Em abril de 2020, várias equipes do Instituto Butantan começaram a ver como aproveitar o conhecimento e as instalações disponíveis para criar formas de enfrentar a pandemia que ganhava força. Uma delas injetou uma solução com o vírus Sars-Cov-2, o causador da Covid-19, em ovos embrionados. Era a mesma técnica usada há anos para produzir a vacina contra influenza, mas não deu certo – o vírus não se multiplicou nos ovos.
Um mês depois, o Butantan se integrou ao consórcio internacional, liderado pelo Path, que reuniu outros fabricantes de vacinas contra influenza do Vietnã e da Tailândia, e recebeu uma primeira versão do vírus da doença de Newcastle em que havia sido implantada a proteína S do Sars-Cov-2, para servir como base de uma vacina. Também não funcionou.
Por fim, a segunda versão enviada, adaptada na Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos, com o reforço de prolinas (fragmentos de proteínas) para estabilizar a proteína S, é que, já em outubro de 2020, se multiplicou como o esperado nos ovos embrionados. Depois o vírus foi purificado e inativado quimicamente e foram preparadas as 7 mil doses a serem usadas nas fases 1 e 2 dos testes clínicos de avaliação da formulação que foi chamada no Brasil de ButanVac.
“Altos e baixos fazem parte do desenvolvimento de vacinas”, observa o biólogo Ricardo Oliveira, diretor de Produção da Fundação Butantan. Por se tratar de uma tecnologia já usada para produzir a vacina contra influenza, diz ele, “não deve haver grandes dificuldades em ampliar a escala de produção” do novo candidato a imunizante, caso seja bem-sucedido.
Ao anunciar a ButanVac em março, o diretor do instituto, Dimas Covas, anunciou o objetivo de concluir os testes de avaliação de segurança e eficácia em pessoas ainda neste ano. Se os resultados forem positivos, o Butantan buscará a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para iniciar a aplicação na população.
Resultados desapontadores e imprevistos fazem parte do longo processo de desenvolvimento de vacinas. O Butantan começou em 2009 a elaborar uma vacina contra dengue, com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos. Nos anos seguintes, desenvolveu os métodos de produção industrial e uma formulação com vírus liofilizado (desidratado e congelado sob vácuo) para ser armazenado em geladeiras comuns. Os testes da fase 3, com 17 mil participantes, começaram em 2016 e devem terminar no final deste ano.
“Nosso principal desafio está em escolher e apostar nos candidatos certos [a vacina] logo no início do processo”, disse o pediatra David Greenberg, vice-presidente científico e médico-chefe do laboratório francês Sanofi Pasteur nos Estados Unidos em 2018 à revista Veja.
Produtores e desenvolvedores de vacinas estão sujeitos a decepções. Em dezembro de 2020, a Sanofi e o britânico GlaxoSmithKline (GSK) anunciaram que as vacinas contra a Covid-19 que desenvolviam em conjunto não ficariam prontas até o fim de 2021, porque os resultados da fase 1/2 dos testes clínicos tinham sido insatisfatórios. De acordo com um comunicado da Sanofi, o estudo com 441 pessoas de 18 a 49 anos mostrou uma resposta imunológica mais baixa entre os mais velhos, provavelmente devido a uma concentração insuficiente do antígeno, motivando uma nova formulação. Em fevereiro, as duas empresas anunciaram o reinício dos testes.
Em janeiro deste ano, o laboratório farmacêutico Merck, dos Estados Unidos, e o Instituto Pasteur da França anunciaram que iriam abandonar seus principais projetos de desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19, produzidas respectivamente com base no vírus da estomatite vesicular (VSV) e do vírus do sarampo. Em comunicados oficiais, a Merck e o Pasteur informaram que os resultados dos testes iniciais em seres humanos haviam sido ruins – o nível de anticorpos induzidos pelas candidatas a vacina foi menor que o de pessoas que não a haviam recebido –, mas outros projetos de vacina contra a Covid-19 continuariam. Em fevereiro a revista semanal francesa Paris Match considerou “um fiasco” o desempenho do Pasteur.
Para o engenheiro químico Américo Craveiro, membro da Coordenação Adjunta de Pesquisa para Inovação da Diretoria Científica da FAPESP, as interrupções ganharam dramaticidade e visibilidade por envolveram grandes fabricantes mundiais e pela urgência de vacinas contra a Covid-19. “É comum ter de parar um trabalho que apresente maus resultados em qualquer etapa do desenvolvimento”, diz ele.
De 1995 a 2010, como diretor de Pesquisa e de Inovação da Vallée, fabricante de medicamentos veterinários vendido em 2016 para a MSC Saúde Animal, Craveiro enfrentou muitos problemas enquanto desenvolvia vacinas para animais. Em um dos casos, com sua equipe, demorou 15 meses para identificar um problema de um dos produtos em desenvolvimento na empresa – os efeitos colaterais registrados nos testes em animais – e encontrar uma solução; a causa não era o antígeno usado para gerar uma resposta contra os patógenos, mas o adjuvante, empregado para aumentá-la. “Os efeitos indesejados das vacinas, ainda que mínimos, são inevitáveis”, diz ele. “É provável que mesmo as vacinas já em uso contra a Covid-19 passem por reformas e ganhem versões aprimoradas, mais eficientes e seguras, dada a ocorrência de variantes devido à mutação contínua do vírus.”
A competição entre as grandes empresas farmacêuticas é intensa. Em 31 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) registrava 184 candidatas a vacina em testes de eficácia e segurança em modelos animais e 85 em pessoas, das quais 10 em fase 3 de testes clínicos. Desses 85 candidatos a vacina mais avançados, os fabricantes privados respondem por 41 projetos, os públicos por 22 e as parcerias público-privadas por outros 22.
Imprevistos podem abater mesmo quem ultrapassou as barreiras iniciais. Em março, a fabricante AstraZeneca sofreu um revés quando França e Itália – e depois outros países da Europa, da África e da Ásia – suspenderam preventivamente a aplicação da vacina contra a Covid-19 produzida pela empresa, diante do risco de sua aplicação provocar coágulos sanguíneos. Segundo a Agência Europeia de Medicamentos (EMA), os coágulos poderiam ser um efeito colateral muito raro da vacina produzida pela empresa, mas os benefícios, ao proteger contra a Covid-19, superavam os riscos. “Precisamos usar as vacinas de que dispomos para nos proteger dos efeitos devastadores da Covid-19”, reforçou o diretor-executivo da EMA, Emer Cooke, em uma entrevista coletiva on-line em 7 de abril. A agência examinou 86 casos de coágulos cerebrais, dos quais 18 foram fatais, entre 25 milhões de pessoas vacinadas na Europa e no Reino Unido.
A vacina da AstraZeneca, feita em parceria com a Universidade de Oxford, do Reino Unido, é uma das duas em uso no Brasil – a outra é a CoronaVac, hoje produzida pela empresa chinesa Sinovac e envasada no Butantan. No dia 29 de março, o Ministério da Saúde anunciou a compra de 100 milhões de doses da vacina da Pfizer, que deve entregar o primeiro lote de 13,5 milhões até junho. Dois dias depois, a Anvisa anunciou a aprovação para uso do imunizante de dose única da Janssen.
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