A etnógrafa austríaca Wanda Hanke ia pelos seus 40 anos quando embarcou para a América do Sul para estudar populações indígenas. Sem apoio institucional, ela passou os últimos 25 anos de sua vida embrenhando-se sozinha em florestas no interior da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, reunindo, fotografando e registrando artefatos e povos ainda não estudados. Suas expedições resultaram em uma profusão de estudos linguísticos, objetos da cultura material e registros iconográficos de várias etnias. Pouco conhecidos, os trabalhos de Wanda constituem um registro histórico sobre a diversidade indígena sul-americana, tendo também contribuído para a consolidação da etnologia na região.
Wanda Hanke (1893-1958) nasceu em Opava, cidade da atual República Tcheca. Os raros registros sobre sua vida na Europa sugerem que tenha se graduado em medicina na Alemanha e, mais tarde, cursado direito e filosofia. Sabe-se que trabalhou como médica por alguns anos antes de se interessar pela etnologia, então uma ciência incipiente. “A falta de perspectiva de trabalho como etnógrafa na Europa a levou a se aventurar em expedições pela América Latina, em uma época em que as mulheres que excursionavam pelo Brasil o faziam com seus maridos ou corriam o risco de serem malvistas pelos locais”, explica a historiadora Mariana Moraes de Oliveira Sombrio, do Programa de Pós-graduação Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo (USP).
Mariana estuda a trajetória de mulheres que incursionaram pelo Brasil na primeira metade do século XX. Com base na análise de documentos do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas do Brasil (CFE), órgão federal criado em 1933 para fiscalizar e licenciar o trabalho de pesquisadores estrangeiros no país, ela e a historiadora Maria Margaret Lopes, do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), encontraram registros de pedido de licença de 38 mulheres expedicionárias. A maioria era estrangeira, como a antropóloga austríaca Etta Becker-Donner (1911-1975), do Museu Etnológico de Viena, que desbravou parte do Brasil nos anos 1940, e a arqueóloga norte-americana Betty Meggers (1921-2012), do Instituto Smithsonian, que nos anos 1950 mostrou que os povos da foz do Amazonas tinham uma cultura material complexa.
Diferentemente de Etta e Betty, Wanda viajava sozinha. Era uma coletora autônoma, sem vínculo fixo com nenhuma instituição. Articulava-se em atividades científicas e comerciais, reunindo e vendendo coleções, escrevendo artigos, fotografando e registrando suas viagens. Veio à América do Sul pela primeira vez em 1934 para documentar os índios Cainguá, no norte da Argentina. De lá, seguiu para o Paraguai para estudar os Guayaki. “Sem apoio econômico, Wanda financiava suas próprias expedições atuando como médica em pequenos vilarejos”, diz Mariana. A etnógrafa voltou à Europa em 1936 para angariar recursos para suas excursões. Sem sucesso, retornou à América do Sul no ano seguinte para outra expedição. A viagem deveria durar dois anos, mas se estendeu por duas décadas.
De volta à Argentina, dedicou-se à arqueologia, coletando objetos de povos como Matako e Toba. Em 1939, debruçou-se sobre os Botocudos, de Santa Catarina. Anos antes, a etnógrafa havia enviado um ofício ao CFE comunicando a vinda ao Brasil de uma expedição chefiada por ela para fazer pesquisas étnicas, sociológicas e linguísticas em regiões próximas aos rios Xingu e Tapajós. O pedido, no entanto, foi negado — possivelmente porque ela não tinha vínculo com nenhuma instituição de pesquisa ou ensino e não demonstrava ter condições de arcar com os custos da expedição.
Mesmo assim, Wanda entrou no Brasil. Em Santa Catarina, coletou artefatos e anotou palavras e dados antropométricos sobre os Botocudos. Pouco depois, seguiu para Curitiba, onde conheceu o médico e antropólogo José Loureiro Fernandes, diretor do Museu Paranaense, com quem passou a se corresponder e a negociar artefatos coletados em suas viagens, o que a ajudou a financiar suas expedições.
Wanda fez o mesmo quando esteve na Bolívia. Com o tempo, no entanto, suas condições de pesquisa tornaram-se cada vez mais precárias. Escreveu várias vezes à Universidade Mayor de San Simón, em Cochabamba, pedindo que lhe pagassem pelas peças que havia negociado. Com o que conseguiu juntar, viajou à Europa em 1955 para, mais uma vez, tentar levantar fundos para suas viagens. Voltou ao Brasil em 1957 para estudar os índios dos rios Nhamundá e Yatapu, na Amazônia. Foi quando contraiu malária. Morreu aos 65 anos, em Benjamin Constant, no Amazonas.
Wanda publicou artigos científicos em revistas do Brasil e do exterior. “Ela também registrou relatos sobre a narrativa mítica sobre a criação do mundo entre os Botocudos, fez listas de palavras indígenas com suas traduções aproximadas e, no caso dos Kaingang, um ensaio de gramática”, conta o linguista Wilmar da Rocha D’Angelis, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Algumas foram publicadas, outras, não. Suas anotações eram imprecisas e suas traduções, não raro, bastante simplificadas. Também escreveu dois livros, Dos años entre los cainguá e A pesquisa etnográfica na América do Sul, publicado em 1964, após sua morte.
A falta de treinamento em antropologia prejudicou as análises dos objetos que coletou. Ainda assim, segundo D’Angelis, o material que reuniu, hoje em museus, representa uma fonte pouco explorada em etnologia indígena que, aos poucos, começa a ser redescoberta.
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