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Obituário

Carlos Lemos ajudou a construir a história da arquitetura brasileira

Morto aos 100 anos, professor emérito da FAU-USP refletiu sobre o interior das casas populares, trabalhou com Niemeyer e lutou pela preservação do patrimônio histórico

Lemos em 2003, no Parque do Ibirapuera, que ajudou a projetar

Moacyr Lopes Junior / Folhapress

“Não há pressa. Colha material variado que, com ele, faremos uma festa.” Com essa frase, Carlos Lemos encerra a carta manuscrita enviada em 31 de julho de 1995 para sua orientanda de mestrado, a arquiteta Guilah Naslavsky, hoje professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Como a maioria dos mestrandos e doutorandos orientados por Lemos vivia em São Paulo, esse é um tipo de registro raro em seus 58 anos de docência na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Afinal, quase todos os alunos podiam contar com a orientação presencial do professor. Naslavsky, no entanto, havia retornado ao Recife, sua cidade natal, e eles se comunicavam sobre a pesquisa ‒ cujo tema era o modernismo ‒ por carta ou telefone. Em apenas 15 linhas, escritas em uma folha timbrada com seu nome completo no alto, Carlos Alberto Cerqueira Lemos, o arquiteto, então com 70 anos, expressou seu modo de conduzir as pesquisas e a própria vida: paciente, criterioso e entusiasmado.

Segundo Naslavsky, essas qualidades se refletem nas realizações de Lemos, que morreu aos 100 anos, no dia 6 de agosto, em São Paulo. Antes mesmo de se formar na primeira turma de arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), em 1950, ele já tinha um escritório em sociedade com outros profissionais. Dois anos depois, recebeu uma ligação do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), que buscava alguém para chefiar seu escritório na capital paulista. Coube a Lemos, entre outras atividades, participar do projeto do Parque do Ibirapuera e coordenar a obra do edifício Copan ‒ experiência que ele relatou no livro A história do Copan, publicado em 2014 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. A amizade com o arquiteto carioca também foi lembrada na autobiografia Viagem pela carne (Edusp, 2005).

“Ele foi um pesquisador incansável e um grande escritor, que cultivava a palavra como poucos”, avalia o arquiteto José Lira, professor da FAU-USP e atual diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) daquela universidade. Lira organizou mais de 50 crônicas e ensaios de Lemos no livro Da taipa ao concreto, lançado em 2013 pela editora Três Estrelas. Muitos desses textos haviam sido veiculados no jornal Folha de S.Paulo e evidenciam o esforço do veterano em traduzir, para um público amplo, a importância da preservação do patrimônio histórico da cidade.

Lemos assinou também dois títulos da coleção Primeiros Passos ‒ célebre série da editora Brasiliense que buscava explicar de forma concisa temas variados. Nos livros, sintetizou assuntos aos quais dedicou a vida: O que é arquitetura? (1980) e O que é patrimônio histórico? (1981).

Seu esforço de popularização da arquitetura inclui ainda a vasta pesquisa contida no Dicionário de arquitetura brasileira (Edart, 1972), escrito em parceria com o arquiteto Eduardo Corona (1921-2001), de quem Lemos foi assistente na FAU-USP. “Foi a primeira publicação no Brasil a reunir, em mais de 500 páginas, verbetes relacionados ao fazer arquitetônico, a materiais de construção e ao morar”, afirma Lira.

A produção teórica, que soma quase três dezenas de títulos e ajudou a sistematizar a história da arquitetura brasileira, levou estudantes como o baiano Nivaldo Andrade a cruzar o país para participar de congressos que contavam com a participação de Lemos. “Ele era uma inspiração porque unia habilidade de pesquisa, prática profissional e atuação em órgãos como o Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo] e o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]”, diz Andrade, hoje professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e vice-presidente da União Internacional dos Arquitetos (UIA).

Segundo o arquiteto Hugo Segawa, da FAU-USP, a prática profissional de Lemos envolve não apenas a coordenação das obras de Niemeyer na década de 1950, mas também projetos autorais pouco conhecidos do público leigo. Entre eles figuram a Casa de Ibiúna (SP), projetada em 1964 para o sociólogo e ex-presidente da República (1995-2002) Fernando Henrique Cardoso, e o Teatro Maria Della Costa, na capital paulista.

Para o historiador Paulo Garcez, diretor do Museu Paulista da USP, Lemos não se restringiu a uma história formal da arquitetura. “Sua perspectiva tinha em conta os agentes, os processos sociais e as materialidades. Enfim, o próprio fazer arquitetônico”, afirma Garcez, que foi aluno do arquiteto na pós-graduação.

Na tese de doutorado defendida em 1973 na FAU-USP e publicada como livro pela editora Perspectiva mais tarde, em 1976, com o título Cozinhas, etc.:Um estudo sobre as zonas de serviço da casa paulista, Lemos lançou um olhar acadêmico sobre casas populares, os anseios dos proletários em relação ao conforto e a vida das donas de casa das vilas operárias. Em vídeo gravado para o curso de Arquitetura do Mackenzie, em 2017, ele relatou as dificuldades para propor a preservação desse tipo de construção e disse: “Tombamento é feito para coisas das classes dominantes. Ninguém tomba casa de pobre”.

Embora a preservação do patrimônio não tenha alcançado a abrangência desejada por Lemos, seus anos de atuação no Condephaat entre 1968 e 1989 garantiram a permanência de construções como a da escola Caetano de Campos, no centro paulistano. O prédio, inaugurado em 1894, corria o risco de ceder lugar à estação República do metrô. “Em 1975, ele fez, junto com o arquiteto Benedito Lima de Toledo [1934-2019], a primeira lista oficial de bens que se tornariam protegidos no município”, recorda a arquiteta Silvia Wolff, da UPM, ex-orientanda de mestrado e doutorado de Lemos, entre 1988 e 1997. Por 41 anos, Wolff atuou no Condephaat. “Os procedimentos e métodos estruturados pelo professor Lemos na origem do Condephaat e apresentados em suas aulas estão na base da preservação do patrimônio cultural que se desenvolveu em São Paulo”, afirma.

O ecletismo – estilo popular na capital paulista entre o final do século XIX e início do XX, que teve no arquiteto Ramos de Azevedo (1851-1928), autor do Theatro Municipal de São Paulo, seu maior expoente – era, à época, considerado pela academia desprovido de valor arquitetônico e pouco brasileiro. Muitas construções estariam fadadas ao desaparecimento, mas Lemos ajudou a mudar esse cenário com seus pareces técnicos nos órgãos de preservação. Em 1993, publicou Ramos de Azevedo e seu escritório (Editora Pini), obra que lhe rendeu o Prêmio Jabuti na categoria Ensaio no ano seguinte.

Além de arquiteto e pesquisador, Lemos foi desenhista e artista plástico. “Desenho ouvindo música – dos clássicos Bach [1685-1750] e Mozart [1756-1791] ao jazz de Thelonious Monk [1917-1982] e Charles Mingus [1922-1979]”, contou em entrevista na década de 1970 ao jornalista e museólogo Luiz Ernesto Kawall (1927-2024), um dos fundadores do Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo.

Ao longo de seus quase 60 anos de docência ininterrupta na FAU-USP, dedicados ao ensino de História da Arquitetura, doou à biblioteca da faculdade materiais iconográficos do edifício Copan, mais de 4 mil fotos e o anteprojeto do prédio do MAC-USP de 1983, sediado no campus Butantã. Em sua trajetória, ajudou ainda a consolidar o Museu da Casa Brasileira – que funcionou entre 1970 e 2023 no Solar Fábio Prado, em São Paulo –,  cedendo milhares de fichas de pesquisa sobre mobiliários e utensílios escritas por ele e seus alunos entre 1970 e 1980.

Uma das últimas homenagens que recebeu foi o título de Professor Emérito da FAU-USP, concedido em 2022. Em junho, na semana em que completou um século de vida, lançou o livro Cidade sem vestígio (Instituto Sarará), que trata da preservação do patrimônio histórico a partir do solar da marquesa de Santos, última casa de taipa remanescente do período Colonial em São Paulo.

Lemos deixa a esposa, a arquiteta Clara Correia d’Alambert, a filha Maria Isabel Cerqueira Lemos (do primeiro casamento), além dos netos João e Alice.

Uma versão deste texto foi publicada na edição impressa representada no pdf.

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