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Resenha

Ciência e poesia

Novos poemas | Carlos Vogt | Ateliê Editorial |136 páginas | R$ 60,00

290_092_Resenha_02_252O belo livro de poesias que Carlos Vogt acaba de lançar (Novos poemas, Ateliê Editorial, Cotia, 2016) nos põe em face do lugar da arte na vida do cientista. Criou-se entre nós a impressão de que ciência e arte não se combinam e que a verdadeira mente científica é a mente desprovida de sensibilidade artística. Leonardo Da Vinci era cientista e artista. Carlos Vogt é um reputado linguista, que já foi reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente do Conselho Superior da FAPESP. Um homem profissionalmente formado nos marcos do rigor científico e das formalidades da administração da ciência.

Nas próprias universidades brasileiras há vários e expressivos casos de profissionais da ciência e da filosofia que também se dedicaram à arte. O nome mais emblemático é, muito provavelmente, o de Paulo Vanzolini, diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), formado em medicina por essa mesma instituição, doutorado em zoologia pela Universidade Harvard. Era também poeta e compositor, autor de Ronda e de Volta por cima.

A antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP tem tido um significativo elenco de poetas e literatos. Fui aluno de João Cunha Andrade, professor de história da filosofia, autor de um livro de poemas, A árvore da montanha. O Departamento de Filosofia teve outro poeta de fina sensibilidade, Bento Prado Jr., que deixou sonetos nas páginas do Suplemento Literário do Estadão.

Ou José Jeremias de Oliveira Filho, professor de sociologia, que reuniu suas poesias no livro Incompetência do só. Ou, ainda, Duglas Teixeira Monteiro, já falecido, também professor de sociologia. Numa pesquisa sobre pequenos agricultores do norte do Paraná, registrou situações dramáticas que lhe permitiram escrever a peça de teatro Água da memória, ganhadora de prêmio do Serviço Nacional de Teatro. E, claro, publicou também um artigo científico em revista especializada.

A antropóloga Margarida Maria Moura, alterna antropologia e poesia com competência científica e sensibilidade poética. O livro de suas poesias, Ser tão sertão, é prefaciado por Antonio Candido. Nela, há poesia também no texto científico. É o que se vê na obra do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, doutorado na USP, professor na Unicamp, autor de vários belíssimos livros de poesia. Num deles, Diário de campoA antropologia como alegoria, inclui 10 poemas que resgatou do interior do capítulo I, de O capital, de Karl Marx. Marx pretendia ser poeta antes de ser filósofo. Por considerá-lo mau poeta, seu pai o convenceu a desistir. Dedicou-se à filosofia e à ciência. No entanto, a poesia está presente em toda sua obra sociológica. O sociólogo venezuelano Ludovico Silva, em O estilo literário de Marx, descobriu que várias formulações supostamente conceituais desse autor, como a de superestrutura, são formulações literárias e não conceituais. Os cientificistas não viram a poesia de sua ciência. Brandão esclarece que os poemas sobre a coisificação da pessoa já estavam lá, no texto de Marx, bastou-lhe apenas reordená-los pela estrutura poética que já continham.

É fellow de meu College, na Universidade de Cambridge, e meu amigo, Sir Roy Calne, pioneiro nos transplantes de fígado na Europa. Ele é, também, um reconhecido artista plástico, autor de belas e sensíveis pinturas, algumas das quais retratam seus pacientes.

Ciência e arte não se separam. Nestas poesias de Carlos Vogt, a dialética do linguista e pesquisador está inteiramente presente na construção dos poemas. Ele viu em situações do cotidiano práticas que pediam mais do que ciência, pediam o lirismo do poeta para revelar a ternura do poema, como em “Vinheta”:

Mães
batiam no
futuro para
corrigir o
desconhecido.

Vasculhou provérbios populares, como “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, para ali decifrar o poema que contém:

Ponha uma pedra no coração
e ele será um coração de pedra
cheio do vício de amolecer sozinho
na água dura da constância
de ser pedra que a água fura
pedra amolecida que a onda-gota bate
e vaza e traspassa no orifício
que escorre a pedra em água pura.

“Vazio” é o poema do relativo, que expõe a concepção vivencial da métrica:

Tudo é tão grande
Que nada pequeno
Cabe nessa imensidão.

E em “Novo mandamento”, o cientista decifra a contradição do ser humano:

O amor
é pecado
se não for
cometido.

José de Souza Martins é membro da Academia Paulista de Letras e do Conselho Superior da FAPESP. Entre outros livros, é autor de Desavessos – Crônicas de poucas palavras (Com Arte, 2015).

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