MIGUEL BOYAYANO aprendizado de história natural no colégio mexeu com a imaginação e o rumo profissional de José Galizia Tundisi, 68 anos, que em seu currículo registra quase cinco décadas de estudo e projetos dedicados a recursos hídricos e meio ambiente. Era o final da década de 1950. Tundisi estudava em Jaú, no interior de São Paulo, cidade vizinha a Bariri, onde nasceu e ainda morava, e se encantou com as aulas dadas pelo professor Antonio Therezio Mendes Peixoto, a ponto de se lembrar, tantos anos depois, da importância desse mestre para as suas escolhas futuras.
A primeira dessas escolhas foi o curso de história natural na Universidade de São Paulo (USP), vinculado à Faculdade de Filosofia. Naquele tempo não existia ainda o curso de ciências biológicas. “O curso de história natural tinha um pouco a tradição da velha escola alemã de naturalistas, influência do professor Ernest Marcus e outros fundadores da USP”, diz Tundisi. As disciplinas contemplavam várias áreas, como zoologia, botânica, geologia, mineralogia, física, química e matemática. O curso, com duração de cinco anos, foi concluído em 1962.
“A grande escola que eu tive relacionada com água e ecologia de águas foi no Instituto Oceanográfico da USP”, diz o pesquisador. Foi lá que ele fez a iniciação científica, orientado pela professora Marta Vanucci, que trabalhava em um circuito internacional muito amplo e, com isso, trazia sempre idéias novas. “Fiquei muito interessado por essa nova dimensão da ciência a que fui apresentado, que não se limitava a descrever os organismos, mas tinha como objetivo conhecer melhor as inter-relações entre os organismos e o ambiente, a base da ecologia”, diz. A etapa seguinte foi o mestrado em oceanografia biológica pela Universidade de Southampton, na Grã-Bretanha, encerrado em 1966 com a dissertação “Alguns aspectos da produção de substâncias extracelulares pelas algas marinhas”.
Na volta ao Brasil fez o doutorado em ciências biológicas na USP, orientado por Francisco Lara, com a defesa da tese “Produção primária, standing stock do fitoplâncton e fatores ecológicos da região lagunar de Cananéia”, em 1969. O pesquisador trabalhou no Instituto Oceanográfico da USP até 1971, quando foi para São Carlos, no interior de São Paulo, onde mora até hoje, fundar o curso de graduação em ciências biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). No ano seguinte criou o curso de graduação em biologia e mais tarde o programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) de ecologia e recursos naturais, que em outubro completou 30 anos. “O programa de pós-graduação teve um papel importante na formação dos primeiros quadros profissionais no Brasil em ecologia, com uma visão mais sistêmica, e não apenas descritiva”, diz Tundísí.
Em 1984 ele voltou às origens acadêmicas. Foi novamente para a USP de São Carlos, desta vez no Departamento de Hidráulica e Saneamento. Lá, em 1989, criou outro curso de pós-graduação, chamado ciências da engenharia ambiental. “Foi uma evolução do processo, porque o curso de ecologia da UFSCar era mais básico,formava profissionais voltados para o problema da água, enquanto o curso da USP tinha fundamentalmente uma aplicação em água”, relata. Após criar um curso de graduação e dois de pós-graduação na mesma cidade, em duas universidades diferentes, Tundisi foi convidado a presidir o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), onde ficou de 1995 a 1998, quando se aposentou da carreira acadêmica.
Outros projetos estavam a caminho. A experiência e o conhecimento de Tundisi e de sua mulher, a pesquisadora Takako Matsumura-Tundisi, especialista em ecologia de sistemas, resultaram na criação do Instituto Internacional de Ecologia, em São Carlos, empresa que desenvolve pesquisas em planejamento e gestão de recursos hídricos e oferece serviços de consultoria na área. Entre os clientes estão várias empresas interessadas em resolver o problema da gestão das águas, grandes hidrelétricas e empresas de mineração.
Tundisi também coordena um projeto, chamado Programa de Águas (Water Programme), parte de um programa mundial que reúne 96 academias de ciências e sob a responsabilidade da Academia Brasileira de Ciências. “Afinalidade é estender essas idéias que desenvolvi no Brasil em termos de pós-graduação, pesquisa e formação de recursos humanos para criar centros de pesquisa, inovação e capacitação”, diz. Brasil, Polônia, China,Jordânia, Casaquistão e África do Sul integram a rede para implementar esses centros. “O grande gargalo que temos é formar gerentes qualificados que trabalhem na gestão das águas do ponto de vista da inovação”, diz Tundisi. Isso significa ter uma visão mais ampla do processo de gestão, que não se limite apenas ao tratamento da água, mas sim o seu papel na economia local, regional e na saúde humana.
Entre os planos atuais do pesquisador está a criação de um terceiro curso de pós-graduação, de recursos hídricos e desenvolvimento sustentável, no Centro Universitário Metropolitano de São Paulo (Unimesp), em Guarulhos. “É um terceiro momento, em que vamos trabalhar muito mais a questão da água na Região Metropolitana de São Paulo”, diz Tundisi, que prevê um cenário não muito alentador para daqui a duas décadas. “Em 2025 poucos países serão capazes de produzir e exportar alimentos a partir da água que possuem.” E lembra que para produzir um boi são necessários 4,500 metros cúbicos de água e outros milhares de litros para um único quilo de arroz. A América do Sul, com o aqüifero Guarani, é um dos continentes privilegiados nesse cenário que se desenha para o futuro próximo. “O Brasil tem um papel estratégico para a produção de alimentos não só para a nossa população, mas para o mundo”, diz o pesquisador. A água disponível será a grande diferença entre os países.
O interesse de Tundisi por história natural cinco décadas atrás resultou em 300 trabalhos publicados, 24 livros lançados e a formação de 60 mestres e doutores, espalhados por estados como Paraná, Santa Catarina, Amazonas, Minhas Gerais, Paraíba, Mato Grosso e países vizinhos. “Muitos mestres e doutores que formei estão hoje liderando cursos e programas de pós-graduação na América Latina”, diz. Muitos gerentes de empresas de saneamento e indústrias também foram formados por Tundisi, em cursos realizados na América Latina e na África e em cursos ministrados para gerentes de recursos hídricos de países do Mediterrâneo. Todos formados com uma visão integrada dos processos que englobam água, meio ambiente, saúde humana e economia.
Republicar