Pequenos peixes de listras horizontais mantidos em um aquário no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, estão mostrando muito sobre a formação e a evolução do coração das pessoas. No final de junho, depois de meses examinando os mecanismos de ativação de genes nos músculos do coração do minúsculo zebrafish, José Xavier Neto e sua equipe concluíram uma série de experimentos que reforçaram sua hipótese de que a estrutura do coração dos seres humanos, com quatro câmaras internas divididas por válvulas que regulam o fluxo do sangue, poderia ter aparecido há pelo menos 500 milhões de anos, bem antes do surgimento da própria espécie humana, há 2 milhões de anos. O coração do homem, portanto, teria nascido antes mesmo do homem.
As implicações dessa conclusão são um pouco desconcertantes. “Nosso coração é praticamente o mesmo, em termos evolutivos, que o da lampreia”, assegura Xavier. Em vista da importância e dos significados do coração humano, não é muito confortável pensar nessa semelhança, já que a lampreia é um peixe alongado e primitivo, facilmente considerado muito feio, sem nadadeiras nem maxilar, e cuja boca é uma ventosa circular com o diâmetro do corpo. Xavier parece não se importar com a proximidade. “Do ponto de vista da cladística”, diz ele, referindo-se ao sistema de classificação dos seres vivos que se baseia na relação evolutiva entre as espécies, “nunca deixamos de ser peixes. Somos peixes modificados, as nadadeiras se transformaram em braços e pernas”.
Peixes primitivos como a lampreia já apresentam um coração de quatro cavidades, mas organizadas em sequência, e não em um bloco único, como no coração humano. Em outra espécie evolutivamente muito antiga, que pode ter surgido há cerca de 400 milhões de anos, a piramboia, um peixe encontrado na Amazônia (há um exemplar também no laboratório de Campinas), alongado como uma cobra e dotado de pulmões, o coração já é mais refinado, com uma divisão interna que separa o sangue rico em oxigênio do rico em gás carbônico. Para Xavier, o mais importante, a despeito da forma, é que o trajeto do fluxo do sangue no coração já forma uma espécie de S, mais pronunciado nos peixes e mais sutil nas pessoas.
Por meio de experimentos em zebrafish, também chamados de paulistinhas e bem mais simpáticos que a lampreia, em camundongos, codornas e galinhas, a equipe de Campinas tem examinado a formação das câmaras internas do coração – átrios ou ventrículos, essenciais para o armazenamento ou distribuição do sangue que circula pelo organismo. Quase duas décadas de trabalho fizeram concluir que os tipos de câmara do coração devem resultar da ação do ácido retinoico. É uma ação em ondas, ora mais intensa, ora menos, em momentos específicos do desenvolvimento embrionário. Segundo ele, quando entram em contato com o ácido retinoico, células ainda pouco especializadas recebem instruções para se organizar na forma de um reservatório de sangue, ou seja, um átrio. Quando não detectam nada, formam uma forte bomba propulsora de sangue – um ventrículo.
São estruturas bem diferentes: o átrio, de superfície lisa, funciona como um reservatório que infla ao receber sangue. As proteínas responsáveis por sua contração, as miosinas, são lentas. O ventrículo, de superfície rugosa e paredes mais grossas, maior que o átrio, com miosinas de ação rápida, pode contrair com força para fazer o sangue chegar a todas as células do corpo. O coração humano – um órgão do tamanho aproximado de um punho fechado, com 250 gramas (g) nas mulheres adultas e 300 g nos homens adultos, que bate 100 mil vezes por dia, bombeando cerca de cinco litros de sangue – tem dois átrios acima dos dois ventrículos.
Os estudos da equipe de Campinas e outros nessa linha estão ajudando a entender a origem de problemas cardíacos associados ao ácido retinoico, um derivado da vitamina A bastante usado em cosméticos. “Se uma mulher usa no começo da gestação, a má-formação é quase certa. Por isso os médicos pedem um teste de gravidez antes de receitarem ácido retinoico para tratamento de pele”, diz Xavier, carioca formado em medicina pela Universidade Federal do Ceará. “O ser humano é extremamente sensível ao ácido retinoico, mas sem ele não estaríamos aqui. Tudo depende da dose e do lugar onde vai atuar.” A possibilidade de prevenção e a correção de problemas cardíacos por enquanto são remotas, porque o ácido retinoico atua nas primeiras semanas de gestação, quando a mulher em geral ainda não sabe que está grávida.
Com os experimentos mais recentes, assim que forem publicados, Xavier pretende reforçar sua hipótese e contestar as visões antagônicas de outras equipes interessadas em elucidar os mecanismos que definem o tamanho, a forma e o modo de funcionamento de cada câmara cardíaca. Em 2008, um artigo da equipe de Deborah Yelon, atualmente na Universidade da Califórnia em San Diego, Estados Unidos, amenizou o papel do ácido retinoico, que estaria associado apenas ao tamanho do coração, e valorizou a proteína produzida a partir do gene Hox-B5, que também atua na formação do intestino e dos pulmões, com base em experimentos em zebrafish. “Quando vi esse paper”, lembra-se Xavier, “quase chorei”. “Por causa da situação de meu trabalho em 2008”, diz Xavier, “eu sabia que iria demorar para contestar”.
Em 2005, como pesquisador do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP), Xavier, com sua equipe, tinha apresentado sua hipótese sobre a formação e a evolução dos compartimentos de sangue no coração de animais vertebrados. Com base em experimentos com uma variedade impressionante de organismos, a exemplo da Ciona intestinalis, um invertebrado marinho cilíndrico que representa os parentes vivos mais próximos dos vertebrados (a formação do coração desse grupo, os tunicados, é similar aos estágios iniciais da formação do coração dos vertebrados), a equipe argumentava que o coração de câmaras de vertebrados poderia ter surgido a partir de modificações de um tubo cardíaco equivalente ao da Ciona, que é capaz de fazer movimentos semelhantes ao do intestino quando impulsiona a massa alimentar durante o processo de digestão. “Animais como a lagosta e outros crustáceos representam outro modelo para a formação das câmaras cardíacas, pois têm apenas uma câmara e são muito mais rápidos, por exemplo, que os onicóforos, vermes dotados apenas de um tubo peristáltico simples”, afirma. “As câmaras cardíacas são um atributo de vertebrados, apresentam contração simultânea e são separadas por válvulas, tudo dentro de uma membrana, o pericárdio.” Uma argumentação coerente, porém, não era o bastante. “Eu sabia que ainda teria de provar minhas hipóteses”, diz. “Tive de esperar seis anos até refazer os experimentos e mostrar o papel do ácido retinoico.”
Mesmo agora, com mais argumentos, Xavier sabe que terá de batalhar muito para fazer sua visão prevalecer; se não conseguir, poderá ser desconsiderada ou mesmo esquecida. “Hipóteses sobre evolução dificilmente podem ser testadas”, observa. Além disso, o coração facilmente engana quem procura entendê-lo. O médico romano Claudio Galeno, um dos fundadores da medicina ocidental, afirmou que o coração era feito de um tecido especial. Quase 1.500 anos depois, Leonardo da Vinci, depois de dissecar cadáveres, como Galeno, e fazer vários desenhos da anatomia do coração, sentenciou: “O coração é o principal músculo em relação à força”. Já era um avanço, mas outros equívocos persistiram. Durante séculos se pensava que as veias transportavam ar, já que estavam vazias em animais e pessoas mortas. Um século depois de Da Vinci, o médico inglês Willian Harvey descreveu a circulação do sangue em detalhes, mostrando que as veias, como as artérias, transportavam sangue e não ar.
Xavier, como outros cientistas contemporâneos, também tomou caminhos equivocados. Logo depois de chegar à Universidade Harvard para o pós-doutorado, em 1997, ele se viu atraído, quase inevitavelmente, pela ideia então em moda de que um único gene poderia ser capaz de definir a formação do coração. Havia um gene candidato, mas os experimentos – os camundongos, mesmo sem esse gene, nasciam com coração, embora morressem logo depois – indicaram que o coração dependia de muitos genes para se formar. E ele se rendeu: “É muito mais complicado do que pensávamos”.
Depois disso, Xavier conseguiu reunir animais transgênicos e reagentes apropriados – que aos poucos caíam nas mãos da coordenadora do laboratório, Nadia Rosenthal – para planejar os experimentos que poderiam indicar coisas novas sobre a formação do coração. “Mesmo se fracassar, pensei, já sou grato por observar o desenvolvimento do embrião”, ele recorda. “E, como eu estava começando na biologia do desenvolvimento, podia ver com meus próprios olhos os processos de formação dos órgaos, sem estar contaminado pelo excesso de leitura de artigos científicos.”
Xavier começou então a examinar como a expressão da enzima betagalactosidade poderia indicar a ação do ácido retinoico em diferentes regiões do coração de embriões de camundongos de nove dias. “Quase descolei a retina tentando ver o que não existia nos embriões de camundongos”, diz ele. Aos poucos ele viu claramente o padrão de coloração definido pela ativação do ácido retinoico: “Dependendo da expressão da enzima, as regiões do coração ficavam verdes, indicando que o ácido retinoico estava atuando naquela área, como ativador ou represssor de vários genes”.
Ele observou que até o sétimo dia da gestação, que demora 21 dias, o coração ainda não havia se formado, nem havia nenhum sinal da ação do ácido retinoico em tecidos cardíacos. Dois dias depois o coração já havia se delineado como um tubo, ocorria uma descarga de ácido retinoico e o átrio se formava. Logo depois, o ácido retinoico desaparecia e se formava o ventrículo. Outros experimentos, em codorna, indicaram que, sem ácido retinoico, o átrio não se formava e, de modo complementar, o excesso dessa substância impedia a formação do ventrículo. “O ácido retinoico é um ator que entra e sai do palco, na mesma peça, em papéis diferentes”, diz Xavier.
“O ácido retinoico é de fato um ator-chave na formação das câmaras cardíacas”, observa Didier Stainier, coordenador de uma equipe da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), que estuda a formação do coração em zebrafish. Em 2002, Stainier e Deborah Yelon, que trabalhou em seu laboratório, viram o papel do ácido retinoico em um estágio anterior do desenvolvimento: com outras moléculas, poderia induzir a formação de um tecido embrionário primordial chamado endoderme (o coração vai se formar a partir de outro tecido, a mesoderme). Segundo ele, Xavier “tem estado na vanguarda dessas investigações que, sem dúvida, levarão a insights adicionais sobre o processo de desenvolvimento do coração”.
Mesmo depois do coração formado, o ator versátil continua em cena. Em 2011, pesquisadores da Universidade Duke, Estados Unidos, mostraram que o ácido retinoico, por causa de sua capacidade de induzir a multiplicação celular, facilitava a regeneração do endocárdio, a camada interna do coração. Outra vez, o modelo experimental era o zebrafish; essa espécie é usada há décadas porque as fêmeas produzem muitos ovos, coletados com facilidade, e o embrião se forma a partir de uma única célula, em apenas um dia após a fertilização.
Depois de dois anos em Harvard, Xavier voltou feliz para o InCor disposto a montar um grupo de pesquisa em genética do desenvolvimento embrionário e continuar trabalhando como nos dois anos em que passou em Harvard. Sua primeira dificuldade foi conseguir camundongos, que não chegavam na quantidade e no prazo esperados. Ele não se acomodou e saiu perguntando onde poderia comprar ovo de galinha fertilizado e estufa, de modo a não deixar o trabalho parar. Muitos anos antes, com a mesma avidez por fazer ciência, ele tinha caçado sapos para fazer os experimentos previstos em seu estágio já no primeiro ano do curso de medicina em Fortaleza. “Desde a graduação eu já queria ser pesquisador”, diz ele, ao comentar, em seguida, que gostava muito das disciplinas básicas como bioquímica, para as quais os aspirantes a médicos normalmente torcem o nariz. Desde antes ele já gostava do mundo da ciência, acompanhando o pai, que era professor de bioquímica na universidade, aos laboratórios e estufas de plantas. “Lembra do kit Os cientistas, da década de 1970? Eu tinha todos. Vivo nesse mundo desde cedo.”
Xavier demorou cinco anos até montar sua própria equipe e o laboratório de que precisava para retomar o ritmo de trabalho que desejava. “Se ficar sozinho, está perdido”, ele conclui. “Network é tudo.” Por meio de testes em galinhas e em codornas, ele verificou que a ação do ácido retinoico, por sua vez, era regulada pela enzima RALDH2. “Detalhei o que e quando acontecia”, diz. Ele não parou mais de aproveitar os estudos sobre outros animais – vermes marinhos, escargots, lagostas e outros – para examinar os processos evolutivos de formação do coração e, a partir de 2010, quando se mudou para o LNBio, continuou a produzir linhagens de animais transgênicos, a maioria sob encomenda, para experimentos de outros pesquisadores e de seu próprio grupo. Incapaz de se aquietar, em agosto ele percorreu outra vez a chapada do Araripe, no Ceará, em busca de fósseis de peixes com idade média de 120 milhões de anos que, examinados por tomografia, poderiam revelar um pouco mais da evolução do coração.
Projeto
Evolução e desenvolvimento das câmaras cardíacas (nº 06/50843-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável José Xavier Neto (LNBio); Investimento R$ 311.558,83 (FAPESP).
Artigos científicos
SIMÕES-COSTA M. S. et al. The evolutionary origin of cardiac chambers. Developmental Biology. v. 277, n. 1, p. 1-15. 2005.
MOSS, J. B. et al. Dynamic patterns of retinoic acid synthesis and response in the developing mammalian heart. Developmental Biology. v. 199, p. 55-71. 1998.
WAXMAN, J. S. et al. Hoxb5b acts downstream of retinoic acid signaling in the forelimb field to restrict heart field potential in zebrafish. Developmental Biology. v. 15, n. 6, p. 923-34.
YELON D. e STAINIER, D.Y. Pattern formation: swimming in retinoic acid. Current Biology. v. 12, n. 20, p. 707-9.