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história

Como artistas contribuíram para o fim da escravidão no Brasil

Estudos avaliam a participação do teatro e da música no processo de emancipação de escravizados no país

Yhuri Cruz

“Eu não gosto de dar pancadas”, disse Clemência aos convidados na volta à sala de estar, após chicotear e bater em duas escravizadas que haviam quebrado a louça na cozinha. A cena está em Os dois ou o inglês maquinista, comédia escrita pelo dramaturgo carioca Martins Pena (1815-1848), encenada em 1845, no Rio de Janeiro. “Com essa passagem, Martins Pena ratifica o que todos os seus espectadores à época já sabiam: a violência física contra os escravizados era habitual e rotineira. Há aí claramente uma crítica à escravidão e não apenas um registro dos costumes”, afirma o historiador João Roberto Faria, autor do recém-lançado Teatro e escravidão no Brasil (editora Perspectiva, 2022).

O livro é resultado de cinco anos de pesquisa. Nele, o estudioso investiga um período de 50 anos de atividades teatrais no país, de 1838 até a decretação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Dentre as fontes utilizadas por Faria está material publicado na imprensa da época e também textos – 20 deles estão depositados no site Raros e inéditos – da dramaturgia brasileira do século XIX, projeto do Centro de Documentação Teatral da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), coordenado pelo historiador e por Elizabeth Ribeiro Azevedo, professora da mesma unidade. “Busquei mostrar que o teatro brasileiro colaborou intensamente para a formação de uma consciência antiescravista nos espectadores, bem como atuou na linha de frente do abolicionismo na década de 1880, por meio de mais de uma centena de peças teatrais escritas, publicadas e encenadas em todo o Brasil naquele momento”, explica Faria, professor aposentado de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Entrevista: João Roberto Faria
00:00 / 22:15

O ponto de partida do livro é Juiz de paz da roça, escrita em 1833 e apontada como a primeira comédia de costumes do teatro brasileiro. A peça também marcou a estreia de Martins Pena como dramaturgo e entrou em cena em 1838, no Rio. “O enredo nada tem a ver com a escravidão, mas o assunto é introduzido já na cena de abertura quando uma das personagens se queixa do excesso de trabalho do marido, um lavrador pobre que tem apenas um escravizado”, conta Faria.

“Nos anos 1830 e 1840, quando Martins Pena produziu sua obra, era tabu falar de escravidão, instituição aceita pela maioria da população brasileira naquele momento”, comenta o historiador Antonio Herculano Lopes, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). “O foco principal de Martins Pena estava na sociedade livre, branca e mestiça, mas aqui e ali a questão da escravidão aparece em seus enredos. Mesmo que o tema da escravidão fosse abordado de forma lateral, isso não era pouco para a época”, prossegue Lopes, especialista em história do teatro brasileiro.

De acordo com o livro, várias peças críticas à escravidão foram proibidas pelo Conservatório Dramático Brasileiro (CDB), criado em 1843, no Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais, escritores e jornalistas, como o poeta Gonçalves de Magalhães (1811-1882). “Planejado para ser uma associação que reunia homens interessados nas artes cênicas, logo o CDB foi encampado pelo governo imperial como órgão oficial de censura”, relata a historiadora Silvia Cristina Martins de Souza, da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Dentre os censores da instituição figuravam intelectuais como o próprio Martins Pena e Machado de Assis (1839-1908). Um dos textos vetados foi O marujo virtuoso ou os horrores do tráfico da escravatura, de João Julião Federado Gonnet, francês radicado no Brasil. Censurada em 1844 nos palcos do Rio de Janeiro, mas publicada em 1851, a peça compilava depoimentos de vários traficantes de escravizados colhidos pelo autor. “Dois censores foram designados para dar os pareceres e ambos negaram a licença [para a peça ser apresentada no Rio de Janeiro]. Um deles afirmou que a peça apresentava ‘um tecido de maldades sem contraste nenhum’, que era escrita em ‘péssima linguagem’ e que, ‘quando não fora isso, o objeto da peça não me parece admissível nas circunstâncias do país’”, anotou Faria na obra, para depois prosseguir: “As poucas palavras desse parecer, que não discute a peça, e que nada fala de seu enredo e personagens, indicam apenas vagamente a razão da censura. É preciso esclarecer quais eram as ‘circunstâncias’ em que vivia o país, ou seja, dizer que as autoridades e a população eram coniventes com o tráfico ilegal de africanos.”

Sem empatia
O demônio familiar, de José de Alencar (1829-1877), trouxe pela primeira vez na dramaturgia brasileira um protagonista negro. A comédia, que estreou em 1857, no Teatro Ginásio Dramático, no Rio de Janeiro, é centrada em Pedro, um jovem escravizado que fazia trabalho doméstico e, com suas intrigas, gerava uma série de problemas para seu proprietário. “A peça tem um tom moralista: Alencar mostra homens e mulheres corrompidos pela convivência com escravizados e defende que a única forma de extirpar esse mal seria eliminar a escravidão do interior da família brasileira”, conta Souza, autora de livros como O palco como tribuna: Uma interpretação de O demônio familiar, de José de Alencar (Aos quatro ventos, 2003). “Ao final, Pedro é castigado com a alforria, para que cuidasse sozinho da própria vida. Alencar não demonstra empatia pelo escravizado, mas, sim, pelo senhor.”

Faria concorda. O historiador lembra que o autor cearense escreveu a peça aos 28 anos de idade, antes de se tornar o político conservador que se colocaria contra a Abolição abrupta da escravidão e a Lei do Ventre Livre (1871). “O demônio familiar abriu caminho para uma discussão sobre as inconveniências da escravidão doméstica e como acabar com ela. Para os contemporâneos de Alencar, era o bastante para enxergar na peça um conteúdo antiescravista”, diz.

O espetáculo atraiu a atenção da crítica e foi apresentado em diversas cidades brasileiras até a década de 1880. “Foi um sucesso retumbante, o maior da carreira dramatúrgica de Alencar”, diz Souza. Segundo a historiadora, em 1860 a peça ganhou adaptação em Portugal e o papel de Pedro coube à atriz Emília Adelaide (1836-1905). No Brasil, o personagem foi interpretado, por exemplo, pelas atrizes-mirins Julieta dos Santos e Gemma Cuniberti – esta última, em italiano. “Como o personagem é negro e os elencos das companhias eram mestiços e brancos, tudo nos leva a crer que os atores tenham feito o uso de maquiagem blackface para interpretar Pedro”, observa a pesquisadora.

Grande alcance
“Com o passar do tempo, a forma de falar sobre a escravidão foi mudando em nosso teatro”, avalia Souza. “A partir da campanha abolicionista essa denúncia tornou-se mais nítida.” Assim, em 1879, os teatros cariocas acolheram as primeiras conferências emancipadoras, depois conhecidas como matinês abolicionistas. Encabeçadas por Vicente de Souza (1853-1908), José do Patrocínio (1853-1905) e André Rebouças (1838-1898), líderes abolicionistas, tinham na programação concertos, declamação de poemas, apresentação de pequenas comédias e trechos de peças. “O teatro lotava, às vezes com gente do lado de fora”, registrou em artigo Angela Alonso, da FFLCH-USP, autora do livro Flores, votos e balas – O movimento abolicionista brasileiro (1868-88), publicado em 2015, pela Companhia das Letras.

São dessa época espetáculos como A emancipadora, do paraense José de Lima Penante (1840-1892), que estreou em Fortaleza, em 1881, no Teatro São José, inspirado na greve dos jangadeiros que se recusaram a transportar escravizados para os navios, em janeiro daquele ano, na capital cearense. “Mesmo em peças que não abordavam essa temática, a estrela da montagem costumava anunciar ao final do espetáculo mensagens a favor da Abolição ou mesmo que a companhia teatral iria comprar a carta de alforria de escravizados”, diz Lopes, da FCRB.

Os espetáculos tinham grande alcance, sobretudo em uma sociedade pouco alfabetizada como a brasileira de então, de acordo com o historiador. “Os teatros brasileiros atraíam um público bem variado, da elite aos mais pobres. Era um lugar não apenas para se assistir ao espetáculo, mas também para ver e ser visto. Sem contar que as críticas publicadas na imprensa reverberavam o conteúdo desses espetáculos para quem não tivesse visto a peça”, relata Lopes.

O maestro da Abolição
“Na década de 1880 o movimento abolicionista contou com o apoio expressivo de músicos, muitos deles de ascendência africana”, informa a historiadora Manuela Areias Costa, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (Uems). Era o caso do regente, instrumentista e compositor baiano Manoel Tranquilino Bastos (1850-1935), conhecido como o “maestro da Abolição”.

Filho de um imigrante português e de uma liberta, Bastos fundou em 1870 a banda de música Sociedade Euterpe Ceciliana, em Cachoeira, sua cidade natal, cujos integrantes eram oriundos de camadas populares. Defensor da monarquia, Bastos se engajou no movimento abolicionista em 1884, quando ingressou na Sociedade Libertadora Cachoeirana, criada naquele mesmo ano. “O hino abolicionista [1884], uma das várias músicas que escreveu, foi tocado em festividades e encontros públicos promovidos pela entidade para arrecadar fundos e alforriar escravizados. Ele compôs outras músicas de mesmo teor”, diz Costa, que pesquisou a trajetória de Bastos em seu doutorado, defendido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2016.

Conforme a pesquisadora, Bastos não esteve sozinho na empreitada musical pelo fim da escravidão. Em 1881, por exemplo, aconteceu um concerto em São Paulo, organizado pelo maestro João Pedro Gomes Cardim (1832-1918), em prol da Caixa Emancipadora Luís Gama, fundada naquele ano. Para a festa, Cardim compôs o Hino da Abolição, com letra de Brazil Silvado. “Essas iniciativas exerceram um papel fundamental para que a campanha contra a escravidão saísse da esfera político-parlamentar e chegasse à população de forma geral, inclusive às camadas populares”, conclui Costa.

Artigo científico
SOUZA, S. C. M. de. O demônio familiar, de José de Alencar, no Teatro D. Maria II (Lisboa, 1860). Topoi. v. 22, n. 46. 2021.

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