Ao elaborar um processo inédito de obtenção de sílica de alta pureza a partir da casca de arroz, pesquisadores do câmpus de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) abrem a possibilidade de uma ampla oferta desse material para a produção de cimento de alta qualidade. Pela nova técnica se obtém sílica com grau de pureza de 99% e alta reatividade química, o que a torna muito atraente para o uso industrial, sobretudo na construção civil. A tecnologia foi consolidada e aperfeiçoada no projeto temático Concretos de Alto Desempenho com Sílica de Arroz, coordenado pelo professor Jefferson Libório, do Laboratório de Engenharia Civil do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, e financiado pela FAPESP.
Libório trabalha lado a lado com outro grupo de pesquisadores de São Carlos, coordenado pelo professor Milton de Souza, do Instituto de Física e Ciência dos Materiais. Eles sistematizaram o novo método de extração da sílica. Com isso, o professor Libório viabilizou o uso desse aditivo para a produção de concretos estruturais com características variáveis, destinados ao uso em vários setores da construção civil.Segundo o professor Souza, os resultados já obtidos por Libório em corpos-de-prova, que são amostras em miniatura de concreto contendo a sílica obtida em escala laboratorial, indicam a boa qualidade do produto e a excelente resistência proporcionada pelo cimento.
Gerou patente
“Nosso processo é original e não existe nenhum tão bom”, garante Souza, com a autoridade de quem vasculhou bancos de patentes dos principais países que conduziram experimentos sobre o tema. Do método criado também resultou uma das primeiras patentes processadas no Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec), que a FAPESP criou recentemente.
A extração da sílica da casca de arroz, além de aproveitar um resíduo agrícola normalmente desprezado (e poluente), é um recurso renovável e inédito na construção civil, onde serve de alternativa às sílicas obtidas como resíduos da produção de ligas de ferro-silício ou silício metálico. Com esses resíduos siderúrgicos obtêm-se uma sílica que deve ter pelo menos 85% de pureza, conforme especificações da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Sobras suficientes
A vantagem do novo método é que a fonte agrícola é farta. Dos 10 milhões de toneladas de arroz que o país produz por ano, sobram 2 milhões de toneladas de casca – que rendem cerca de 400 mil toneladas de sílica, o suficiente para suprir o mercado de concretos estruturais e outros. Dependendo da quantidade de cimento usada, a proporção de sílica nos concretos varia de 5% a 10% e é particularmente importante para o concreto de elevado desempenho.
O processamento das cascas e a extração de sílica podem, segundo Souza, influir em várias etapas da atividade econômica. Em primeiro lugar, o arroz se tornaria fonte barata de um insumo de alta qualidade para a construção civil, segmento responsável por 14% do Produto Interno Bruto (PIB). Considerando que o quilograma da sílica de maior grau de pureza custa US$ 36, Souza brinca: “É mais negócio gerir a cultura para obter sílica e ter o arroz como subproduto”.
Proteína da terra
Souza também prevê melhorias na cultura do arroz: “O que faz o transporte desse material da terra para a planta e desta para a casca é uma proteína, que pode ser manipulada para que tenhamos cultivares destinados a facilitar o processamento”. Ex-diretor do Instituto de Física, o primeiro contato de Souza com o tema ocorreu há cerca de dez anos, quando recebeu um pacote de pó preto resultante da queima das cascas de arroz, que é prática ainda comum na rizicultura. Na época, as disciplinas de estudo e caracterização de materiais em São Carlos já pesquisavam o uso da cinza da casca de arroz na produção de concretos, mas sem resultados promissores.
“No início dos estudos, em 1991, não conseguimos fazer muita coisa. Para separar a sílica do pó preto precisávamos usar temperaturas de mais de 1.000 ºC, o que deteriorava a sílica obtida”, conta Souza. Cinco anos mais tarde, já com a ajuda de alunos da área de química que iniciavam a pós-graduação – entre os quais Souza destaca o co-autor da patente Paulo dos Santos Batista -, houve uma associação de projetos na área de ciência de materiais. Então os rumos do trabalho mudaram: “Descobrimos um jeito de tratar a casca antes de extrair a sílica”. Na época, Souza e Libório mantiveram o primeiro contato e discutiram a possibilidade de usar a sílica junto com o cimento Portland.
Souza sabia da importância das nanopartículas no processamento de cerâmicas: “Por estar dispersa na celulose da casca, a sílica poderia ser extraída na forma de agregados de nanopartículas. Foi sob essa ótica que os estudos recomeçaram em 1997. As nanopartículas, de tamanho igual à milionésima parte do milímetro, têm elevada reatividade química e capacidade de sinterização, o que reduz a temperatura de queima e melhora a qualidade dos produtos cerâmicos”. Libório acrescenta: “Essas partículas de sílica são mais leves que as da fumaça de cigarro”.
Calor e pressão
Para obter a sílica, o primeiro passo foi retirar os componentes que reagiam com ela, tais como os sais. “No começo, lavávamos as cascas com ácidos, mas o processo era muito demorado”, explica Souza. “Depois, resolvemos colocar as cascas numa autoclave (câmara que suporta altos índices de temperatura e pressão), onde são lavadas com ácidos a uma temperatura controlada. Ao passar pela autoclave, as cascas de arroz perdem os sais. Após outros procedimentos simples, o material é calcinado a mais de 400ºC.” Essa parte do estágio final para a obtenção da sílica na forma mais pura, branca, é seguida de procedimentos que o professor Souza guarda com cuidado.
A contribuição da sílica para a melhoria dos cimentos tem mais de duas décadas. Libório lembra que, no Brasil, por volta de 1985, o engenheiro Epaminondas do Amaral Filho “doou ao Laboratório de Estruturas da Escola de Engenharia de São Carlos sílicas importadas, de ligas de ferro-silício e silício metálico”. Isso permitiu a Libório começar pesquisas com esse material, para a construção de um elemento estrutural (um pilar). “Desde então, realizamos vários estudos de melhoria de cimento, com relatos feitos em congressos nacionais e internacionais. Assim, produziram-se concretos com 60 MPa (Mega Pascal), o equivalente a 600 quilogramas por centímetro quadrado de resistência à compressão simples.” Os corpos-de-prova, amostras de pouco mais de 7 centímetros de diâmetro, são analisados por ele com base nesse parâmetro (1 MPa = 10 kg/cm2), que indica o tanto de compressão a que se pode submeter uma peça de concreto.
Sempre se ensinou que o concreto tem uma durabilidade extrema. Libório faz a ressalva: “O concreto é um excelente material de construção, porém sua durabilidade tem limites. A deterioração geralmente ocorre por uso inadequado e pela interação de concretos de má qualidade com substâncias presentes no ar ou em meios líquidos, como as redes de água e esgoto (todas com estruturas de concreto) e os resíduos ambientais corrosivos, tais como o dióxido de carbono”.
Desastres evitáveis
Para Souza, uma matéria-prima barata como a sílica de arroz ajudará a solucionar problemas já detectados e prevenir a deterioração de obras novas. No primeiro caso, serviria para fabricar placas de revestimento especiais: “Pontes e viadutos não podem simplesmente ser postos no chão e reconstruídos”. Outros setores podem ser beneficiados e Souza destaca um: “Hoje, os canais de irrigação do Nordeste precisam de reforços de grossas mantas de borracha, por causa da permeabilidade do concreto. Um concreto de alto desempenho, que dispense os reforços, poderá representar uma economia gigantesca, tornando a irrigação uma realidade naquela região”.
A sílica ativa da casca de arroz será uma alternativa tão eficaz quanto as outras sílicas quando resolvidos a contento os desafios do processamento. Nas condições atuais, a casca de arroz continua a ser queimada e deixada no campo, onde produz fortes danos: “No solo onde se joga o material queimado não brota mais nada. Na forma de poeira, essa cinza pode causar nos seres humanos a silicose, uma séria doença nos pulmões”, adverte Souza.
O processamento das cascas tem sido alvo de muitos estudos desde o início da década de 90. O grande desafio era conseguir um grau elevado de pureza na sílica isolada, de forma economicamente viável em custos e em escala de produção. “Essa é precisamente a novidade que temos”, diz Souza.
Compressão máxima
As conseqüências são bem práticas. Libório explica: “Muitas obras ainda utilizam concretos convencionais, com resistência à compressão de 25 MPa, medida à idade de 28 dias, embora já se tenham registrado utilizações de 60 MPa, e atingido valores de até 80 MPa”.
No projeto, continua Libório, esses números sobem drasticamente: “Já atingimos a resistência à compressão de 120 MPa aos 28 dias de idade e 50 MPa com um dia. E esperamos ultrapassar os 200 MPa. Nesse nível, o concreto não interessa mais à construção civil: ele serve para outras utilidades como, por exemplo, a fabricação de moldes para peças da indústria mecânica”. Outros estudos, liderados por Libório, estão em curso, como adições de sílica da casca de arroz a produtos como tintas, polímeros, argamassas decorativas, selantes, contrapesos e pisos especiais.
A adição de sílica de alta qualidade ao cimento é só uma etapa. Além de aprimorar os processos de coleta de cascas de arroz e extração da sílica, é preciso agora demonstrar a todos os usuários da tecnologia dos concretos estruturais, como os engenheiros civis e os arquitetos, os benefícios oriundos desse novo material e dessa nova tecnologia para a construção civil. É o que pretendem os pesquisadores.
Jefferson Libório formou-se engenheiro civil na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP, onde fez mestrado e doutorado. É diretor do Instituto Brasileiro do Concreto.
Milton Ferreira de Souza formou-se em Química pela Universidade do Brasil (RJ), doutorou-se em Física pela EESC da USP e complementou os estudos nas universidades de Illinois e Utah, nos Estados Unidos.
O projeto
Concreto de alto desempenho e argamassa de revestimento com silica ativa da casca de arroz (nº 98/08112-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Investimento R$ 230.993,27 e US$ 166.979,51