As taxas de vacinação infantil vêm, por fim, mostrando uma recuperação importante no Brasil. Após seis anos consecutivos de queda na cobertura vacinal, iniciados em 2016, o país passou de modelo internacional em imunização pediátrica a ambiente de risco para o ressurgimento de doenças controladas ou eliminadas, como o sarampo.
Após atingir os níveis mais baixos em 2021, as taxas de vacinação voltaram a crescer. De lá para cá, o alcance de nove dos 13 imunizantes recomendados pelo calendário nacional de vacinação para crianças de até 2 anos – disponíveis gratuitamente no sistema público de saúde – subiu ao menos 10 pontos percentuais (ver gráfico).
É uma retomada necessária e animadora, embora nenhuma das vacinas ainda tenha voltado aos patamares de 2015, quando a cobertura de praticamente todas alcançava os valores recomendados internacionalmente. A cobertura vacinal representa a proporção de crianças em idade ideal para imunização que foi de fato vacinada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) orienta que ao menos 90% das crianças recebam a vacina BCG, contra a tuberculose grave, o imunizante contra o rotavírus, causador de diarreias severas, e a vacina contra o vírus da Covid-19. Para as demais, a cobertura é de 95%.
Apesar de a recuperação ainda não ter permitido chegar aos níveis desejáveis, ela já foi suficiente para tirar o Brasil da lista dos 20 países com maior proporção de crianças não vacinadas, segundo um comunicado de 15 de julho da OMS e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em 2021, ele ocupava o sétimo lugar nesse ranking.
Esse progresso de recuperação foi identificado pela equipe de Pesquisa FAPESP ao levantar, com o auxílio de ex-coordenadores do Programa Nacional de Imunizações (PNI), os dados de cada uma dessas vacinas nos arquivos do DATASUS, que armazena os registros até 2022, e no site Cobertura Vacinal, do Ministério da Saúde, onde estão as informações de 2023 em diante. Em dezembro do ano passado, o ministério chegou a noticiar uma recuperação mais modesta na cobertura de oito imunizantes. Ela, porém, levava em conta os dados parciais de 2023 comparados com os de 2022. A análise de um período mais extenso permitiu observar que o movimento de retomada já estava em curso desde o ano anterior.
Das 13 vacinas indicadas para crianças de até 2 anos, foram analisados dados de 11. Todas apresentaram algum nível de recuperação em relação a 2021 – incluindo a das doses de reforço, que compõem o esquema básico de vacinação –, com sete superando os 13 pontos percentuais. Alguns exemplos são as vacinas contra os vírus da hepatite A e o da poliomielite, com alta de 14,9 pontos percentuais cada uma. Em 2021, elas haviam sido administradas, respectivamente, a 67,5% e 71% do público-alvo. Em 2023, a 82,5% e a 86%.
Os imunizantes com crescimento mais modesto foram a vacina contra a varicela e a BCG. O primeiro protege contra o vírus causador da catapora e subiu 3,7 pontos percentuais. Foi administrado a 67% da população que deveria ser imunizada em 2021 e a 70,8% em 2023. A cobertura da BCG, geralmente dada na maternidade, subiu 5,8 pontos percentuais: 75% dos recém-nascidos a receberam em 2021 e 80,8% em 2023.
Especialistas ouvidos por Pesquisa FAPESP sugerem que essa recuperação seja fruto do retorno das atividades rotineiras do sistema de saúde após os dois primeiros anos da pandemia e dos esforços das diferentes esferas de governo para reverter a queda na imunização infantil.
“Após a pandemia, muitos municípios iniciaram a busca ativa de crianças para vacinar”, comenta a cientista social e epidemiologista Carla Domingues. Ela coordenou o PNI de 2011 a 2019 e analisa o avanço com cautela. “É positivo fazer a cobertura de um imunizante subir de 70% para 85%, mas, para a maioria deles, a meta é 95%”, afirma. “Se a vacinação se mantém abaixo da meta por anos, podem surgir bolsões de crianças vulneráveis, com o potencial de ocorrerem surtos.”
O alerta é válido, por exemplo, para a poliomielite. Em 2022, o Brasil foi considerado pelo ministério país com altíssimo risco para a reintrodução do poliovírus selvagem, que afeta o sistema nervoso e pode causar paralisia irreversível e morte. O último caso identificado no país ocorreu em 1989 e, desde 1994, o Brasil é considerado pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas) área livre da circulação do vírus. A partir de 2016, a queda na cobertura dessa vacina deixou o país suscetível ao ressurgimento de casos e ao risco de perder a certificação da Opas. Após subir 14,9 pontos percentuais a partir de 2021, no ano passado a administração da vacina alcançou 86% do público-alvo. Neste ano, estava em 82,5% até agosto.
Também preocupa o risco de retorno do sarampo, doença altamente contagiosa, causada por um vírus de transmissão respiratória. O último caso de transmissão em território nacional ocorreu em 2022, no Amapá, e fez o Brasil perder o título de país livre da doença. A partir de 2016, a cobertura da tríplice viral, que protege de sarampo, rubéola e caxumba, despencou e, em 2021, atingiu 74% (ver Pesquisa FAPESP nos 270, 313 e 331). Neste ano, a primeira dose alcançou quase 90%, mas a segunda pouco mais de 70%.
Para os especialistas consultados pela revista, um fator que contribuiu para a recuperação da cobertura vacinal foi, além da mobilização dos municípios, a adoção em 2023 pelo Ministério da Saúde de um método de gestão chamado microplanejamento: um grupo de diretrizes que ajudam a mapear o orçamento, as estratégias e a logística para vacinação de cada município e a definir sua capacidade de atingir as metas do PNI.
O microplanejamento, porém, dizem os entrevistados, só funciona se for aplicado primeiro na ponta do sistema, onde a vacinação ocorre, de forma articulada com as estratégias estaduais e nacional. “O método agrega ferramentas de gestão para que o município se planeje”, explica o médico Eder Gatti, diretor do Departamento do PNI do ministério. “Fizemos diversas oficinas juntando a atenção primária e as equipes de vigilância em saúde para ensinar o método e melhorar a vacinação de rotina”, conta.
Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPProfissional do SUS aplica vacina em posto de saúde durante campanha de imunização contra o sarampoLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
Em 2023, o ministério destinou R$ 151 milhões para estados e municípios implementarem o microplanejamento em ações de vacinação para crianças e jovens de até 15 anos. Valor semelhante foi reservado pelo órgão este ano para campanhas de vacinação em escolas, imunização contra a pólio e monitoramento das estratégias implementadas em 2023. Segundo Maria de Lourdes Maia, coordenadora do Departamento de Assuntos Médicos de Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e coordenadora do PNI de 1995 a 2005, o microplanejamento favorece a articulação e o diálogo entre o ministério e os municípios, que estavam deficientes nos últimos anos. “Antes, o PNI estava mais presente entre os profissionais da saúde e fazia a comunicação com eles”, lembra.
Além do esforço para estreitar o contato entre os integrantes do PNI e os profissionais na ponta do sistema, há uma tentativa de compreender as razões que podem ter contribuído para a queda na cobertura vacinal. Vários motivos já foram apontados, da percepção enganosa de que as doenças teriam desaparecido ao horário restrito de funcionamento dos postos (ver Pesquisa FAPESP nº 270).
Um problema que tem se mostrado desafiador no mundo todo é a hesitação vacinal, considerada pela OMS em 2019 uma das 10 maiores ameaças globais à saúde. Definida como o atraso ou a recusa em tomar as vacinas ou imunizar os filhos, mesmo tendo os imunobiológicos à disposição, a hesitação é um fenômeno complexo, influenciado por fatores que vão da confiança da população na segurança e na eficácia dos imunizantes à disponibilidade da vacina e o medo de reações indesejáveis.
“O calendário vacinal do Brasil é um dos mais completos do mundo e ele foi ficando cada vez mais complexo. É natural que as pessoas questionem”, observa o pediatra Juarez Cunha, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Depois do primeiro mês de vida, são necessárias nove idas ao posto de saúde antes dos 2 anos para completar o esquema de vacinas. “Para combater a hesitação, a comunicação precisa ser contínua. Há muita desinformação nas redes sociais. A rede de profissionais da saúde também requer constante capacitação”, afirma Cunha.
Para conhecer a dimensão e os fatores associados à hesitação vacinal no Brasil, os médicos José Cassio de Moraes e Rita Barradas Barata, ambos da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSP), além de Carla Domingues e outros pesquisadores, coordenaram em 2020 e 2021 um inquérito nacional que avaliou a cobertura dos principais imunizantes infantis dados até os 2 anos e investigou as causas da não vacinação. Financiado pelo ministério e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o levantamento recolheu dados de imunização e ouviu pais de 37,8 mil crianças brasileiras de todas as capitais, do Distrito Federal e de 12 municípios com mais de 100 mil habitantes.
Os resultados foram detalhados em 2023 em um extenso relatório e parcialmente publicados na Revista Brasileira de Epidemiologia. Eles mostram que a cobertura dos 13 imunizantes variou de 76,4% (febre amarela) a 93,6% (primeira dose da pneumocócica) nas capitais; e de 83% (segunda dose da vacina contra rotavírus) a 93,6% (primeira dose da pentavalente e da vacina contra pólio) no interior.
Apesar de alguns imunizantes terem alcançado cobertura elevada, só 60% das crianças nas capitais e 61% no interior completaram o esquema de vacinação, com 23 doses. Curitiba, Teresina e Brasília registraram as melhores coberturas completas (superiores a 70%), enquanto Florianópolis, João Pessoa, Natal e Macapá apresentaram as menores taxas (inferiores a 50%).
A taxa de hesitação vacinal foi baixa: 2,6% nas capitais e 1,2% no interior – um estudo internacional estimava que chegasse a 20%. Os pesquisadores, então, analisaram o que levou os genitores das crianças das capitais a não vacinar os filhos: 24,5% informaram que a pandemia pesou na decisão; 24% tiveram medo de reações indesejadas; 9% haviam sido orientados por profissional da saúde a não vacinar; 8,9% tinham medo de dar injeção no filho; e 8,4% não acreditavam em vacinas.
“A hesitação tem um peso importante, mas as dificuldades encontradas no processo de vacinação são ainda maiores”, comenta Moraes.
Uma proporção importante dos pais (de 22 mil crianças) até tentou completar o esquema dos filhos, mas encontrou barreiras: 44% relataram que faltava o imunizante no posto em uma das situações; 10,8% encontraram a sala de vacinação fechada; e 8% receberam do profissional de imunização a recomendação de não dar a vacina. Outra parte dos pais (de 4,9 mil crianças) não conseguiu levar os filhos ao posto porque ficava longe (21%); não tinha tempo (16,6%); a criança estava doente (14,8%); o horário de funcionamento do posto era inadequado (14,1%); e não tinha meio de transporte (12%).
Na opinião de Barata, a reversão da tendência de queda passa por oferecer mais oportunidades de acesso aos serviços, qualificação técnica dos profissionais da área e reorganização da estrutura do sistema de saúde.
O inquérito deixou evidente que há diferenças regionais importantes na cobertura vacinal. “A região Norte é a que apresenta os menores índices de cobertura vacinal, por isso o microplanejamento se faz ainda mais necessário nela”, sinaliza a médica Consuelo de Oliveira, do Instituto Evandro Chagas e da Universidade do Estado do Pará (Uepa), uma das coordenadoras do inquérito no Norte.
“Outro ponto importante identificado no inquérito foi a necessidade de manter uma comunicação ativa e rotineira com a população para explicar a relevância de manter elevada a cobertura de todas as vacinas”, lembra Domingues.
A pediatra Melissa Palmieri, do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), avalia de forma positiva o diagnóstico mais preciso sobre cada município proporcionado pelo microplanejamento. “É um olhar mais atualizado para as realidades locais”, pontua. De forma complementar, ela reforça que o dia a dia das famílias não pode sair de vista das estratégias governamentais. “Os pais que não podem levar seus filhos precisam contar com horários ampliados nos serviços de saúde e vacinação nas escolas.”
A reportagem acima foi publicada com o título “A reconquista da vacinação infantil” na edição impressa nº 343, de setembro de 2024.
Artigo científico
BARATA, R. B. et al. Inquérito nacional de cobertura vacinal 2020: Métodos e aspectos operacionais. Revista Brasileira de Epidemiologia. 2023.
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