Imprimir PDF Republicar

Literatura

Coletâneas ampliam perspectivas sobre a obra de José Paulo Paes

Intelectual autodidata escreveu poesia e ensaios, além de traduzir autores incontornáveis

Ormuzd Alves / FolhapressJosé Paulo Paes em 1991, na biblioteca de sua casa, na capital paulistaOrmuzd Alves / Folhapress

Quando lançou seu primeiro livro de poemas, em 1947, José Paulo Paes (1926-1998) enviou a obra para a apreciação de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), na época um autor já consagrado. Em resposta por carta, o escritor maduro aconselha o iniciante a superar as influências e buscar uma dicção própria: “Você tem um sentimento poético indubitável, maneja o verso livre com bastante segurança rítmica, nunca resvala no mau gosto – mas você ainda não me parece você, ainda se procura através dos outros, quando é dentro de você mesmo que terá de se encontrar”.

Ao batizar sua estreia literária com o sugestivo título O aluno (Edições O livro), Paes colocava-se como uma espécie de discípulo do itabirano e de outros modernistas a quem prestava homenagem, como Manuel Bandeira (1886-1968) e Murilo Mendes (1901-1975). A afinidade literária de Paes com Drummond é bem conhecida pelos pesquisadores. Poucos estudiosos sabem, porém, que apenas um ano mais tarde o pupilo não poupou o mestre, dessa vez no papel de crítico literário. Em uma série de ensaios publicados no jornal O Dia, de Curitiba, em 1948, o jovem de 21 anos, então ligado a ideais revolucionários e ao Partido Comunista, classificava a poesia de temática social drummondiana como uma “poesia de fuga”, representativa da pequena burguesia, por sua tendência de transpor a realidade concreta para o plano da abstração. Ao analisar a função do humor na poesia de Drummond, Paes a contrapõe aos versos de dois poetas: o georgiano Vladímir Maiakóvski (1893-1930) e o baiano Castro Alves (1847-1871), estes, sim, efetivamente revolucionários, na opinião do crítico.

Até então nunca publicados em livro, os textos “Carlos Drummond de Andrade e o humour – I, II e III” são agora recuperados pela coletânea José Paulo Paes: Crítica reunida sobre literatura brasileira & inéditos em livros (Cepe Editora/Ateliê Editorial). Com mais de mil páginas, a obra abarca, em dois volumes, ensaios de Paes centrados na literatura brasileira. “Do ponto de vista crítico, não dá para dizer que José Paulo seguia uma linha mestra, seja de Antonio Candido [1918-2017] ou de Roberto Schwarz”, diz Fernando Paixão, professor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e organizador da coletânea junto com a crítica literária e pesquisadora Ieda Lebensztayn, responsável pela localização dos textos inéditos. “Ele foi próximo dos concretistas, porém mais no aspecto da produção poética do que teórica. Na análise crítica, José Paulo sempre foi livre.”

Arquivo pessoal da famíliaPaes e o crítico literário Alfredo Bosi (de terno), que se tornaram amigos na década de 1960Arquivo pessoal da família

A nova coletânea apresenta os textos críticos por ordem cronológica de publicação, além dos inéditos. Contempla uma variedade de temas que vão desde a poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914) ao samba de Adoniran Barbosa (1910-1982), passando por reflexões sobre a tradução, a presença do surrealismo no Brasil e o resgate de figuras menos conhecidas como os poetas baianos Sosígenes Costa (1901-1968) e Jacinta Passos (1914-1973). São ensaios que mostram um crítico eclético, com uma visão de literatura que, na visão de Sergio Bento, professor de literatura brasileira na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), sempre foi sem preconceitos. Exemplo disso, diz, é o artigo “Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: o mordomo não é o único culpado)”, publicado originalmente no livro A aventura literária: Ensaios sobre ficção e ficções (Companhia das Letras, 1990). No texto, o crítico defende que gêneros menos prestigiados como o romance policial, a ficção científica e o romance de aventura deveriam ser julgados não apenas por critérios estético-literários, mas também analisados pelo prisma da sociologia do gosto e do consumo. É do leitor de Agatha Christie (1890-1976) e Alexandre Dumas (1802-1870), afinal, que surge o admirador de James Joyce (1882-1941) e Gustave Flaubert (1821-1880), argumenta Paes.

Ao mesmo tempo, o intelectual lamenta no artigo que a produção desses gêneros fosse, no final dos anos 1980, ainda incipiente na literatura brasileira. “Paes não era vinculado à universidade, não fez nem mesmo graduação. Chegou a dar aulas na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e na USP, mas como convidado. Junto com Augusto de Campos, foi um dos grandes nomes da crítica do século XX que não pertenceu à academia”, afirma Bento, autor de tese de doutorado sobre a poesia de Paes defendida em 2015, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Com isso, ele consegue se desvincular de certo elitismo cultural que só considera relevante a alta literatura. Paes percebeu que as pessoas leem para se divertir, o que destoa da média da crítica brasileira na época.”

Um dos aspectos mais marcantes do ensaísmo de Paes, segundo assinala o historiador e crítico literário Alfredo Bosi (1936-2021) em testemunho que integra a coletânea, é justamente a sua amplitude de interesses e gostos, e a distância que manteve de “teorias estéticas fechadas, tendentes a juízos categóricos”. A curiosidade por todo tipo de literatura surpreendeu o autor da História concisa da literatura brasileira quando ambos se tornaram amigos, em meados dos anos 1960. Nos encontros com Paes, a quem definiu como um “leitor livre e sem fronteiras”, “observador sem parti pris”, ocorria uma inversão de papéis, conforme recorda Bosi, que foi professor de literatura brasileira da USP por mais de quatro décadas: “Era o autodidata José Paulo que ensinava o professor universitário. O professor aprendia a reler com outros olhos o que já lera como profissional das letras.”

Arquivo pessoal da famíliaCom a mulher, a bailarina Dora Costa, a quem dedicou seu segundo livro, Cúmplices, de 1951Arquivo pessoal da família

Nascido em Taquaritinga (SP), em 1926, Paes vinha de uma família de classe média baixa, de ascendência portuguesa. Na década de 1940, migrou para Curitiba, onde se formou técnico de química e passou a conviver com escritores e intelectuais como Dalton Trevisan. Foi na capital paranaense que começou a colaborar com a imprensa e estreou na literatura com a publicação de O aluno. “Naquela altura, Dalton editava a revista Joaquim, publicando inéditos de poetas como Drummond e Bandeira. Antes, Curitiba era uma província, havia uma cena literária que ainda vinha do simbolismo do século XIX. O modernismo chega à cidade com a revista do Dalton”, conta Marcelo Sandmann, que investigou a poesia de Paes em sua dissertação de mestrado e hoje é professor de literatura portuguesa da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Paes já conhecia os românticos e os parnasianos, mas foi em contato com os escritores daqui, especialmente com Glauco Flores de Sá Brito [1919-1970], que ele descobriu a poesia modernista brasileira.”

O poeta mudou-se no final da década de 1940 para São Paulo para trabalhar na indústria farmacêutica, onde permaneceu por 11 anos. Na mesma época conheceu a bailarina Dora Costa, com quem se casou e a ela dedicou seu segundo livro, Cúmplices (Edição Alanco, 1951). Ao longo da segunda metade do século XX, o autor desenvolve uma poética que apresenta um problema de classificação para os pesquisadores. Pertence cronologicamente à geração de 45, mas como um camaleão atravessa vários períodos da literatura brasileira, sem aderir a nenhum grupo. Com Novas cartas chilenas (poema de 1954 publicado dois anos mais tarde na Revista Brasiliense) e Epigramas (Editora Cultrix, 1958), o “aluno” começa a mostrar a singularidade de sua voz, atingindo a maturidade com Anatomias (Editora Cultrix, 1967), livro apresentado pelo concretista Augusto de Campos no qual sua escrita assume caráter experimental, marcado pela concisão e humor.

Em 1984, lançou-se na poesia infantil com a publicação de É isso ali (Editora Salamandra), ganhando o reconhecimento do grande público. E, em 1997, um ano antes de sua morte, venceu o prêmio Jabuti por Um passarinho me contou (Editora Ática). “Quando se fala em poesia infantil no Brasil do século XX, vêm à mente os nomes de Cecília Meireles [1901-1964], Manoel de Barros [1916-2014] e José Paulo Paes”, observa Bento. “Os poemas infantis dele são muito gostosos: exploram rimas, trocadilhos, paranomásias [palavras com significados diferentes escritas e pronunciadas de forma parecida]. Por isso, acabaram repercutindo mais que a sua obra poética sem restrição etária.”

Arquivo pessoal da famíliaPaes (de óculos) em evento (s/d) que contou com a participação do romancista baiano Jorge Amado (ao microfone)Arquivo pessoal da família

O temperamento discreto de Paes, que atuou no mercado editorial como editor na paulistana Cultrix entre os anos 1960 e 1980, pode ter contribuído para que sua obra recebesse pouca atenção de estudiosos. Dentre as parcas análises sobre o autor figuram, por exemplo, um prefácio de Alfredo Bosi para a antologia Um por todos, publicada em 1986, pela Editora Brasiliense, e outro do crítico literário Davi Arrigucci para a antologia Os melhores poemas (Global, 1998).

Essa enxuta fortuna crítica agora é ampliada pelo lançamento de outra coletânea: Anatomias da meia-palavra: Ensaios sobre a obra de José Paulo Paes (Editora UFPR, 2022) traz artigos escritos por sete pesquisadores, como Bento e Sandmann, que contemplam as diferentes facetas de sua produção. O volume é organizado por Marcos Pasche, professor de literatura brasileira da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e Henrique Duarte Neto, doutor em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na avaliação de Pasche, o grande legado de Paes para a literatura brasileira contemporânea é a autonomia que marca seu percurso poético. “Paes teve interlocutores importantes, como os concretistas, mas nunca abandonou, por exemplo, o diálogo permanente com a cultura grega antiga, que se consolida com a sua atividade de tradutor.”

Em um dos artigos da coletânea, Susana Scramim, professora de teoria literária da UFSC, escreve que a atividade tradutora não é um aspecto lateral na obra de Paes, mas reverbera também em sua produção autoral. O aprendizado de línguas foi, inclusive, incentivado por Drummond. Na mesma carta de 1947, o poeta mineiro recomendou a leitura de autores estrangeiros no idioma original como antídoto contra a imitação rasteira dos modelos nacionais. Seguindo os conselhos do mestre, Paes se tornou um poliglota autodidata: aprendeu espanhol, francês, inglês, alemão, grego moderno e antigo, dinamarquês, italiano. Verteu para o português autores como William Carlos Williams (1883-1963) e Nikos Kazantzakis (1883-1957) – com a tradução de Ascese: Os salvadores de Deus (Editora Ática), escrito pelo grego, venceu o prêmio Jabuti em 1998.

ReproduçãoCapas de alguns livros do autor, que escreveu poesia para crianças e adultos. A obra Um passarinho me contou venceu o prêmio Jabuti, em 1997Reprodução

No fim da vida, prevalece na poética de Paes o tom memorialista a que recorre para mergulhar na infância e evocar as lembranças familiares de Taquaritinga no livro Prosas seguidas de odes mínimas (Companhia das Letras, 1992). Essa guinada estilística coincide com um fato biográfico trágico: a amputação da perna esquerda em razão de um problema circulatório. Mesmo nos momentos mais graves, porém, a lição do humor, que herdou de Drummond e carregou por toda a vida, impediu que o poeta se entregasse ao sentimentalismo fácil: “Pernas/ para que vos quero?/ Se já não tenho/ por que dançar./ Se já não pretendo/ ir a parte alguma./ Pernas?/ Basta uma”, escreve em “Ode a minha perna esquerda”.

Vinte e cinco anos após a morte de José Paulo Paes, os estudos acadêmicos sobre o autor devem se aprofundar com a incorporação de seu acervo ao IEB-USP, prevista para acontecer até o fim de 2023. “Queremos nos debruçar sobre os ensaios de Paes que ficaram de fora da coletânea e dar continuidade às pesquisas sobre ele”, finaliza Paixão.

Republicar