa do conhecimento, por causa dessa nossa capacidade de construir um mundo melhor.”

Quando a apresentação se abriu à participação dos até então ouvintes, um dos integrantes da platéia lembrou que às vezes o conhecimento é utilizado para destruir, como quando é aplicado em armas nucleares. A ética, perguntou, não deveria vir antes da ciência? Em resposta, Brito comentou que é responsabilidade da sociedade escolher como usar o conhecimento: “A história da bomba atômica ilustra o permanente dilema da humanidade e dos cientistas. Lembrem-se de que naqueles anos a civilização travava uma luta contra uma das amea­ças mais terríveis que já a intimidaram, o nazi-fascismo, e havia uma preocupação legítima de que os nazistas estivessem desenvolvendo bombas do mesmo tipo, pois as principais descobertas sobre fissão nuclear foram feitas na Alemanha do pré-guerra”. Para ele, a resposta a esse dilema não tem a ver só com ciência, mas com escolhas políticas: o conhecimento ajuda a humanidade, mas tem de ser tratado com atenção e cuidado pela sociedade. O futuro da humanidade, segundo ele, não é determinado somente pelo conhecimento científico, mas pode, sim, ser ajudado pelo conhecimento científico. “Estamos falando de uma jornada que, para o ser humano, não tem fim. Vamos viver o tempo todo atormentados para descobrir como tornar os próximos 40, 50, 100 anos melhores.”

“Vamos dar maior dimensão pública à ciência”, sugeriu Roberto Freire, ao comentar como evitar que a ciência cause a destruição da humanidade. “Os cientistas brasileiros deveriam ter posições mais abertas e sentar para conversar mais com professores e outros representantes da sociedade.”

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