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WCSJ

Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência debate gênero e biodiversidade

Primeiro dia do evento contou com palestra de Brigitte Baptiste, referência em pesquisas na área de biologia na Colômbia

Christina Queiroz

É possível compreender a biodiversidade mundial sem impor uma narrativa única? Em palestra de abertura da 12ª edição da Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência (WCSJ), que aconteceu entre os dias 27 e 31 de março em Medellín, na Colômbia, a bióloga Brigitte Baptiste, reitora do Centro de Atenção Regional – Universidade EAN, observou que os ataques que a ciência vem sofrendo, nos últimos anos, decorrem, principalmente, das dificuldades que pesquisadores e instituições têm de considerar outras formas de conhecimento.

Em palestra provocativa, ela focou nos conflitos existentes na produção do conhecimento científico, embates que também afetam o jornalismo de ciência. “O descrédito que a ciência enfrenta hoje se relaciona com a ideia de que ela representa uma ameaça à diversidade cultural”, disse Baptiste, que até 2019 dirigiu o Instituto de Investigação de Recursos Biológicos Alexander von Humboldt. Nessa chave de leitura, pesquisadores e jornalistas seriam acusados de se valer do conhecimento para justificar interesses políticos. “Que tipo de narrativa estamos usando para falar de biodiversidade?”, questionou, lembrando que o conhecimento é produzido a partir da realidade de cada indivíduo. De acordo com a bióloga, visões de populações indígenas, por exemplo, têm desafiado políticos, sociedade e ciência, mas, apesar disso, não são consideradas na formulação de ações governamentais.

Para sustentar seus argumentos, Baptiste citou as recomendações do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climáticas (IPCC), feitas a partir do diálogo entre cientistas, como exemplo desse descompasso. “É inviável recomendar que, para frear a crise climática, cidades latino-americanas que nem sequer conseguiram construir locais decentes para suas populações morarem devem descarbonizar edifícios ou mesmo dizer a povos amazônicos, cuja dieta se baseia no consumo de peixes e frutas, que é preciso comer mais plantas e menos carne”, disse a bióloga. Segundo ela, essas recomendações foram feitas a partir de parâmetros do Norte global, alheias, portanto, às diferentes realidades da América Latina.

“Pela natureza de sua profissão, pesquisadores se especializam em campos do conhecimento, algo que é bom para o desenvolvimento científico, mas pode não servir para apoiar a formulação de recomendações como as do IPCC, que demandam um alcance mais abrangente.” De acordo com a pesquisadora, para desconstruir esse cenário de descrédito, é preciso conciliar diferentes tipos de saberes nas ações governamentais.

Apesar de chamar a atenção sobre aspectos coloniais presentes em narrativas sobre o meio ambiente e a biodiversidade, Baptiste destaca a complexidade do assunto. “Como seria se os latino-americanos tivessem conquistado a Europa? Iríamos impor nossas formas de conhecimento? Também chamaríamos isso de colonialismo?” Partindo das ideias da bióloga norte-americana Joan Roughgarden, da Universidade Stanford, e dos estudos queer, em suas reflexões, Baptiste trabalha com a noção de que as ciências biológicas dos séculos XIX e XX se desenvolveram com base em uma visão masculina, o que impediu que se tivesse uma percepção adequada da diversidade sexual e de gênero no reino animal.

O primeiro dia do evento também contou com uma sessão sobre equidade de gênero, reunindo pesquisadoras latino-americanas, entre elas a bioquímica peruana Carla Fabiana Crespo Melgar, que estuda as relações entre a produtividade agrícola e o combate à fome; a nutricionista da Guatemala Gabriela Montenegro-Bethancourt, com pesquisas sobre como aprimorar cuidados da saúde entre populações maias; e a epidemiologista peruana Magaly Blas. Há oito anos, Blas iniciou um estudo sobre a saúde de mães e crianças indígenas na Amazônia peruana e colombiana. “Quando comecei a trabalhar na região, os homens das comunidades não estavam acostumados a ver uma mulher liderando um projeto e menos ainda médica. Havia uma desconfiança com a medicina tradicional”, lembrou Blas, dizendo que logo no início do estudo ela engravidou. “Quando fui trabalhar grávida na Amazônia, consegui enxergar a desigualdade com mais clareza”, conta. A partir da experiência, ela criou o programa “Mamás del rio”, para aprimorar o atendimento à saúde de mães e crianças de áreas rurais da região. Conforme ela, hoje, o grande desafio do projeto, do qual fazem parte médicos, epidemiologistas, antropólogos, sociólogos, obstetras e enfermeiros, é que ele se torne uma política de saúde pública do governo peruano. Blas, docente da Universidade Peruana Cayetano Heredia, critica a falta de apoio institucional para divulgar os resultados de suas pesquisas, de forma que eles possam chegar até a sociedade e formuladores de políticas. “O jornalismo de ciência desempenha papel fundamental para fazer essa ponte”, diz.

Outro destaque do dia foi um painel sobre conservação da biodiversidade amazônica, que reuniu cinco pesquisadores, sendo a geógrafa brasileira Ane Alencar, diretora científica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), um deles. Alencar falou sobre as dinâmicas de queimadas na região e como elas devem ser consideradas nos planos de combate ao desmatamento. Também presente na palestra, o zootecnista colombiano Rodrigo Botero, da Fundação para a Conservação e Desenvolvimento Sustentável (FCDS), destacou a necessidade de se promoverem diálogos transnacionais como forma de buscar soluções conjuntas de conservação à região. Botero, que trabalha há 25 anos na região da Amazônia colombiana, defende que também é necessário dialogar com grupos armados e outros envolvidos com economia ilegal na região. “O conflito armado está se expandindo por toda a Amazônia, incluindo as fronteiras com Brasil e Peru”, alertou.

Em 2016, o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) assinaram um acordo de paz para encerrar conflitos que mataram mais de 260 mil pessoas, em cerca de 50 anos. Como parte desse processo, nos últimos três anos,  o governo colombiano iniciou conversas com grupos armados da Amazônia colombiana envolvidos em atividades econômicas ilegais, como forma de incluí-los na busca por soluções para frear os efeitos da crise climática. “Esses grupos já sentem os efeitos da crise climática em seus negócios e reconheceram, pela primeira vez, que é necessário falar sobre eles”, afirmou. Como reflexão em comum, os palestrantes defenderam, na mesa, que é preciso entender o tamanho das economias ilegais na região, entre elas a mineração, e buscar alternativas de desenvolvimento para os habitantes do território.

Essa foi a primeira vez que a Federação Mundial de Jornalistas de Ciência (WFSJ) organizou a Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência em um país da América Latina.

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