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Mudanças climáticas

Chuvas extremas, falhas de prevenção e geografia local causaram desastre no Sul

Escoamento da água em áreas alagadas é muito lento e prolonga o impacto da catástrofe no Rio Grande do Sul

Município de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, tomado pelas águas em 7 de maio

Nelson Almeira/ Getty Images

O volume de chuvas que atingiu o Rio Grande do Sul entre o fim de abril e o início de maio foi um evento climático extremo que causou o maior desastre socioambiental na história do país.  No dia 2 de maio, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) emitiu uma nota alertando que, nas 72 horas anteriores, alguns municípios gaúchos haviam registrado quase 500 milímetros (mm) de chuva, como Santa Maria, no centro do estado, e Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. Outras cidades, também ao longo de três dias, receberam de 200 a 300 mm de água.

Esses volumes são enormes. Nos últimos 30 anos, a média de chuva mensal entre abril e maio em todo o estado variou de 100 a 220 mm, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). “Toda previsão meteorológica tem limitações. Mas o aviso de risco de desastre no Rio Grande do Sul foi emitido com antecedência, ainda em abril”, diz o climatologista José Marengo, do Cemaden.

As fortes chuvas persistiram maio adentro e começaram a afetar também o estado de Santa Catarina. Até o fechamento desta reportagem, 463 dos 497 municípios gaúchos tinham sido afetados em maior ou menor grau de severidade pelas chuvas e enchentes persistentes, de acordo com a Defesa Civil do Rio Grande do Sul – é como se um tsunami tivesse varrido o estado. O número de mortes chegou a 163 e o de desaparecidos a 65.  Além do cenário de destruição e prejuízo de bilhões de reais em infraestrutura e bens materiais, mais de 580 mil moradores tiveram de deixar suas casas, 64 mil estão em abrigos e 2,1 milhões de pessoas foram afetadas.  A mensuração final dos estragos só virá quando a água escoar de todas as áreas alagadas, o que ocorre muito lentamente.

A característica da rede hidrográfica gaúcha contribuiu para agravar a grande enchente. Boa parte da chuva que cai no centro e no norte do estado é transportada pelos rios até o lago Guaíba, na Região Metropolitana de Porto Alegre, e, em seguida, à Lagoa dos Patos, mais ao sul, que desemboca no oceano. “Na região de Porto Alegre, as águas não baixaram rapidamente por causa das chuvas persistentes, solo encharcado e saturado e pela dificuldade de escoamento da água em direção ao oceano devido à ação dos ventos”, explica o engenheiro ambiental Fernando Mainardi Fan, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Nas chuvas do ano passado, o sistema de contenção das enchentes no Guaíba já tinha apresentado algumas falhas na vedação de comportas e no funcionamento de bombas. Agora ele não aguentou.”

Devido aos alagamentos persistentes, várias cidades tiveram que ser parcial ou totalmente evacuadas, como Eldorado do Sul, Canoas e Porto Alegre, que são coladas ao Guaíba. A cota de inundação do lago é de 3 metros (m), mas, em tese, o sistema poderia dar conta de uma cheia de até 6 m. A enchente deste ano levou o nível ao recorde de 5,35 m. A maior marca anterior tinha ocorrido na grande enchente de 1941, com 4,77 m de alta.

Inpe / Amazônia-1 / CBERS-Imagens do Inpe fornecidas pelos satélites Amazônia-1 em 20 de abril, antes das chuvas,e CBERS-4 em 6 de maio, no auge das cheiasInpe / Amazônia-1 / CBERS-

Segundo Fan, as áreas mais atingidas foram no entorno dos rios Jacuí, Taquari, Caí, Sinos, Gravataí e Vacacaí, além do Guaíba (ver imagens comparativas ao lado). Cidades próximas aos dois primeiros rios, como Encantado e Muçum, já haviam sido afetadas pelas enchentes no fim de 2023 e voltaram a ficar cobertas de água. O nível subiu principalmente por causa da chuva e do represamento das águas no início do Guaíba.

O Rio Grande do Sul está em uma região que tem sido alvo de alertas frequentes sobre possíveis desastres associados a variações bruscas no clima. Desde maio de 2023, o estado foi citado em 12 boletins mensais sobre eventos extremos do Inmet, que registram fenômenos meteorológicos como chuvas e ondas de calor que fogem do padrão das médias históricas observadas e podem causar alagamentos, deslizamentos e outros impactos. Os alertas mais recentes no território gaúcho tiveram relação com chuvas intensas, como em setembro do ano passado (ver Pesquisa FAPESP nº 334).

Nos últimos 30 anos, com o aumento do aquecimento global, uma nova realidade climática se instalou no país e, de acordo com especialistas, a região Sul é uma das mais afetadas por fortes chuvas. Mapas do Inmet referentes ao período de 1991 a 2020 indicam um acumulado médio anual de chuvas no Sul entre 1.400 e 2.200 mm. Entre as décadas de 1960 e 1990e entre 1980 e 2010, esse índice se situou, respectivamente, na faixa de 1.050 a 2.050 mm.

A tendência de aumento da precipitação no Sul e em parte do Sudeste também foi observada em diferentes estudos e difere da realidade de grande parte do país, que vem ficando cada vez mais seco (ver Pesquisa FAPESP nº 338). “É possível diferenciar bem os períodos secos dos chuvosos em outras regiões. Mas, no Sul, temos uma precipitação que costumava ser bem distribuída ao longo de todo o ano”, comenta o meteorologista Douglas Lindemann, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). “Oscilações sempre existiram, devido às influências de fenômenos naturais como o El Niño, que traz mais chuvas, e o La Niña, que ocasiona períodos de seca. O que vem mudando é que as chuvas deixaram de ser bem distribuídas e, em alguns meses, chove torrencialmente.”

A intensificação das cheias em rios sulistas foi constatada num artigo publicado em setembro de 2022 na Nature Communications. O estudo buscou analisar o quanto o ciclo da água vem se modificando em todo o território nacional. Com o aquecimento do planeta, esse ciclo natural – que envolve os processos de evaporação, transpiração das plantas, formação de nuvens, chuva e abastecimento de aquíferos – sofre alterações. Uma das explicações reside no fato de que, em condições mais quentes, a atmosfera carrega mais umidade (vapor-d’água). Isso abastece condições meteorológicas que levam a chuvas, como os ciclones extratropicais.

Carlos Macedo/Bloomberg via Getty ImagesCidade de Porto Alegre totalmente alagada em 5 de maioCarlos Macedo/Bloomberg via Getty Images

A análise compreendeu os dados de observação diária do fluxo e escoamento de rios em 886 estações hidrométricas entre 1980 e 2015. Os resultados indicam que, em parte do Sul do Brasil, no norte da Amazônia e no território mais ao leste de Mato Grosso do Sul, as enchentes se tornaram mais frequentes e as secas menos comuns.  “O ciclo mudou em praticamente todo o país. No Sul, as atividades humanas estão causando instabilidades na vazão natural dos rios”, observa o geógrafo Vinícius Chagas, primeiro autor do estudo e atualmente pesquisador de pós-doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob supervisão do engenheiro ambiental Pedro Chaffe.

No total, segundo o artigo, 69% do território da região Sul vem enfrentando mais cheias.  A situação é crítica no nordeste do Rio Grande do Sul (onde a atual tragédia foi devastadora), em quase todo o território catarinense e o sudeste do Paraná.  Por outro lado, no sul do Rio Grande do Sul, tanto as cheias quanto as secas se mostraram menos frequentes ou intensas nos últimos 40 anos. Os dados acendem um alerta, ainda que nem todos os episódios de cheias ou secas tenham gerado grandes transtornos. “O período de recarga dos aquíferos costumava ser ao longo do ano, mas isso mudou”, diz Chagas.

É difícil enumerar todas as razões para as mudanças observadas no padrão pluviométrico no Sul do Brasil. A ocorrência de chuva depende de fatores atmosféricos e oceânicos, cada evento extremo é único e o clima da região não é homogêneo. No desastre atual, devido a condições climáticas específicas, as nuvens de chuvas permaneceram estacionadas por muitos dias sobre partes do Rio Grande do Sul, o que concentrou a precipitação em certos lugares. “A frente fria, resultado da interação entre as massas de ar frio e quente, está se retroalimentando no Rio Grande do Sul porque há muita umidade e está quente para essa época do ano”, explica Lindemann.

De acordo com a literatura científica, os sistemas climáticos ficam mais instáveis e imprevisíveis com o aumento das temperaturas. O ano de 2023, por exemplo, foi o mais quente da história do planeta. Segundo o Inmet, a temperatura média no Brasil no ano passado foi 0,69 grau Celsius (oC) acima da média histórica das últimas três décadas, que foi de 24,23 oC.

No entanto, as chuvas torrenciais deste ano no Rio Grande do Sul caíram em um momento razoavelmente esperado e previsto por vários estudos. Quando ocorre o fenômeno climático El Niño, marcado pelo aquecimento excessivo das águas superficiais do centro e do leste do oceano Pacífico equatorial, aumenta o risco de formação de eventos extremos em todo o território nacional.

AFP Photo/Satellite Image ©2024 Maxar TechnologiesVista área da mesma região do vale do rio Taquari depois das cheias de setembro de 2023 (no alto) e de maio deste anoAFP Photo/Satellite Image ©2024 Maxar Technologies

Um trabalho publicado em agosto de 2017 na revista International Journal of Climatology observou em Santa Catarina a intensificação de chuvas extremas associadas ao El Niño, principalmente na primavera, entre 1979 e 2015. O El Niño produziu mais eventos extremos do que os associados à La Niña (resfriamento anormal desse trecho do Pacífico) ou a anos neutros, quando as temperaturas do oceano estão dentro do padrão esperado. Ainda assim, entre 2000 e 2015, o número de anomalias climáticas durante o La Niña e em anos neutros aumentou, enquanto houve uma pequena queda na quantidade de eventos significativos associados ao El Niño.

“No Rio Grande do Sul, houve uma estiagem severa de três anos por causa de episódios consecutivos de La Niña.  O que se observa é que o espaço entre esses eventos vem encurtando, e o La Niña está durando vários anos. Isso deve ser um efeito direto das mudanças climáticas”, comenta a oceanóloga Regina Rodrigues, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coautora do artigo. O órgão norte-americano que monitora a região do Pacífico equatorial, a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (Noaa), comunicou em maio deste ano que o El Niño atual termina em junho, e um próximo La Niña deve começar até setembro de 2024.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa Fapesp

A ocorrência de eventos extremos em razão dos fenômenos El Niño e La Niña também foi estudada pela geógrafa Venisse Schossler, da UFRGS. Em trabalho publicado em 2018 na Revista Brasileira de Recursos Hídricos, ela associou o aquecimento e o resfriamento anormal do Pacífico equatorial a variações do Modo Anular Sul (SAM), um cinturão de pressão ao redor do Círculo Polar Antártico que afeta diariamente a temperatura e as chuvas no hemisfério Sul. “Quando associamos o El Niño/La Niña ao SAM, o cenário se torna propício para ocorrer eventos mais extremos. Com as mudanças climáticas, a camada mais superficial da atmosfera se expande por causa do aquecimento, e isso mexe com os campos de pressão”, explica Schossler.

A geógrafa ressalta que, em maio deste ano, o SAM registrou dias consecutivos com uma pressão muito abaixo do normal, situação que favoreceu a passagem de massas de ar frio em direção ao Brasil. Isso ocorre com certa frequência na região Sul. O problema é que as bolhas de ar gelado estão encontrando um ambiente cada vez mais quente na ponta meridional do país. “Santa Catarina e Rio Grande do Sul estão em uma zona de transição entre os climas da região tropical e o de altas latitudes, como a região polar”, explica Rodrigues. “As mudanças climáticas estão empurrando massas de ar quente mais para o Sul. Quando uma massa de ar frio encontra uma de ar muito mais quente, a instabilidade na atmosfera é maior.” Resultado: chuvas mais intensas.

O volume elevado de chuvas é o elemento detonador do processo que provocou um desastre socioambiental sem precedentes no Rio Grande do Sul.  A geografia dos rios e a ocupação desordenada do solo, com áreas de várzea tomadas por moradores ou atividades econômicas, também tiveram seu papel na ocorrência da tragédia. No entanto, especialistas destacam que a extensão dos danos foi ampliada em razão da falta de políticas públicas estruturadas, em âmbito nacional e regional, para prevenir a ocorrência de desastres e mitigar seus efeitos. “No Brasil, a atuação do poder público se limita a adotar ações que são uma resposta depois que ocorre uma tragédia”, diz o sociólogo Victor Marchezini, do Cemaden. “Prevista desde 2012, a implementação de um plano nacional de gestão de riscos e resposta a desastres socioambientais não ocorreu até agora.”

Segundo as projeções do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), os eventos extremos tendem a ficar mais frequentes e intensos se nada for feito para frear o aquecimento do planeta. Um estudo liderado pelo meteorologista Cristiano de Oliveira, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e o engenheiro agrícola colombiano Álvaro Ávila Díaz, da Universidade do Rosario, de Bogotá, identificou que os modelos matemáticos disponíveis utilizados pelo IPCC têm dificuldades de apontar tendências para o cenário brasileiro. No entanto, em todas as simulações, o futuro do Sul envolve muita chuva e aumento dos períodos de seca.

A reportagem acima foi publicada com o título “Um estado submerso” na edição impressa nº 340, de junho de 2024.

Artigos científicos
CHAGAS, V.P.B. et al. Climate and land management accelerate the Brazilian water cycle. Nature Communications. 1 set. 2022
SCHOSSLER V. et al. Anomalias de precipitação na costa sul brasileira associadas aos modos de variabilidade climática SAM e ENOS. Revista Brasileira de Recursos Hídricos. 25 fev. 2018
FERNANDES, L.G. e RODRIGUES, R.R. Changes in the patterns of extreme rainfall events in southern Brazil. International Journal of Climatology. 17 ago. 2017

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