Nas lagoas de água salgada do Pantanal, conhecidas popularmente como salinas, entre os poucos seres vivos que sobrevivem à alta alcalinidade da água estão os microrganismos, em especial as microscópicas cianobactérias que se multiplicam na superfície formando uma espessa camada verde – a chamada floração. Segundo estudo publicado em julho na revista Acta Limnologica Brasiliensia, o aumento de temperatura em testes de laboratório diminuiu a reprodução das duas principais espécies que vivem na região, Anabaenopsis elenkinii e Limnospira platensis.
“Caso o mesmo efeito ocorra na natureza, o aumento de temperatura no contexto das mudanças climáticas poderá inibir a reprodução das cianobactérias e a sua floração”, deduz o biólogo Kleber Santos, do Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi), em Santa Catarina, primeiro autor do estudo. Santos coletou 27 amostras de água de oito salinas da Nhecolândia, região do Pantanal quase do tamanho do estado de Alagoas, com cerca de 26 mil quilômetros quadrados (km2), no município de Corumbá, Mato Grosso do Sul.
Nos testes em laboratório, a velocidade de reprodução de A. elenkinii atingiu seu máximo a 25 graus Celsius (oC), caiu pela metade a 30 oC e praticamente parou a 35 oC, enquanto L. platensis quase não se reproduziu mais a partir de 30 oC. As duas espécies formaram estruturas chamadas acinetos ou hormogônios, que resistem a condições adversas – por exemplo, em períodos de seca intensa – e brotam apenas quando elas se tornam mais favoráveis.
O resultado surpreendeu Santos. “Há poucos estudos desse tipo feitos com cianobactérias de regiões tropicais e, geralmente, o aumento de temperatura estimula a sua reprodução”, diz ele. O pesquisador sugere que diferenças genéticas da cepa do Pantanal podem influenciar esse comportamento, mas ressalta que mais estudos são necessários para entender suas causas.
A microbiologista Simone Cotta, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba, considera improvável que o aumento de temperatura diminua as florações. Ela observa que há um consenso entre pesquisadores de que as mudanças climáticas tendem a promover a multiplicação de cianobactérias e ressalta que experimentos de laboratório, feitos em condições controladas, não explicam o que acontece na natureza. “A ocorrência de florações é um fenômeno multifatorial que ainda não é plenamente compreendido”, ressalta Cotta. Entre os efeitos já documentados em uma diversidade de estudos está a presença de nutrientes, como nitrogênio e fósforo, que quando em excesso estimulam a floração.
Terra de lagoas
Na Nhecolândia, cujo nome homenageia um fazendeiro conhecido como Nheco, que viveu na região no século XIX, existem cerca de 1.500 salinas – ou lagoas alcalinas – de um total de cerca de 10 mil lagoas, a maioria de água doce. É o local com a maior extensão desses corpos d’água do mundo, com cerca de um a cada 3 hectares (ha), área equivalente a três campos de futebol.
Com uma média de 2 metros (m) de profundidade e 1 km de diâmetro, as salinas são abastecidas pelas águas das chuvas e têm contato limitado com o lençol freático, ficam um pouco mais elevadas que as lagoas de água doce e são rodeadas por montes de 3 a 5 m de altura cobertos por vegetação. Por isso, ficam isoladas do fluxo de água doce que alaga a planície.
Além disso, seu fundo é formado por uma camada endurecida de solo, que não deixa a água doce se infiltrar. A evaporação da água parada favorece o acúmulo de sais como sódio, potássio, magnésio e cálcio, que aumentam a alcalinidade do ambiente – por não conter o sal de cozinha (cloreto de sódio) a água não tem sabor salgado. Como elas são as últimas lagoas a secar em períodos de estiagem prolongada, são importantes para a sobrevivência dos animais, servindo de fonte de água e sais minerais.
Santos observou que A. elenkinii, de floração verde, é a mais comum e a primeira a colonizar esses lagos, onde começa a fixar nitrogênio do ar. Quando o nível de nitrogênio dissolvido na água fica muito alto, ela é substituída por Limnospira platensis, de floração verde-azulada, antes chamada Arthrospira platensis – a espécie foi renomeada por Santos em 2023, em estudo publicado na revista Frontiers in Environmental Science, ao verificar que o organismo tinha mais afinidade com outro gênero. “É fundamental identificar esses seres vivos corretamente para entender sua fisiologia, ecologia e biodiversidade no Pantanal”, ressalta Santos.
As cianobactérias conseguem fazer seu próprio alimento por meio da fotossíntese, assim como as plantas, usando o gás carbônico (CO2) do ar, a água e a luz solar. Por serem ricas em proteínas, vitaminas e minerais, são o principal ingrediente de um suplemento alimentar chamado espirulina. O estudo de Santos indica as condições ideais de temperatura, alcalinidade e concentração de nitrogênio na água para a reprodução do microrganismo. “Isso pode contribuir para aumentar a produtividade do suplemento”, afirma.
Metano subaquático
Em seu estágio de pós-doutorado no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), na Esalq-USP, Cotta participou de um estudo sobre outro aspecto das salinas do Pantanal: a emissão de gases. Usando câmaras que flutuam na água e aprisionam o ar emitido pela lagoa, a equipe coletou amostras de três salinas, com diferentes graus de alcalinidade, e verificou que a lagoa com floração de cianobactérias, a mais alcalina, emitiu uma grande quantidade de metano (CH4), como descrito em artigo publicado na edição de outubro da revista Science of the Total Environment.
“Quando morrem, as cianobactérias são decompostas por microrganismos que consomem o oxigênio disponível na água”, conta Cotta. “Os restos da decomposição se depositam nos sedimentos do fundo, onde há maior prevalência de microrganismos que produzem CH4 a partir desse material.” O CH4 é um gás importante para o efeito estufa, pois seu potencial de aquecimento global (GWP) é 28 vezes maior do que o do CO2.
“Na estação seca, a quantidade de CH4 emitida nessas lagoas é bem maior do que em outros ambientes aquáticos, onde as florações de cianobactérias são menos frequentes”, compara o engenheiro ambiental Thierry Pellegrinetti, pesquisador em estágio de pós-doutorado no Cena e primeiro autor do artigo. Os resultados indicam que as emissões são cerca de 38 vezes maiores do que as do mar Báltico, por exemplo. Na estação chuvosa, porém, a liberação de CH4 cai 90%.
A salina de alcalinidade média, que tinha a água turva, sem floração de cianobactérias ou plantas aquáticas, não emitiu CH4 durante o período de coleta, mas liberou traços de óxido nitroso (N₂O), que é importante para o efeito estufa (GWP 273 vezes maior que o do CO2) e é conhecido como gás hilariante por seu efeito sedativo quando inalado em concentrações mais altas.
Já a salina de baixa alcalinidade, que tinha águas cristalinas e plantas aquáticas, também produziu CH4 em decorrência da decomposição dos vegetais, mas em menor quantidade. Apesar de emitir maiores quantidades de CH4, as lagoas com abundância de cianobactérias emitiram pouco CO2, em parte porque as cianobactérias absorvem carbono quando crescem e se multiplicam, compensando as emissões.
Os pesquisadores verificaram que a quantidade de cianobactérias nos lagos aumentou entre 2000 e 2020, com base em imagens de satélite que detectam a clorofila, que aparece na forma de pigmentos verdes nos microrganismos. Pellegrinetti sugere que isso tenha acontecido porque a quantidade de água diminuiu. “Até certo ponto, o aumento na concentração de nutrientes na água favorece a proliferação dos microrganismos”, observa. “Depois disso, começa a prejudicá-los.”
Cotta ressalta que a amostra é pequena para concluir que as lagoas salinas são grandes emissoras de CH4 e lembra que as áreas alagadas, como o Pantanal, guardam muito carbono no solo, nas plantas e nos sedimentos das lagoas, que acumulam matéria orgânica. Secas longas e prolongadas poderiam, assim, contribuir para agravar as mudanças do clima. “Preservar o Pantanal pode contribuir para a diminuição das emissões de gases do efeito estufa”, conclui.
Projetos
1. Mudanças climáticas e impactos ambientais em áreas alagadas (wetlands) do Pantanal (Brasil): Quantificação, fatores de controle e previsão em longo prazo (no 16/14227-5); Modalidade Projeto Temático; Programa PFPMCG; Pesquisador responsável Adolpho José Melfi (USP); Investimento R$ 5.226.935,12.
2. Estudos de desenvolvimento, moleculares e do potencial biotecnológico em cepas de cianobactérias provenientes de lagoas salinas do Pantanal, da Nhecolândia, MS, Brasil: Anabaenopsis elenkinii (Nostocales) e Arthrospira platensis (Oscillatoriales) (nº 09/51655-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Célia Leite Sant’Anna (Instituto de Botânica); Bolsista Kleber Renan de Souza Santos; Investimento R$ 136.700,67.
Artigos científicos
SANTOS, K. R. S. et al. Ecophysiological investigation of the cyanobacteria Anabaenopsis elenkinii and Limnospira platensis: Predominant species in saline/alkaline lakes of the Pantanal Wetland. Acta Limnologica Brasiliensia. v. 36, e22. On-line. 19 jul. 2024.
SANTOS, K. R. S. et al. Molecular, morphological and ecological studies of Limnospira platensis (Cyanobacteria), from saline and alkaline lakes, Pantanal biome, Brazil. Frontiers in Environmental Science. v. 11, 1204787. 25 set. 2023.
PELLEGRINETTI, T. A. et al. The role of microbial communities in biogeochemical cycles and greenhouse gas emissions within tropical soda lakes. Science of the Total Environment. v. 947, 174646. 15 out. 2024.