Imprimir PDF Republicar

Ciência Geral

Carreira dupla

Além de física de laser, Carlos Henrique de Brito Cruz se destaca também como articulador de C&T

Brito em seu laboratório: só com o laser é possível fazer experimentos em tempo muito curto

MIGUEL BOYAYANBrito em seu laboratório: só com o laser é possível fazer experimentos em tempo muito curtoMIGUEL BOYAYAN

O físico norte-americano Charles Townes, um dos criadores do laser, costumava ouvir dos colegas que sua descoberta era uma solução à procura de um problema. Isso ocorreu no começo dos anos 1960, quando não havia nem idéia das aplicações que essa luz possibilitaria. Naquele momento, o objetivo dos cientistas era apenas “entender, explorar e criar”, nas palavras do próprio Townes. Alguns anos depois, em 1976, três alunos de graduação do curso de engenharia eletrônica do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) levaram ao pé da letra essa lição. Sem orientador, decidiram tentar desenvolver seu próprio laser, um objeto de estudo ainda relativamente novo. Como havia poucos professores no país que conhecessem o assunto, recorreram à biblioteca e descobriram um texto na Scientific American que os ajudou no projeto. “Era uma seção chamada Amateur Scientist, que ensinava a fazer algumas experiências científicas”, conta o engenheiro e físico Carlos Henrique de Brito Cruz, atual reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os três jovens estudaram o assunto e conseguiram algo nada usual: sozinhos, desenvolveram um laser de gás carbônico. Em seguida, publicaram um artigo e até criaram uma empresa. O laser de gás carbônico servia para processar alguns tipos de material úteis para empresas. Um industrial que estava quase comprando uma máquina importada para queimar tubos de plástico ficou sabendo da experiência no ITA e sugeriu aos estudantes fazer o equipamento para ele. No Brasil, a solução tinha achado seu problema.

“Como o instituto achou muito complicado fazer um convênio com ele, nós criamos uma empresa e construímos a máquina com o laser necessário para a fábrica.” O industrial pagou um terço adiantado, um terço quando eles terminaram de construir e o resto na instalação. Para Brito, esse sucesso inicial foi um dos fatores determinantes que orientou sua principal linha de pesquisa nos anos seguintes. Não pela aplicação imediata que a experiência teve, mas pelo aprendizado e fascínio que ela proporcionou. Este ano, Brito, nascido no Rio de Janeiro e criado em São Paulo, foi um dos ganhadores do Prêmio FCW na categoria Ciência Geral por sua contribuição ao estudo dos fenômenos ultra-rápidos, que acontecem em um tempo menor que 1 picossegundo, ou seja, 1 milionésimo de milionésimo de segundo. “Cheguei aos fenômenos ultra-rápidos por causa do laser, só com ele é possível fazer experimentações em períodos tão curtos”, diz.

Laser é um acrônimo de Amplificação da Luz pela Emissão Estimulada da Radiação (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation, em inglês). Significa que é uma fonte que utiliza a luz emitida por um átomo ou molécula para estimular a emissão de mais luz por outros átomos ou moléculas e, nesse processo, amplificar a luz original. Isso faz do laser uma luz pura, sem mistura, diferentemente da luz comum, formada de vários comprimentos de onda – ela não se dispersa, ou seja, o único desvio que sofre é quando sai pela fenda de seu emissor. Por isso pode ser direcionada para grandes distâncias e concentrada apenas num ponto. Suas aplicações são múltiplas e contemplam muitas áreas. As mais conhecidas hoje estão na medicina. Médicos já utilizam essa tecnologia em cirurgias e diagnósticos há alguns anos. A indústria foi quem primeiro descobriu sua utilidade para fazer pequenos orifícios em materiais muito duros ou de elevado ponto de fusão, como o aço e o diamante. O processo é rápido e não altera a área em torno do orifício. As artes gráficas e cênicas usam o laser em holografias, shows e efeitos especiais.

Brito continuou a trabalhar com laser quando foi fazer seu mestrado na Unicamp, em 1979, orientado por Sérgio Porto, que morreu seis meses depois e foi substituído por Artemio Scalabrin. A dissertação versou sobre laser de gás carbônico pulsado, então um problema técnico sofisticado. “O tema era bom porque requeria muita ciência e algumas artimanhas para ser resolvido”, lembra ele. Foi nesse período que o pesquisador deparou com os fenômenos ultra-rápidos, que continuaram a ser estudados no seu doutorado, pós-doutorado e, atualmente, no Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica, financiado pela FAPESP. Ele começou, então, a fazer experimentos com laser com pulsos de microssegundos (milionésima parte do segundo), de picossegundos (mil vezes mais rápido que o microssegundo) e de femtossegundos (1 quatrilhonésimo de segundo).

Quando iniciou sua carreira, Brito era um dos poucos no Brasil a fazer lasers com pulsos muito curtos, no começo dos anos 1980. “Naquela época, fazíamos trabalhos na Unicamp em que fomos pioneiros em todo o mundo”, diz. “Depois, já no meio da década de 1980, havia quatro grupos no mundo capazes de fazer laser com pulsos de femtossegundos.” A principal contribuição para o estudo dos fenômenos ultra-rápidos ocorreu quando Brito passou uma temporada no Bell Labs, nos Estados Unidos, em 1986 e 1987, depois do doutoramento. Lá trabalhou nas aplicações em como usar laser com pulsos ultra-rápidos para estudar alguns fenômenos que ocorrem com materiais diversos. Ele participou de forma determinante em um experimento para fazer o laser com o pulso mais curto que jamais havia sido feito. O recorde, até então, eram 8 femtossegundos. “Demonstrei que era possível fazer pulsos de 6 femtossegundos.” A experiência teve grande visibilidade e se tornou modelo para fazer pulsos curtos. Por mais de dez anos ninguém conseguiu fazer pulsos com menos de 6 femtossegundos.

Experiência com laser: uso contempla da medicina às artes gráficas e cênicas

MIGUEL BOYAYANExperiência com laser: uso contempla da medicina às artes gráficas e cênicasMIGUEL BOYAYAN

“Uma das boas coisas da ciência de ponta é conseguir estudar e aprender coisas que ninguém consegue vislumbrar”, diz Brito. “O duro é que essa exclusividade dura pouco porque tem sempre alguém nos seus calcanhares.” Na volta ao Brasil, passou a ver seu objeto de estudo de forma diferente. Até aquela época, ele vinha fazendo ciência. Decidiu, então, abrir o leque e constituiu um grupo que fazia pesquisa de olho nas comunicações ópticas. Na segunda metade dos anos 1990 houve um fato que deu maior importância a essa linha de pesquisa. Antes da Internet, as empresas de comunicação achavam que a largura da banda utilizada era suficiente para tudo. Quando o uso das imagens começou a se tornar corriqueiro na rede, viu-se que era preciso uma largura muito maior. O foco do trabalho feito na Unicamp pelo grupo de Brito terminou por aliar a boa ciência que já fazia com as possíveis aplicações nas telecomunicações.

Hoje Brito continua um pesquisador ativo orientando alunos, mas freqüenta menos seu laboratório em razão do cargo de reitor da Unicamp. Em 1991 tornou-se pela primeira vez diretor do Instituto de Física da Unicamp. A partir desse ano, não ficaria mais sem ocupar um lugar dentro da hierarquia da universidade e em instituições como a FAPESP. Em 1994 foi nomeado pró-reitor de Pesquisa da Unicamp; em 1995, membro do Conselho Superior da FAPESP; em 1996, presidente do Conselho Superior da mesma instituição, e em 2002, reitor da Unicamp. As novas exigências o levaram a se aprofundar nos temas da política científica e tecnológica e da educação.

“No período em que fui pró-reitor passei a viver uma esquizofrenia”, relata. “Na discussão de políticas para pesquisa via as idéias serem mais ou menos ‘chutadas’, sem muita base, que era o contrário do que eu realizava no laboratório: estudar e medir antes de fazer.” A falta de parâmetros o levou a pesquisar e comparar os casos de política científica no Brasil e no exterior, atividade que o ajudou quando se tornou presidente da FAPESP e na reitoria da Unicamp. Nessa fase, Brito também percebeu alguns equívocos históricos. Em 1994 dizia-se que a universidade era onde se devia fazer tecnologia para, depois, transferir para a empresa. Ele corrigiu o foco da discussão: na verdade, a pesquisa feita na empresa é tão importante quanto na universidade. Elas ocorrem nos dois lugares por razões diferentes. Na indústria, tem a ver com competitividade e, na universidade, com aprendizado e conhecimento. “Esse debate estava encalacrado naquela época. Eu insistia, por exemplo, que as patentes devem nascer de preferência na empresa. E que a universidade é o lugar de se trabalhar com todo o conhecimento, independentemente de considerações utilitárias que têm sido tão recorrentes no Brasil.”

As posições do pesquisador, expressas em freqüentes reuniões com os gestores de ciência e tecnologia da época e por meio de assíduos artigos em jornais e revistas, ajudaram a mudar as perspectivas futuras para o setor. O marco foi a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia de 2001, que, entre outras coisas, estabeleceu a importância da atividade de pesquisa e desenvolvimento realizada no ambiente empresarial. A criação dos programas Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), em 1994, e Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), em 1998, ambos da FAPESP, também auxiliou na mudança de rumo neste campo, sem nunca deixar de lado a importância central da pesquisa fundamental motivada pela curiosidade do cientista.

Nos últimos dois anos, Brito tem-se dedicado especialmente à educação. O tema não é estranho para ele, coordenador de um dos projetos de Política Pública da FAPESP, numa parceria entre a Unicamp e a prefeitura de Campinas em que foram selecionadas dez escolas municipais com o objetivo de despertar vocações para as ciências entre os alunos. Agora ele procura debater a necessidade do investimento nas universidades públicas, a questão da inclusão nessas instituições e propor alternativas à política de cotas, que chama de “solução preguiçosa”. A disposição para encarar essas batalhas vem, de acordo com ele, do método científico usado desde a graduação. “Esses assuntos devem ser tratados do mesmo modo que o cientista trata sua pesquisa: primeiro tem de estudar detidamente a questão para só depois propor uma saída”, afirma. “Mas não é desse jeito que se costuma fazer política no Brasil.”

Um velho amigo, colega dos tempos do ITA, resume a trajetória profissional de Brito: “Ele transita com naturalidade entre os mais diversos tipos de inteligência, ou seja, faz física de laser com a mesma competência com que analisa e propõe políticas mais eficientes para ciência e tecnologia”, diz Gilberto Câmara, coordenador-geral de Observação da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), especialista em informática do setor espacial. “Essa capacidade é difícil de ser encontrada em qualquer país do mundo, não só no Brasil.” Câmara explica que os pesquisadores são naturalmente introspectivos, excessivamente concentrados no próprio trabalho em razão do alto nível de exigência, comum na pesquisa de ponta. “Eles se esquecem de olhar a sua volta e ver o que está acontecendo, ou, então, fazem apenas política e colocam a ciência de lado.” Segundo Câmara, o atual reitor da Unicamp sempre fugiu desse padrão e conseguiu fazer uma carreira dupla. “Ele sempre argumenta baseado em dados, de modo claro, o que torna difícil rebater suas idéias”, afirma. Quase 30 anos depois da primeira experiência com laser, Brito, 48 anos, casado, com um filho, agora virou um especialista em arrumar soluções para os problemas da física, da política científica e da universidade pública.

Republicar