Em um experimento recente, o físico Cid Bartolomeu de Araújo usou feixes de luz para estudar grupos de cinco ou seis átomos, que, surpreendentemente, perdem parte de suas características individuais e se comportam como se fossem um tipo de agregado chamado metamolécula. O conhecimento produzido nos laboratórios do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), além de desvendar novas propriedades da luz e de novos materiais, ajuda a aprimorar a eficiência de fibras ópticas e vidros especiais, como os usados em celulares e células fotovoltaicas, sem contar os resultados inesperados. Araújo ficou feliz ao ver que três trabalhos de seu grupo de pesquisa reforçaram a argumentação que permitiu ao físico italiano Giorgio Parisi ganhar o Prêmio Nobel de Física de 2021.
Especialidade
Óptica não linear
e fotônica
Instituição
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Formação
Graduação em engenharia elétrica pela UFPE, mestrado e doutorado em física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ)
Produção
Autor de 359 artigos científicos e coautor de 2 livros publicados por editoras internacionais
Na década de 1970, com outros jovens físicos, Araújo participou da criação do Departamento de Física da UFPE, que se tornou um dos mais produtivos do país em óptica não linear, área da física que estuda os efeitos da alta intensidade de luz sobre sólidos, líquidos ou gases. Aos 78 anos, casado, três filhos e seis netos, ainda que aposentado, ele percorre diariamente os laboratórios e participa das pesquisas. Um livro lançado em dezembro, História da física no Recife (Cepe Editora), escrito por Ascendino Silva, Marcos Galindo, Osvaldo Pessoa Jr. e Wanderley Vitorino, ressalta a importância do grupo de física da UFPE e o vincula à tradição científica do estado, enraizada no trabalho de astrônomos e naturalistas trazidos no século XVII pelo conde alemão-holandês Maurício de Nassau (1604-1679) quando a região foi ocupada pelos holandeses.
O senhor tinha 26 anos, em 1971, quando participou da criação do Departamento de Física da UFPE, um dos primeiros e ainda hoje um dos mais produtivos nessa área no país. Como se planejaram?
Terei de voltar alguns anos para responder. José Rios Leite, meu colega até hoje, e eu estudamos engenharia elétrica na UFPE e depois no mestrado em física na PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio. Nós dois e mais três outros colegas da UFPE que estavam em São Paulo planejávamos fazer o doutorado fora do Brasil e depois retornar ao Recife. O físico carioca Sérgio Mascarenhas [1928–2021] fez uma proposta: “Vocês podem voltar e formar um grupo de pesquisa no Recife e conseguir financiamento para tocar as pesquisas”. Nessa época, início da década de 1970, era relativamente fácil conseguir dinheiro para pesquisa porque a competição ainda era pequena. Mascarenhas, contudo, avisou: “Mas vocês precisam de alguém mais experiente conduzindo o trabalho”. Conversamos sobre alguns nomes e ele próprio escolheu e convidou Sérgio Rezende, que em 1970 era considerado uma pessoa muito experiente. Fazia apenas três anos que ele havia terminado o doutorado no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos]. Ele topou vir para o Recife, com a promessa de ficar um ou dois anos, mas gostou e está aqui até hoje [ver entrevista com Sérgio Rezende no suplemento Prêmio Conrado Wessel de Pesquisa FAPESP de janeiro de 2012]. Uma coisa muito importante, que permitiu a formação do grupo, foi o objetivo comum. Do ponto de vista científico, focalizamos uma área em particular, a de materiais magnéticos, e com isso conseguimos criar um ambiente em que todos falavam a mesma língua. Mas foi uma coisa arriscada para todos nós.
Por quê?
A probabilidade de não dar certo era muito grande. Na época, poucas pessoas faziam pesquisas na UFPE e em outras universidades da região. Vários grupos de física estavam começando também em Campinas e em São Carlos, no interior paulista. Quando viemos para o Recife não existiam laboratórios nem físicos no departamento. Só engenheiros que eram professores de física em tempo parcial e trabalhavam também em escritórios particulares ou empresas. Meu primeiro trabalho na UFPE foi o projeto da subestação elétrica para alimentar o laboratório. O projeto foi feito em conjunto com um engenheiro da prefeitura da UFPE. Como eu tinha feito graduação em engenharia, fui parcialmente responsável pela subestação. Sérgio Mascarenhas e o físico do Rio Grande do Sul Gerhard Jacob [1937-2019] levaram nosso plano de pesquisa para convencer o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] a nos dar o primeiro financiamento. Mascarenhas já tinha criado outros grupos em São Carlos e mesmo no México, e acreditou na capacidade do nosso grupo. Fui contratado em 1971, antes de concluir o doutorado. Terminei o doutorado na PUC-RJ, em 1975, e logo depois saí para um pós-doutorado na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Voltei, para ficar no Recife, em dezembro de 1977. Conseguimos os primeiros recursos do CNPq, mas levou um tempo para o laboratório se estabelecer e começar a dar resultados. Nesse meio tempo, procuramos fazer um pouco de teoria, para não ficarmos parados, não perder a fronteira daquelas poucas áreas em que estávamos envolvidos. Naquela época, a maioria das revistas científicas demorava a chegar, algumas menos, porque fazíamos a assinatura e vinham por correio aéreo. Mas, em geral, recebíamos revistas com atraso de cinco a seis meses. Era um problema, porque começávamos uma pesquisa e, meses depois, recebíamos uma revista e víamos que alguém já tinha feito aquilo.
A equipe atual do departamento mantém esse espírito de união que norteou o início do trabalho de vocês?
A motivação vem da convivência, de você estar animado com um trabalho e contagiar os outros colegas. Tentamos nos cercar de pessoas que pensam parecido e tenham a mesma empolgação com a pesquisa. Para selecionar os estudantes de iniciação científica, por exemplo, uma das primeiras perguntas que um colega fazia era: “Você sabe consertar sua bicicleta?”. A partir daí se pode ver se é um cara que gosta de mexer com as mãos e consertar coisas, uma habilidade muito importante em um laboratório de física experimental como o nosso.
Em 1980, o senhor e um colega da UFPE publicaram um artigo na Chemical Physics Letters propondo que duas moléculas distintas interagindo entre si dentro de um cristal orgânico podem absorver simultaneamente dois fótons, as partículas de luz, um efeito que décadas depois foi observado experimentalmente. Em que consiste esse fenômeno exatamente?
Esse foi um dos trabalhos teóricos ao qual eu e Rios Leite nos dedicamos enquanto não tínhamos um laboratório bem instalado. No modelo mais simples de átomo, o núcleo tem cargas positivas e os elétrons, que giram ao redor, negativas. Quando os átomos estão distantes entre si, o efeito do campo elétrico das cargas de um átomo sobre as cargas do outro átomo é pequeno. Inversamente, quando estão mais próximos, a intensidade do campo elétrico aumenta. O que propusemos foi que, para determinadas distâncias e certas condições, os dois átomos próximos podem se comportar como um sistema único, como se fossem uma quase molécula. Quando excitados por um feixe de luz de frequência apropriada, eles absorvem e compartilham a energia; parte vai para um átomo e parte da energia vai para outro. Se estivessem isolados, cada átomo, mais exatamente um elétron, pegaria toda a energia para si e mudaria de estado, de menor para o estado mais energético, retornando ao estado anterior, quando emite a energia que recebeu. Quando estão próximos, há uma interação eletrostática entre as cargas dos dois átomos, que favorece a absorção simultânea de dois fótons. Hoje, esse trabalho me parece um problema que poderia entrar em um curso avançado de física, não é nada muito sofisticado. Ainda no início do Departamento de Física na UFPE, como não tínhamos dinheiro para montar laboratórios, Rios Leite e eu exploramos a possibilidade de investigar esse efeito no laboratório, que não tinha sido tratado ainda em outros estudos. Fizemos os cálculos e publicamos o artigo, que tem quatro páginas e ficou dormindo por anos na literatura científica.
Tentaram demonstrar esse efeito experimentalmente?
Quando conseguimos montar o laboratório, tentamos fazer a experiência, mas não tínhamos ainda a infraestrutura para encarar aquele tipo de problema. É preciso ter duas moléculas ou dois átomos muito próximos, de modo que possam interagir. Tentamos com vapores de sódio. Quando conseguimos as condições experimentais, os dois átomos se juntavam e formavam uma molécula de sódio, que não servia para o que queríamos. Tentamos depois com um sólido com íons de terras-raras, mas também não foi possível. Por volta de 1985, um grupo francês fez alguma coisa muito próxima, mas, na verdade, o efeito só foi observado em 2002 por um grupo suíço-alemão. Eles doparam [enriqueceram] um sólido orgânico e com uma sonda conseguiram localizar pares de moléculas que estavam muito próximas, mas não se tocavam, e viram o efeito. Para minha surpresa e do Rios Leite, eles tinham encontrado nosso artigo, 22 anos depois da publicação, e o citaram. O artigo foi destacado na capa da revista Science. Em 2012, a equipe do Vanderlei Bagnato, da USP [Universidade de São Paulo] de São Carlos, comprovou esse efeito em vapor de sódio, mas nesse caso conversamos antes. Fizemos um seminário lá e ele achou que teria condições de fazer esse tipo de experiência. Fez e deu certo. O artigo resultante foi publicado na Physical Review Letters. Foi uma grande satisfação, porque ele trabalhou com um sistema mais próximo do que tínhamos imaginado 32 anos antes. Esse efeito passou a ser chamado de absorção de dois fótons por um par de átomos [TPTA]. É um fenômeno que pode ser descrito dentro do grande arcabouço da óptica não linear. Depois outros grupos também estudaram esse efeito sob diferentes aspectos.
De nosso departamento saíram startups que fazem equipamentos para a área médica com base na fotônica
O que é óptica não linear?
É uma área, atualmente também chamada de fotônica não linear, que estuda os efeitos da alta intensidade de luz sobre os vários estados da matéria, seja ela sólida, líquida, gasosa ou na forma de plasma. Esses materiais de interesse podem estar no laboratório ou na natureza, então é possível fazer óptica não linear em laboratórios que simulam, por exemplo, a atmosfera de estrelas. Do ponto de vista prático, a primeira contribuição importante dessa área foi a criação do primeiro laser e o entendimento de seu funcionamento, na década de 1960. Depois vieram as fibras ópticas, que transportam mensagens e mudaram nossa vida. E daí para frente surgiram as aplicações da óptica na medicina, em testes que avaliam a luminescência [capacidade de emitir luz] de moléculas específicas do sangue, por exemplo.
Em 2013, noticiamos um estudo seu sobre os vórtices ópticos, que chamamos de redemoinhos de luz. Esse trabalho avançou?
Avançou. Um estudante de doutorado que trabalhava nisso na época, Anderson Amaral, agora é professor na UFPE. O que naquela ocasião [ver Pesquisa FAPESP no 211] era um trabalho de pesquisa básica tornou-se uma rotina. Podemos produzir os feixes com vórtices ópticos e usá-los para fazer diferentes experiências. Os feixes têm momento angular, o que significa que, quando incidem sobre um grupo de elétrons ou de moléculas, tendem a fazer os elétrons ou as moléculas girarem. Um grupo dos Estados Unidos e outro da China estão usando essa possibilidade de manipular o perfil da luz para gerar números aleatórios, muito importantes na criptografia das mensagens por celular ou internet.
Com uma carreira tão longa, que momentos importantes o senhor destacaria?
Em 2021, o relatório da comissão da Academia Sueca de Ciências que faz a indicação dos nomes para o Prêmio Nobel fez referência a três trabalhos nossos, feitos no Recife, e que serviram para corroborar as ideias propostas por um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física, o italiano Giorgio Parisi. Isso deixou a mim e aos colegas de nossa equipe muito felizes porque não tivemos nenhum contato com os autores do relatório, mas eles notaram que nossos artigos foram importantes para comprovar as ideias do Parisi. No final da década de 1970, Parisi propôs uma teoria que explicava o comportamento de alguns materiais magnéticos. Outros físicos dessa área concordavam que a teoria do Parisi era correta, mas a forma de verificar era muito indireta. Então, entre 2015 e 2017, usando lasers aleatórios, mostramos de forma direta que a proposta dele estava correta. Não fomos atrás disso, não, sabe? Chegamos a esses resultados por acaso durante a pesquisa em conjunto com um colega professor da UFPE, Anderson Gomes. Como somos físicos experimentais, precisávamos do suporte de outros físicos teóricos. Por coincidência, Ernesto Raposo, um colega bem mais jovem da física estatística aqui da UFPE, já tinha trabalhado com esses processos na física do estado sólido e nos ajudou imensamente.
Vocês têm contato com empresas da área de óptica?
Tivemos contato há muitos anos com Jarbas Castro, da Opto, de São Carlos. A Opto passou por grandes dificuldades financeiras, mas, pelo que sei, já se recuperou [ver Pesquisa FAPESP nos 162 e 227]. Além dela, não conheço outra empresa que fabrique lasers no Brasil. A paulista Quantum Tech fez algumas tentativas, mas faliu depois de dois anos. Em São Paulo há outras empresas que usam lasers para fazer stents [dispositivo usado em cirurgia cardíaca], por exemplo, mas a fonte de luz é importada. De nosso departamento saíram startups que se instalaram na incubadora do Instituto Tecnológico de Pernambuco e desenvolvem equipamentos para a área médica com base na fotônica, mas os diodos emissores de luz também são importados. O custo de produção de um laser é alto e o mercado brasileiro ainda é pequeno. Uma empresa que se estabeleça no Brasil teria de competir internacionalmente com companhias fortes dos Estados Unidos, da França e da Alemanha, que fabricam lasers de uso industrial e médico. Contribuímos com o mercado de forma indireta, porque formamos pessoal qualificado para trabalhar nas empresas, não apenas do Brasil. Alguns estudantes que passaram por aqui estão trabalhando em firmas no Canadá, nos Estados Unidos, na Índia e na China. Dois deles estão em empresas de nanotecnologia, baseadas em partículas preparadas por técnicas químicas, como as que fazemos aqui. Outros são pesquisadores em universidades. Temos nos dedicado a temas que naturalmente treinam os estudantes, por exemplo, para a indústria de medicamentos, que tem muito interesse por nanopartículas. Entretanto, a maioria dos nossos pós-graduandos tem se tornado professores e pesquisadores em universidades no Brasil, em países vizinhos, na América do Norte e na Europa.
O senhor trabalha com outras aplicações da óptica, como as nanopartículas metálicas e os vidros especiais. Em que pé estão?
Estudamos as nanopartículas metálicas – de prata, ouro ou outros metais – como um meio não linear que permite investigarmos, entre outras coisas, a propagação de pulsos de luz que se deslocam sem se deformar, os chamados sólitons. Para entender a motivação para estudarmos sólitons, considere o seguinte: quando acendemos uma lanterna ou uma lâmpada comum, a luz não sai como se fosse um cilindro único, mas diverge, se espalha. Para estudar o comportamento de umas poucas moléculas precisamos de feixes unidirecionais como os sólitons, já que mesmo o laser sofre deformações enquanto se propaga. Os sólitons são objetos ópticos com uma aplicação ampla, por exemplo, em fibras ópticas, para evitar as deformações das mensagens causadas pela sobreposição dos pulsos de luz. Já existem circuitos experimentais com frequência bem alta, que permitem mandar bastante informação em um tempo muito curto. O comportamento das partículas metálicas pode ser descrito por equações que ajudam a construir os sólitons. As partículas metálicas servem também para construir os chamados lasers aleatórios, que não têm espelhos refletores que possibilitam a amplificação da luz, como nos lasers comuns. Posso colocar essas partículas em um líquido ou em um sólido que floresce muito [com um alto poder de emitir luz] e elas vão funcionar como os espelhos do laser.
Em Harvard aprendi as estratégias de pesquisa, por interagir com pessoas que faziam uma física de fronteira
O que já fizeram com essas partículas?
Em uma das nossas experiências mais recentes, publicada há um ano, usamos essas partículas, que têm 10 nanômetros de diâmetro [1 nanômetro é a bilionésima parte do metro], para estudar as propriedades de clusters, grupos de uns poucos átomos. A partir de cerca de 1.500, 1.700 átomos, reduzimos a quantidade até chegar a clusters [aglomerados] de seis átomos de ouro, rodeados por outras moléculas. Um químico da Índia nos forneceu as amostras e as analisamos. Agora estamos com novas amostras que ele preparou de sete a 12 átomos de cobre. Vimos que, na medida em que reduzimos o tamanho do grupo de átomos, não existem mais elétrons livres como num fio metálico. Os elétrons estão mais ou menos presos a cada átomo, e cada cluster se comporta como se fosse uma grande molécula, rodeada por outras, que mantêm os átomos coesos. No passado, partículas metálicas de prata e ouro serviram para fazer vitrais de catedrais da Europa na Idade Média. O vidro vermelho contém micropartículas de ouro e o verde de cobre. O cálice de Licurgo, feito pelos romanos 400 anos depois de Cristo, que está no Museu Britânico, em Londres, é verde quando iluminado de fora para dentro e vermelho quando se põe uma lâmpada dentro dele. Atualmente essas partículas são objeto de estudo de nanociência e nanotecnologia. Com a professora da Fatec [Faculdade de Tecnologia de São Paulo] Luciana Kassab estamos construindo vidros especiais, usados em fibra óptica e sensores ópticos, com partículas metálicas, que permitem controlar a cor ou aumentar a fluorescência [emissão de luz] para desenvolver displays coloridos, sensores ópticos ou mesmo lasers que emitem várias cores.
Em 2003, o senhor foi o primeiro e até agora o único brasileiro agraciado com o Prêmio Galileu Galilei, da Comissão Internacional de Óptica, a ICO. Na justificativa do prêmio, a entidade referiu-se a “contribuições científicas excepcionais produzidas sob circunstâncias comparativamente desfavoráveis”. Essas circunstâncias desfavoráveis persistem?
Hoje são ainda maiores. Temos falta de recursos para a pesquisa e vivemos altos e baixos. Na época da ditadura [1964-1985], era relativamente fácil conseguir financiamento porque alguns daqueles militares eram nacionalistas e entendiam que era importante desenvolver a tecnologia. Depois tivemos um período muito ruim, nos governos dos presidentes José Sarney e Fernando Collor de Mello, quando o dinheiro para pesquisa desapareceu. Os orçamentos federais para pesquisa foram muito reduzidos. Tivemos uma boa recuperação nos dois primeiros mandatos de [Luiz Inácio] Lula [da Silva], mas os últimos seis anos dos governos Temer e Bolsonaro [2016-2022] foram muito ruins. Espero que melhore nos próximos anos, porque nossa principal fonte de financiamento é o MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação]; alguns recursos internacionais; e a Facepe [Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco], que também ajudam muito.
Por que o senhor escolheu o curso de engenharia elétrica se queria fazer física?
Na época me diziam que era o melhor curso da UFPE, e o que tinha mais física e matemática, que eu gostava muito, desde o ensino médio. Os dois primeiros anos eram o chamado ciclo básico, com muita física, matemática e química, e no terceiro ano começavam as disciplinas mais aplicadas. Aí percebi que não era engenharia que eu queria fazer, mas não existia ainda curso de física na universidade. Completei o curso de engenharia elétrica, mas, orientado por alguns professores, estudei disciplinas que faziam parte do programa de bacharelado em física em outras universidades. Terminando a graduação, fui para a PUC-RJ. Um professor daqui tinha me colocado em contato com dois físicos de lá, Erasmo Ferreira e Nicim Zagury, os dois atualmente na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], que me disseram o que eu deveria estudar para chegar lá em condições de começar uma pós-graduação em física. Depois, na Universidade Harvard, trabalhei com Nicolaas Bloembergen [1920-2017], considerado o pai da óptica não linear, um dos ganhadores do Nobel de Física de 1981. Na Harvard eu aprendi não só os conhecimentos básicos da área, mas também as estratégias de pesquisa, por interagir com pessoas que faziam uma física de fronteira, e pude aprender como os grupos de pesquisa funcionam.
Seus pais apoiavam suas escolhas?
Meu pai acreditava que eu seria comerciante, como ele, que tinha uma loja de aviamentos e couro para sapatos, malas, no bairro de Santo Antônio, na parte antiga do Recife. A partir de certo momento ele achou que eu deveria estar lá com ele. Cheguei a acreditar que eu seria comerciante também, mas comecei a discordar da forma como ele fazia os negócios, da dinâmica da loja, a pensar de forma mais independente, e ele não gostou. Quando decidi fazer engenharia, minha mãe apoiou, mas meu pai ficou triste. E mais triste ainda quando meu irmão, que é mais novo três anos, virou sociólogo. Por fim meu pai teve de vender a loja, porque não tinha ninguém para cuidar. Mas acho que depois ele gostou do avanço dos filhos, tanto o meu caso quanto o do meu irmão, que também se tornou professor universitário, já se aposentou e vive no Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Eu me aposentei também, mas continuo como professor, tenho o laboratório e os estudantes de pós-graduação.
Dois de seus três filhos também são físicos?
Sim, mas já disse para eles que não tenho culpa nenhuma. Eles trabalham com óptica também. O mais velho, Luís Eduardo Evangelista de Araújo, é professor e tem laboratório no Instituto de Física da Unicamp há uns 20 anos. O outro, Renato Evangelista de Araújo, trabalha no Departamento de Eletrônica da UFPE com aplicações médicas e biológicas do laser. O fato de eles terem seguido a carreira acadêmica deve ser o resultado da convivência com os meus colegas e os filhos deles. Uma época morávamos pertinho do campus e muitas vezes no final do dia eles vinham com a minha mulher para me buscar. Lembro do Luís, com 3 ou 4 anos, sentado no laboratório e pedindo para ligar o laser, que ele achava bonito. Quando estávamos nos Estados Unidos, os dois frequentaram escolas com laboratórios ótimos; foi lá que o Luís aprendeu a fazer crescimento de cristais no laboratório da escola. Renato já gostava de eletrônica. Acho que foi na high school que ambos decidiram fazer o curso de física quando voltamos para o Recife.
Dois filhos seguiram a carreira acadêmica por causa da convivência com meus colegas e os filhos deles
E o terceiro filho, o que faz?
Paulo Henrique Evangelista de Araujo começou com matemática, mas no fim do segundo ano fez outro vestibular e entrou em ciência da computação. Foi lá até o terceiro ano e começou uma empresa de software, com dois colegas, numa incubadora do Recife. Chegaram a ter 15 funcionários, mas passados dois anos tiveram que desfazer a sociedade. Depois ele trabalhou na Motorola em São Paulo, resolveu estudar mandarim e no ano seguinte foi para a China para estudar mais um ano de mandarim. Lá abriu uma empresa de logística, importação, exportação, mas a esposa veio para cá e por fim ele fechou a empresa e veio também. Agora tem uma empresa de software com ligação com o Porto Digital [o parque tecnológico instalado no Recife com foco em tecnologia da informação] e alguma atividade com energia solar fotovoltaica, aproveitando as conexões que tem na China. Os três são felizes com o que fazem. Minha mulher, Rubi, aposentou-se como diretora de escola. Moramos em Boa Viagem, gostamos da praia, mas ela diz que sou meio workaholic.
Além de praia, de que gosta?
De música. Estudei solfejo e canto, fui tenor, quando era jovem cantei no Coral do Carmo do Recife, o principal da cidade naquela época, décadas de 1960 e 1970. Era um coral religioso, mas eu não era mais religioso, assim como outros colegas. Nós cantávamos música sacra, mas também canções internacionais e folclóricas com arranjos muito bem-feitos. O coral gravou três discos com músicas brasileiras e um quarto com uma trilha de um filme, Terra sem Deus, sobre cangaço, rodado aqui em Pernambuco em 1963. A música da trilha era de inspiração nordestina, música polifônica, com quatro vozes, e arranjos dissonantes, na época uma coisa avançada, de certa maneira influência já do João Gilberto [1931-2019]. Na graduação, eu e mais quatro colegas tivemos aulas extras, durante dois anos, com um físico matemático português, Rui Gomes, que saiu do Porto na época do [António] Salazar [1889-1970], foi para a Argentina e depois veio para o Recife. Em meados dos anos 1960-70 estive várias vezes na casa dele. A mulher do professor Rui, sabendo que eu era tenor, pedia para cantar canções napolitanas daquela época. Meu pai também gostava de cantar.