O conhecimento sobre as técnicas de produzir energia elétrica por meio do hidrogênio avança em todo o mundo. No Brasil, o último resultado nessa área aconteceu no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), onde um grupo de pesquisadores conseguiu montar um protótipo de um novo tipo de célula a combustível no país. Eles produziram um condutor de eletricidade chamado eletrólito – uma peça fundamental para esses equipamentos que transformam hidrogênio e oxigênio em energia elétrica – a partir de material cerâmico composto de óxido de zircônio e óxido de ítrio, duas matérias-primas encontradas em abundância em jazidas minerais brasileiras. O óxido de zircônio é extraído do mineral badeleíta e o de ítrio da areia monazítica. Os dois materiais purificados são produzidos no próprio Ipen.
A cerâmica é uma opção ao tipo de célula mais difundida atualmente, que é a formada por eletrólitos feitos de polímero e chamada de PEM (da sigla em inglês Proton Exchange Membrane ou Membrana de Troca de Prótons), já desenvolvida também no Ipen e produzida de forma experimental por duas empresas brasileiras, a Electrocell e a UniTech (veja Pesquisa FAPESP nºs. 92 e 103). “Os eletrólitos de polímero precisam ser importados enquanto o que usamos pode ser sintetizado totalmente no Brasil”, diz o físico Reginaldo Muccillo, coordenador da pesquisa no Ipen. Ele e seu grupo fazem parte do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, que tem a coordenação do professor Elson Longo, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Chamadas de células a combustível de óxido sólido, ou Sofc (da sigla em inglês de Solid Oxide Fuel Cell), elas se diferenciam das células PEM, principalmente, na forma de operação. As PEM trabalham com temperaturas ao redor dos 100°C, enquanto as de cerâmica, como essa do Ipen, trabalham de 800 a 1.000°C. Essa característica elimina a possibilidade de fornecer energia para movimentar automóveis e outros tipos de veículo, uma função que a indústria automobilística reserva para a célula PEM. Mas as altas temperaturas proporcionam às células de óxido sólido a capacidade de co-geração de eletricidade e calor para movimentar turbinas industriais, sistemas de calefação e para esquentar, por exemplo, caldeiras industriais e caseiras, os boilers, que levam água quente ao chuveiro e às torneiras. Além desse atributo, a energia gerada cumpre as funções normais de uma célula a combustível, como fazer funcionar aparelhos eletrônicos e acender lâmpadas.
As células de óxido sólido podem ser construídas para altas potências, no âmbito dos megawatts, inclusive para ajustar o desnível provocado por grandes indústrias nas horas de pico de demanda de energia elétrica, impedindo a variação brusca que acontece principalmente no final da tarde, quando o uso é maior. A própria indústria automobilística estuda a utilização desse tipo de célula para ocupar o lugar das baterias e para suprir de energia os equipamentos de ar-condicionado. “As células a combustível funcionam como uma bateria, mas a diferença é que as células não param de funcionar enquanto existir o suprimento de combustível”, explica Muccillo.
“Nós conseguimos chegar ao funcionamento da célula na vigésima segunda tentativa. Houve uma euforia dos pesquisadores que estavam testando o equipamento”, lembra Mucillo. O trabalho foi realizado entre novembro de 2004 e março de 2005, embora o pesquisador trabalhe na área de eletrocerâmicas para sensores e células a combustível desde 1992. A pesquisa que resultou na composição cerâmica para a célula a combustível começou com um projeto temático da FAPESP e com financiamento dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), além de projetos recentes dos fundos setoriais de energia (CTEnerg) e do petróleo (CTPetro).
“O projeto temático serviu para avançarmos no conhecimento básico sobre os fenômenos intergranulares das cerâmicas e o Cepid nos trouxe a perspectiva de inovação. No final conseguimos produzir um material igual ou superior aos usados em células de óxido sólido no exterior”, diz Muccillo. Eles prepararam todos os componentes no próprio Ipen em prensas e fornos que funcionam em altas temperaturas e analisaram a microestrutura e o comportamento elétrico dos materiais. Também produziram duas peças essenciais que são semelhantes às placas que servem de lados positivo e negativo nas baterias e pilhas comuns. Essas placas, que levam o nome de anodo e catodo e também são produzidas com cerâmica, formam um sanduíche com o eletrólito no meio. Nas células de óxido sólido, esse conjunto é redondo, e não retangular como na PEM.
Para os testes eletroquímicos que determinam a potência da nova célula, Muccillo convidou pesquisadores do Departamento de Materiais do Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento (Lactec), do Paraná, grupo que também é parceiro em projetos do CTEnerg e CTPetro. Eles mediram a potência da célula e concluíram que ela possui 20 miliwatts. Esse valor é o de uma única célula e pode ser aumentado em muitas vezes com modificações no projeto, que já está em curso. Para chegar à necessidade de 5 quilowatts de uma casa de classe média será preciso fazer vários outros dispositivos iguais e juntá-los de forma que atinjam tal potência. “As próximas etapas vão servir para aprimorar a montagem da célula e dominar a tecnologia de sua fabricação”, diz Muccillo.
Evolução dos materiais
Esse tipo de equipamento já havia sido projetado e montado nos Estados Unidos há 30 anos. “O problema é que era muito caro e não chegou a ser comercializado.” Recentemente, com a evolução dos materiais, a empresa alemã Siemens voltou a pensar nas células a combustível de óxido sólido junto com outros centros de pesquisa no mundo. Um exemplo do crescimento do interesse na pesquisa e no desenvolvimento desse equipamento foi demonstrado no IX Simpósio Internacional de Sofc realizado entre 15 e 20 de maio, em Quebec, no Canadá. Cerca de 400 pessoas participaram de cem palestras e na apresentação de centenas de trabalhos de pesquisadores de empresas, universidades e centros de pesquisa, sob o patrocínio da Sociedade de Eletroquímica, dos Estados Unidos, e da Sociedade Sofc do Japão. Muccillo e seu grupo do Centro de Ciência e Tecnologia de Materiais (CCTM) do Ipen estiveram presentes apresentando projetos realizados no instituto, além de outro trabalho em parceria com pesquisadores da Universidade de Roma, na Itália, que desenvolveram uma técnica química de síntese de materiais cerâmicos para catodo de Sofc. “Eles desenvolvem os componentes e nos enviam para testarmos aqui. Mas nós não usamos esse material na célula do Ipen ainda.”
Caminho do oxigênio
Uma das vantagens do novo eletrólito cerâmico desenvolvido pelos pesquisadores do Ipen é sua capacidade de suportar altas temperaturas durante longo tempo sem perder as propriedades. É um material que precisa ter uma interação direta com o oxigênio (O2) aplicado sobre ele porque é na superfície dessa cerâmica que a molécula do gás se quebra. “O óxido de zircônio deixa passar o íon (O2-) impedindo a passagem da totalidade do gás.” Os elétrons, de carga negativa, existentes no catodo geram eletricidade junto com os elétrons do hidrogênio injetado e quebrado no lado anodo. Os prótons (H+), de carga positiva, que sobram no anodo recebem os íons do oxigênio que atravessam o eletrólito, para formar água (H2O). A água é produzida porque os íons do oxigênio, quando atravessam a cerâmica condutora, no interior da célula, encontram o hidrogênio do outro lado. Esse caminho que leva a essas reações acontece de forma inversa nas células PEM.
No caso da membrana polimérica são os prótons de hidrogênio que atravessam a membrana para o outro lado no encontro do oxigênio e a conseqüente formação de água. A célula de óxido sólido, da mesma forma que outros tipos, também pode retirar o hidrogênio de combustíveis como metanol e gás natural, num processo chamado de reforma. O hidrogênio, normalmente, é obtido por hidrólise da água, um processo ainda caro. “A reforma é uma de nossas preocupações. Queremos utilizar um reformador de etanol (o álcool que no Brasil é extraído da cana-de-açúcar). A alta temperatura facilita o uso desse processo, que pode ser acionado pelo próprio calor gerado na célula.”
Os pesquisadores do Ipen não patentearam a célula de óxido sólido. “Esses materiais que usamos para sintetizar a cerâmica estão disponíveis no mercado. O que nos interessa é adquirir competência em desenvolver esse tipo de célula.” A síntese das cerâmicas já rendeu três teses de doutorado, cinco dissertações de mestrado e mais de 20 trabalhos publicados em revistas científicas nos últimos anos. “Nosso objetivo agora é tornar essa célula competitiva e mais potente, melhorar o desenvolvimento no laboratório. Se uma indústria nacional quiser desenvolver a nossa célula não vai ter que pagar royalties para fora nem importar eletrólitos.”
Os projetos
1. Estudos de fenômenos intergranulares em óxidos cerâmicos (nº 99/10798-0); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Reginaldo Muccillo – Ipen; Investimento R$ 328.610,97 e US$ 217.952,29 (FAPESP)
2. Cerâmicas para células a combustível Sofc; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coordenador Elson Longo – Centro Multidisciplinar para o desenvolvimento de materiais cerâmicos; Investimento R$ 1.2000.000,00 anual para todo o Cepid