Quando a economia sofre um choque, um conjunto de modelos e precedentes históricos costuma estar disponível para responder às perguntas dos economistas. Qual a intensidade e a duração da crise? Que setores são afetados? O que acontece com o mercado de trabalho e as principais variáveis econômicas, como o câmbio, o Produto Interno Bruto (PIB) e a inflação?
Mas a crise decorrente da pandemia é diferente: nem superprodução, nem quebra do mercado financeiro, nem variação súbita de um preço fundamental, como o câmbio, os juros ou o petróleo. Desta vez, uma doença ainda pouco conhecida levou governos ao redor do mundo a interromper boa parte da atividade econômica, por um período que pode ultrapassar dois meses. Tem sido preciso exercitar a criatividade para estimar a reação das economias a esse evento novo.
O cálculo do PIB não costuma ser complicado: soma-se quanto as famílias consumiram em bens e serviços, quanto as empresas investiram, quanto o governo desembolsou e quanto o país exportou e importou em determinado período. Sabendo como a economia se comportou anteriormente, e como têm caminhado os principais fatores que a afetam, como a taxa de juros, o câmbio, o desempenho dos principais parceiros comerciais, a cotação dos produtos de exportação, entre outros, é possível adiantar quanto será produzido e consumido no país nos meses e anos seguintes.
O mesmo não acontece quando a atividade econômica é interrompida. “Normalmente, em crises grandes, a queda da demanda chega a 4% ou 5%. Nesta, tem gente falando em 40% ou 70%. Não tem paralelo. O nível de incerteza, para qualquer previsão, este ano é enorme”, diz José Ronaldo de Castro Souza Júnior, diretor de Estudos e Pesquisas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Uma das dificuldades é a própria pandemia. Quanto tempo vai durar? Que volume de recursos é direcionado para equipamentos médicos? Quanto trabalho continua sendo feito enquanto as pessoas são mantidas em casa? “Para estimar o curto prazo, é impossível trabalhar normalmente. Até mesmo os números que vêm da epidemiologia são incertos, porque pequenas variações dão resultados muito diferentes. Qualquer indicador de incerteza que eu escolha para meu modelo é duvidoso”, lamenta Souza Júnior. “Neste momento, eu me sinto mais confortável fazendo previsões de longo prazo, para 10, 20, 30 anos”, diz.
O economista relembra que os técnicos do Ipea fizeram “uma série de reuniões on-line para entender o que poderia ser feito do ponto de vista técnico”. Uma dificuldade é que a crise tem dois momentos. No primeiro, o “choque de oferta”, a produção é interrompida – como aconteceu em janeiro e fevereiro na China, provocando faltas de peças e insumos chineses em indústrias mundo afora. “Este, já entendemos como é. O problema está no segundo momento: o choque de demanda”, informa o economista do Ipea, referindo-se à interrupção do consumo durante o isolamento. “Estamos usando modelos que não costumávamos usar, que analisam a economia setor a setor. A dificuldade é entender até que ponto vai o choque da oferta e quando chega o choque de demanda. A retomada da economia vai depender muito do comportamento da demanda”, resume Souza Júnior.
Outra dificuldade está na obtenção dos dados em que as projeções se baseiam. Grande parte dos números vem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A principal fonte é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua (Pnad Contínua), publicada mensalmente com números referentes ao trimestre anterior. Na pandemia, o instituto foi obrigado a uma série de adaptações. A primeira foi o adiamento do Censo para 2021. Outra foi o cancelamento de visitas a domicílio para a Pnad.
O IBGE substituiu as visitas por telefonemas, usando diferentes bases de dados que já possuía. Em maio, teve início a chamada Pnad-Covid, em parceria com o Ministério da Saúde. Receberam ligações 193,6 mil domicílios, com perguntas principalmente sobre a doença, mas incluindo também questões relacionadas ao trabalho e ao rendimento das famílias. “Determinamos o fim da coleta presencial em 17 de março e, desde então, começamos uma discussão com os técnicos sobre a continuidade das pesquisas, assim como o eventual desenvolvimento de outros produtos”, declarou, no lançamento da iniciativa, Eduardo Rios-Neto, diretor de Pesquisas do IBGE. Segundo a coordenadora de Contas Nacionais do Instituto, Rebeca Palis, a taxa de resposta aos questionários apresentou queda em março. “Mesmo assim, avaliamos que os dados necessários para alimentar as contas nacionais no primeiro trimestre estão adequados”, afirma.
O sociólogo Ian Prates, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e da Social Accountability International, menciona que a interrupção dos procedimentos normais de pesquisa chegou a ser chamada de “apagão de dados”: o ritmo de produção das informações não é o mesmo, a base de comparação é imperfeita e alguns números acabam não sendo produzidos. “Se o dado oficial não existe, não podemos cruzar os braços e esperar acabar a pandemia”, observa.
“Estamos usando dados que, em situações normais, nunca usaríamos”, diz Prates, referindo-se a informações sobre consumo e circulação coletadas com o apoio de instituições como Google e Cielo, e sobre a situação das empresas, obtidas com o auxílio do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). “Esses são os dados que estão disponíveis, mas também são os dados que fazem sentido neste momento. Se até agora prestamos menos atenção a esses dados, pode ser por causa da rotina científica”, especula.
“Há alguns tipos de dados com os quais não costumávamos trabalhar, mas agora estamos trabalhando, porque nosso objetivo é a atuação no curto prazo, e não só a compreensão de processos sociais”, acrescenta o também sociólogo Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Um exemplo é a geolocalização das pessoas por meio de seus telefones celulares, em parceria com a empresa Inloco.
Barbosa e Prates são responsáveis pelas pesquisas sobre mercado de trabalho e renda, proteção social e políticas emergenciais na Rede de Pesquisa Solidária, criada em março para estudar a pandemia. A rede reúnde investigadores de diversas disciplinas e instituições de ensino superior, publicando boletins com análises sobre a evolução da pandemia no país e seus efeitos sobre a sociedade e a economia.
Apesar das dificuldades, projeções começaram a ser apresentadas já na última semana de março. O Ipea estimou uma queda do PIB brasileiro entre 0,4%, se o isolamento social durasse até o fim de abril, e 1,8%, se durasse até junho. A projeção foi publicada na Carta de Conjuntura, número 46. Em de abril, o instituto lançou outras projeções avulsas, adiantando o número 47. Todos os textos ressaltam o caráter especulativo das previsões, anunciando que o número inicial de 1,8% estava superado.
Na primeira semana de abril, o Departamento das Nações Unidas para Assuntos Econômicos e Sociais (Desa) calculou que o PIB mundial cairia quase 1% – a previsão anterior era de expansão de 2,5%. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por sua vez, estimou a queda em 3%. O Banco Mundial foi além. Projetou uma redução do PIB de 4,6% para a América Latina e de 5% para a economia brasileira.
Também em abril, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) publicou uma compilação de projeções sobre pandemias hipotéticas, baseadas em eventos anteriores, como a gripe espanhola, que teria infectado cerca de 500 milhões de pessoas entre 1918 e 1920. As estimativas vão de uma queda da economia global de menos de 1% neste ano a tombos de mais de 4%. Não se sabe ao certo qual foi o impacto econômico da própria gripe espanhola, que teria matado entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas, segundo cálculos do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). Em março, porém, um grupo de economistas liderado por Robert Barro, da Universidade Harvard, calculou que, de 1918 a 1920, a queda do PIB mundial ficou entre 6% e 8%.
Ainda assim, as crises sanitárias do passado não fornecem instrumentos para prever o desempenho econômico deste ano, lamenta o economista Emerson Marçal, coordenador do Centro de Estudos em Macroeconomia Aplicada da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV). Pandemias recentes, como a Sars de 2003 e a da gripe H1N1 em 2009, tiveram alcance restrito ou efeito mundial bem menos intenso do que a Covid-19. A gripe espanhola, por outro lado, teve escala global, mas, para um episódio ocorrido há cem anos, “os dados são inexistentes ou insuficientes”, diz Marçal. “Naquela época, as séries macroeconômicas não eram tão bem calculadas. Só temos estimativas, que são bem feitas, mas não permitem modelar o que aconteceu há tanto tempo”, explica.
Marçal e sua equipe se basearam em dois eventos da história econômica recente para calcular, ainda na segunda metade de março, o efeito da pandemia sobre o PIB brasileiro. Para a influência externa, foi escolhida a crise financeira de 2008, que interrompeu o fluxo de capital e causou uma queda no produto em 2009. Para uma paralisação com origem doméstica, o pesquisador tomou como referência a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, que bloqueou estradas do país durante 10 dias.
O resultado, apresentado no início de abril e com ampla repercussão na mídia e no mercado, foi uma contração que poderia chegar a 4,5% neste ano. “Naquele momento, tive a impressão de que saiu um número pessimista demais. Agora estou revisando, com os dados que já começam a ser coletados, e me parece que pequei por excesso de otimismo”, declara Marçal. O fator doméstico acabou tendo mais peso do que o internacional, já que a paralisação da economia brasileira está durando mais do que a greve dos caminhoneiros. “Se eu tivesse feito um modelo com interrupção [da atividade econômica] mais longa, teria resultado em um número mais pesado”, reconhece.
Aos poucos, as previsões do mercado e do governo vão convergindo para números parecidos com os obtidos por Marçal. No começo de março, o Ministério da Economia ainda previa ligeiro crescimento para 2020. O boletim Focus, publicação semanal do Banco Central que traz projeções de instituições financeiras para as variáveis da economia brasileira, detectava apenas uma pequena contração. Mas, em meados de maio, o Focus já apresentava 4,4% de recuo e o Ministério da Economia indicou um tombo de 4,7%.
Essas novas projeções já incorporam os primeiros dados oficiais do IBGE. No início de maio, o instituto divulgou o efeito da pandemia sobre a indústria no mês de março: uma queda de 9,1% sobre fevereiro. No setor de serviços, divulgado na semana seguinte, o resultado também foi devastador: recuo de 6,9%. Segundo o Banco Central, o Índice de Atividade Econômica (IBC-Br), considerado uma “prévia do PIB”, teve retração de 1,95% no primeiro trimestre em relação ao último trimestre do ano passado. Só em março, a queda do índice foi de 5,9%. O PIB do primeiro trimestre, segundo o IBGE, encolheu 1,5%. “E o primeiro trimestre só sofreu com os efeitos da pandemia por duas semanas”, lembra Marçal.
Muito do impacto econômico da pandemia, no longo prazo, vai depender também da eficácia das medidas tomadas pelo governo para evitar falências, demissões e a perda do poder de consumo de itens básicos. No Brasil, essas medidas incluem a redução das reservas compulsórias que instituições financeiras mantêm no Banco Central, a diminuição da taxa básica de juros (Selic), o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600,00 a desempregados, trabalhadores informais, autônomos e microempreendedores individuais (MEI), a autorização para reduzir jornadas de trabalho e salários, dentre outras iniciativas.
Para Souza Júnior, do IPEA, ainda não se pode calcular o efeito do auxílio governamental a empresas e indivíduos, exceto por uma comparação contra-factual. “Sem as medidas, poderíamos estar sofrendo um caos social. Se as pessoas estão restritas a ficar em casa e ao mesmo tempo não veem perspectiva de ganhar dinheiro para consumir o mínimo, isso é uma bomba que poderia resultar em saques e revoltas”, avalia.
No início de maio, a equipe do Grupo Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ) publicou uma projeção para os diversos setores da economia brasileira, em que alguns chegam a reduzir 10% de seu nível de atividade. Isso se aplica à construção civil, a indústria extrativa (por exemplo, mineração) e de transformação (como fábricas de bens de consumo), além do comércio.
Os pesquisadores trabalharam com três cenários, usando a Matriz Insumo-Produto, metodologia que permite olhar para cada setor da economia separadamente. No cenário otimista, já defasado, o isolamento social seria curto, mas eficiente; somado a medidas efetivas do governo para evitar falências, a recuperação seria veloz. Mesmo assim, o recuo do PIB seria de 3,1%, com a taxa de ocupação dos trabalhadores caindo 4,4%. No cenário pessimista, as medidas de isolamento e de mitigação dos efeitos econômicos da pandemia são ineficazes. A queda do PIB chega a 11%, com um tombo catastrófico na ocupação de 14%.
Entre os dois, está o cenário-base, em que o isolamento social é prolongado e as medidas de contenção ao vírus levam algum tempo para fazer efeito, mas a situação do país não chega a ser desastrosa. Nesse caso, o PIB sofreria uma queda de 6,4% e a taxa de ocupação dos trabalhadores diminuiria em já impressionantes 7,9%.
A indústria de transformação, tanto na fabricação de bens de consumo quanto de bens de produção, pode ter um tombo de 11,3% (cenário base) ou até 18,8% (cenário pessimista). “Fala-se muito na queda do setor de serviços, mas vamos ter também uma retração importante da demanda, porque a renda, a exportação e o investimento diminuem. A indústria deve ser ainda mais afetada do que os serviços”, afirma a economista Esther Dweck, professora do IE-UFRJ e coordenadora do estudo. “Mesmo se, graças aos produtos agrícolas, as exportações não caírem, os manufaturados vão perder espaço no mercado externo. Isso agrava o processo de desindustrialização do país”, prevê.
Para entender o efeito da pandemia sobre a indústria, a economista Cristina Fróes de Borja Reis, da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisadora da Technische Universität de Berlim, na Alemanha, entrevistou, no início de abril, 32 empresários do setor de máquinas e equipamentos, de diversas regiões do país. Eles confirmaram o forte impacto da pandemia sobre seus negócios. Segundo Reis, 53% das companhias foram atingidas gravemente ou muito gravemente, algumas mencionando o risco iminente de falência.
Com o avanço da pandemia, houve ruptura de cadeias de fornecedores internacionais, cancelamento de contratos, queda de demanda doméstica e externa, anulação de feiras de negócios. As empresas também foram prejudicadas pelo impedimento físico da equipe de vendas em encontrar clientes, acrescenta a economista. Para setores industriais que dependem de insumos importados, a desvalorização recente do real frente ao dólar também foi péssima notícia.
“Isso não quer dizer que a indústria vá morrer porque ela pode mudar sua atividade, mas é muito ruim para as empresas mais complexas e inovadoras”, afirma Reis. “O que deve acontecer é a intensificação de um processo que já estava em curso: as indústrias brasileiras se tornando cada vez mais dependentes da tecnologia externa e as multinacionais fazendo apenas o estágio de montagem no Brasil.”
Não só o tamanho da crise, mas também a forma da recuperação é uma incógnita. No cenário internacional, o Fórum Econômico Mundial compilou hipóteses. O retorno em poucos meses aos níveis esperados para antes da crise, a chamada “recuperação em V”, é cada vez mais improvável. O retorno “em Z”, com um breve período de crescimento acelerado capaz de compensar os meses de queda, antes do retorno à tendência dos anos anteriores, também parece improvável aos analistas do Fórum.
Na China, primeiro país atingido pela pandemia da Covid-19, os dados que começam a ser publicados indicam um retorno lento ao patamar de produção anterior à queda abrupta do PIB. É a chamada “recuperação em U”. As projeções da UFRJ, do Ipea, da FGV e do Ministério da Economia trabalham sobretudo com a hipótese da recuperação “em U” para o Brasil. No alfabeto do choque econômico, também há duas possibilidades ainda mais preocupantes. Na recuperação “em L”, a atividade permanece por bastante tempo em patamar inferior ao que teria normalmente. No cenário “em W”, depois de um breve momento de salto, uma segunda recessão se instala.
Com a variedade das projeções e as incertezas envolvidas, o esforço de antecipar dados e antever como a crise vai se desenrolar nas semanas e meses seguintes pode parecer um exercício estéril, já que os erros serão grosseiros. Os pesquisadores, no entanto, rechaçam a hipótese de abdicar das previsões: elas são indispensáveis para que o poder público e o setor privado tracem estratégias de resposta ao choque sanitário.
“Nosso objetivo, ao elaborar projeções, é orientar a ação do gestor público. Se alguma projeção é um pouco subestimada ou superestimada, não importa. O que importa é ser um bom instrumento de ação”, observa Barbosa, do CEM. Souza Júnior, do Ipea, argumenta de modo semelhante. “Precisamos continuar fazendo essas projeções, porque temos que estar preparados e saber o que fazer, dependendo do caminho que a economia tomar. Qual vai ser o impacto sobre a arrecadação, o superávit primário, o desemprego? E o tamanho da dívida? Quais serão as políticas fiscal e monetária? O que pode ser feito em políticas sociais? Tudo isso depende do tamanho do buraco e do ritmo da recuperação”, diz.
Artigo científico
BARRO, R. J. et al. The coronavirus and the great influenza pandemic: Lessons from the “spanish flu” for the coronavirus’s potential effects on mortality and economic activity. NBER Working Paper. 26866, mar. 2020.