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Ciência

Combate sem trégua

Luiz Hildebrando Pereira da Silva fez carreira no Instituto Pasteur e hoje é um dos responsáveis pela diminuição dos casos de malária em Rondônia

FCW_Hildebrando_HildebrandoLÉO RAMOSPrimeiro ele virou comunista e, em decorrência, virou parasitologista. As duas escolhas pautaram, paradoxalmente, sua trajetória de vida: a primeira o expulsou do Brasil por duas vezes, nos anos 1960; e a segunda o trouxe de volta, mais de 30 anos depois. Aos 85 anos, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, diretor aposentado da Unidade de Parasitologia Experimental do Instituto Pasteur, na França, ainda divide sua agenda entre Paris e Porto Velho, onde dirige o Instituto de Patologias Tropicais de Rondônia (Ipepatro) e é vice-diretor de Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico, Inovação e Serviços de Referência da Fiocruz Rondônia. Mas conciliou suas escolhas: “Eu me identifico com o comunismo que defende os grandes ideais do Iluminismo: a liberdade, a igualdade e a fraternidade”.

Ao comunismo, ele chegou adolescente. Aos 15 anos, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), inspirado pelo heroísmo do marechal Jukov e pelo “papel determinante” da União Soviética na luta contra o nazismo. À parasitologia, foi entronizado por Samuel Pessoa, também comunista, pioneiro nos estudos epidemiológicos em comunidades rurais brasileiras.

Recém-formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1953, Luiz Hildebrando escapou da residência médica e embrenhou-se em Misericórdia de Piancó, no sertão da Paraíba, num programa de pesquisa sobre epidemiologia de doenças parasitárias dirigido por Pessoa. Foi lá que, através da lente de um microscópio e à luz de gambiarra, viu o parasita Schistosoma mansoni, de alta incidência em áreas litorâneas do Nordeste, mas até então inédito no sertão. Sentiu, pela primeira vez, “a emoção estética da descoberta” e virou cientista.

Voltou à USP em 1956 como assistente da cadeira de parasitologia para estudar o ciclo evolutivo do Trypanosoma cruzi. Inoculado pela inquietação científica – e, acidentalmente, também pelo parasita –, utilizou micromanipulação e técnicas de biologia para resolver uma suspeita que assaltava epidemiologistas desde Carlos Chagas: não havia sexualidade entre os T. cruzi.

Luiz Hildebrando no jardim da casa de François Jacob (esq.), que dividiu o Nobel de Medicina de 1965 com Jacques Monod

Arquivo famliar Luiz Hildebrando no jardim da casa de François Jacob (esq.), que dividiu o Nobel de Medicina de 1965 com Jacques MonodArquivo famliar

O encanto pela genética foi reforçado em um curso em Piracicaba (SP), durante o qual conheceu o trabalho dos franceses François Jacob e Elie Wollman. Um ano depois de ter sido aprovado no concurso para livre-docente de parasitologia, em 1960, conseguiu uma bolsa do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPq) para estágio de pós-doutorado, um ano na Universidade Livre, em Bruxelas, com René Thomas, no laboratório de Jean Brachet; um ano no Instituto Pasteur, em Paris, com François Jacob, no laboratório de André Lwoff.

Em Bruxelas estudou a lisogenia dos bacteriófagos e, na França, a genética da lisogenia. Retornou à USP em 1963. Tentava organizar um laboratório de genética de microrganismos quando veio o golpe militar. Passou três meses preso no navio Raul Soares, denunciado por recolher fundos e dar asilo a comunistas procurados. Acabou demitido por ato do governador Adhemar de Barros, em 9 de outubro de 1964, último dia da vigência do Ato Institucional nº 1. Voltou à França e, com o apoio de François Jacob, integrou-se ao Instituto Pasteur como assistente, ganhou posição de pesquisador no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), mas não desistiu do que Lwoff dizia ser seu “primeiro amor”: o T. cruzi.

Quando o Itamaraty promoveu uma campanha de repatriamento de cientistas, em 1967, acreditou que a ditadura se esgotava. Aceitou organizar um curso no Departamento de Bioquímica da USP, em julho, e também o convite de José Moura Gonçalves, diretor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, para o cargo de professor no Departamento de Genética. Chegou em junho de 1968, seis meses antes da edição do Ato Institucional nº 5, foi demitido em abril do ano seguinte e retornou à França.

Em Paris, reassumiu sua posição no CNRS e seu posto no Pasteur. Por ter aceitado emprego em um governo estrangeiro sem a autorização da Presidência da República, prevista na Constituição de 1967, foi alvo de processo para perda de nacionalidade. Ficou três anos sem passaporte. Foi um longo período de exílio, durante o qual virou referência intelectual dos exilados brasileiros – comunistas e não comunistas – na França, no cargo de secretário político da base do PCB em Paris.

No estande da Voz Operária, jornal do PCB, na festa anual do diário comunista francês L’Humanité, durante os anos 1970, em Paris

Arquivo Familiar No estande da Voz Operária, jornal do PCB, na festa anual do diário comunista francês L’Humanité, durante os anos 1970, em ParisArquivo Familiar

No Pasteur, a pesquisa em biologia molecular avançava a passos largos: Jacob acabara de ganhar, junto com Jacques Monod, o Prêmio Nobel de Medicina de 1965, com o modelo de regulação da expressão gênica em bactérias. E foi pela mão de Jacob que Luiz Hildebrando chegou à fronteira do conhecimento. Ele o aconselhou a pegar um atalho em sua pesquisa sobre lisogenia dos bacteriófagos. “Por que vocês não exploram aquela ideia dos dois operons com sentido contrário que vocês descobriram no bacteriófago λ [lambda]?”, sugeriu Jacob. O atalho levou ao gene CRO (control of the repressor and others) e à descrição da “regulação genética de genes reguladores, um passo à frente no modelo proposto por Jacob e Monod”. Os resultados foram anunciados no artigo publicado em Proceedings of National Academy of Science, em 1970, “Regulation of repressor expression in bacteriophage”, assinado por Harvey Eisen, P. H. Brachet, Luiz Hildebrando e François Jacob.

Em 1971 foi nomeado chefe da Unidade de Diferenciação Celular do Departamento de Biologia Molecular do Instituto Pasteur e, em 1976, diretor do Departamento de Biologia Molecular. Naquele momento, foi procurado por Jacques Monod, então diretor do instituto. “Ele me disse: ‘A OMS insiste que o Pasteur relance suas pesquisas em parasitologia. Você aceita assumir a direção de uma nova unidade de parasitologia que incorpore a metodologia molecular em pesquisas?’. Aceitei na hora”, contou Luiz Hildebrando em entrevista à revista do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), em 2003.

A Unidade de Parasitologia Experimental foi criada em 1978 com o objetivo de desenvolver pesquisa sobre biologia molecular de parasitas da malária, particularmente de Plasmodium falciparum. Luiz Hildebrando voltava, assim, à parasitologia, agora com larga experiência em biologia molecular. Foi um período de intensa atividade de pesquisa: desenvolveu estudos sobre antígenos de Plasmodium falciparum e imunidade, analisou o papel dos anticorpos citofílicos, entre outras investigações envolvendo imunidade e antígenos.

Com o então presidente francês François Mitterrand na inauguração do prédio da Imunologia do Instituto Pasteur, em 1981

Arquivo familiar Com o então presidente francês François Mitterrand na inauguração do prédio da Imunologia do Instituto Pasteur, em 1981Arquivo familiar

Luiz Hildebrando só pôde se dedicar inteiramente à Unidade de Parasitologia Experimental em 1980, depois de ver fracassar mais uma tentativa de voltar ao Brasil após a anistia. Maurício Matos Peixoto, então presidente do CNPq, pretendia criar uma unidade interdepartamental no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, para estudos de protozoários patogênicos e de diferenciação celular, o que possibilitaria reintegrar os pesquisadores demitidos, com salários bancados pelo CNPq por um período de quatro anos. Luiz Hildebrando aceitou a missão de consultar Isaac Roitman, José Carlos da Costa Maia, Vitor e Ruth Nussenzweig, Michel Rabinovitch, Erney Camargo, Tomas Maack e Isaias Raw – em Nova York, Paris, Genebra e São Paulo. Todos se mostraram dispostos a integrar o ICB, com exceção de Raw, que já se dedicava à produção de imunobiológicos no Instituto Butantan. O então reitor da USP, Waldir Muniz Oliva, no entanto, colocou objeções financeiras. No meio das negociações, Peixoto foi demitido do CNPq. E não se falou mais no assunto. A USP só reconheceria a injustiça das demissões da Faculdade de Medicina em 18 de setembro de 2008, quando conferiu a cada um deles – dois já haviam morrido – o título de professor emérito.

Nos 15 anos que antecederam sua aposentadoria no Instituto Pasteur, em 1996, Luiz Hildebrando consolidou sua pesquisa sobre a bioquímica e biologia molecular dos parasitas da malária, aplicações vacinais e epidemiologia da doença. Em 1990, em colaboração com Erney Camargo, organizou uma equipe de pesquisa em Rondônia. “Nos anos 1980/1990, em consequência de uma grande migração de sulistas patrocinada pelo regime militar, Rondônia tornara-se a região de maior incidência de malária no país”, lembra Camargo.

Aposentado do Pasteur, Luiz Hildebrando decidiu aportar em Rondônia. Prestou concurso na USP e, em 1997, foi nomeado titular de parasitologia e assumiu a direção dos programas em Rondônia. Instalou-se em Porto Velho, montou o Centro de Medicina Tropical (Cepem) na Secretaria da Saúde de Rondônia e criou o Ipepatro, com um grupo de médicos e biologistas. Em pouco tempo, verificou que as vítimas assintomáticas do Plasmodium vivax podiam transmitir a doença. O artigo “Asymptomatic infections by Plasmodium vivax in a native Amazonian population” foi publicado na revista Lancet, em 1999.

Durante o primeiro estágio no Pasteur, em 1965

Arquivo familiar Durante o primeiro estágio no Pasteur, em 1965Arquivo familiar

Em 2010, no artigo “The dynamics of transmission and spatial distribution of malaria in riverside areas of Porto Velho, Rondônia, in the Amazon region of Brazil”, publicado na PLoS One, constatou que, apesar de a transmissão poder ocorrer intra e extradomicílio, a manutenção da malária nas áreas endêmicas era essencialmente dependente da transmissão intradomiciliar, reforçada pela presença das fontes de infecção permanente (assintomáticos). E que a mobilidade das populações amazônicas é fator essencial da difusão e extensão da endemia da malária.

Desde então, a equipe do Cepem vem registrando sucesso com o procedimento SIPT (selective intermittent preventive treatment), que visa ao controle de recaídas do P. vivax. A área-piloto, Candeias do Jamari, é a única cidade no estado que, em 2010/11, apresentava um API (annual parasite incidence) superior a 200 e alta incidência do P. vivax, devido essencialmente às recaídas. “Com apoio da Secretaria da Saúde do ministério, a API caiu significativamente para 82 em 2013”, ele conta.

Essas ações já impactam as estatísticas. Em 2011, os registros de malária na região amazônica tinham caído de 600 mil, em 1999, para 300 mil. No mesmo período, a participação de Rondônia nesse total caíra ainda mais, de 40% em 1999 para 12% em 2011. E a incidência continua em queda. Em 2013 foram registrados 168 mil casos na Amazônia e em Rondônia com baixa acentuada: 7% do total, com menos de 14 mil casos. “O mais importante é que em Rondônia está-se verificando queda não apenas do P. falciparum, mas também do P. vivax”, comemora Luiz Hildebrando.

As perspectivas são ainda mais promissoras com os resultados de ensaios clínicos com a Tafenoquina, uma nova quinolina produzida pelo laboratório multinacional GSK, em dose única, contra as formas hepáticas de P. vivax. “Se o ensaio for positivo, poderemos melhorar a prevenção das recaídas de malária vivax, pois o método SIPT exige tratamento preventivo por várias semanas, usando a cloroquina”, conta Luiz Hildebrando. “A expectativa é que a campanha contra a malária, que se mantinha apenas em controle, possa evoluir, brevemente, se não para uma erradicação, ao menos para uma eliminação.”

Com Cecile, atual esposa, filhos, noras e netos reunidos em Paris, em 2010

Arquivo Familiar Com Cecile, atual esposa, filhos, noras e netos reunidos em Paris, em 2010Arquivo Familiar

A equipe registra progressos também no desenvolvimento de biotecnologias aplicadas à saúde, principalmente com a produção de anticorpos monoclonais originados em camelídeos (alpacas e lhamas de Rondônia), clonando o segmento ativo do anticorpo. “O anticorpo VHH é sintetizado e expresso pela E. coli transgênica. Nossa equipe foi bem-sucedida na preparação do VHH contra a enzima fosfolipase das serpentes Bothrops e Crotalus. Já foram isolados e caracterizados cercade 20 VHH, cujas sequências foram determinadas e, algumas, patenteadas”, explica. Há bons resultados também com a tecnologia de isolamento e produção de VHH, que reage com antígenos da superfície viral, em particular de hantavírus, e dos vírus da febre amarela e da raiva.

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