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PROPRIEDADE INTELECTUAL

Cuidando bem das próprias idéias

FAPESP vai incentivar o patenteamento dos resultados de pesquisas

O mineiro Alberto Santos Dumont, que há cem anos ultimava os preparativos para o vôo inaugural do 14-Bis, não patenteou nenhum de seus inventos, entre os quais, ao que consta, se incluía até mesmo o uso do relógio no pulso. Se tivesse tomado esse cuidado, talvez o inventor do avião conseguisse evitar a amargura do final da vida, que o levou ao suicídio, e aquinhoar uma parte dos dividendos da bilionária indústria dos ares.

Para mudar esse quadro de quase desdém pelos mecanismos de proteção dos resultados das pesquisas científicas e tecnológicas, a FAPESP decidiu, no final do ano passado, que vai atuar de modo mais efetivo no campo da propriedade intelectual – tema ainda pouco tratado entre os cientistas no Brasil, mas de importância crescente, dado o interesse comercial despertado por descobertas ocorridas em laboratórios de instituições de pesquisa no mundo todo.

Para uma instituição cuja história se construiu sobre o financiamento de projetos de pesquisa em todas as áreas do conhecimento, a definição de formas de proteção legal dos resultados dos trabalhos acadêmicos configura um marco histórico. Neste campo, a FAPESP limitava-se até agora a ações isoladas de apoio a pesquisadores e a uma cláusula nos contratos de financiamento de projetos com empresas, por meio da qual poderia receber 50% dos royalties resultantes da exploração comercial das tecnologias que ajudou a desenvolver.

Os novos procedimentos formais devem ser definidos ao longo deste semestre, mas já é certo que os pesquisadores ou bolsistas que receberam financiamentos da FAPESP, em qualquer época, podem encaminhar pedidos para análise de patenteamento dos resultados de seus trabalhos. A princípio, segundo Edgar Dutra Zanotto, coordenador adjunto da diretoria científica da FAPESP, o próprio corpo de 6 mil assessores da Fundação examinará se o resultado de uma pesquisa é ou não patenteável.

A FAPESP poderá ela própria encaminhar os pedidos avaliados positivamente ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a entidade do governo federal sediada no Rio de Janeiro que cuida dos registros no Brasil, ou indicar escritórios voltados a áreas específicas. A Fundação propõe-se a cobrir os custos da patente provisória, válida por um ano.

Nesse período, os assessores que tiverem examinado os projetos ou uma comissão especializada em propriedade industrial (a forma final a ser adotada pela FAPESP ainda não está definida) providenciarão relatórios ou protótipos dos inventos com a finalidade de encontrar parceiros que possam pôr a nova tecnologia em fabricação e uso por meio de contratos de licenciamento.

Diretrizes
Fecha-se assim o ciclo que a FAPESP está montando: de um lado, o desenvolvimento já em curso de tecnologias, viabilizado por meio dos auxílios a pesquisas em andamento, dos programas de parcerias para inovação tecnológica (Pite) e o de pequenas empresas (Pipe); de outro, o patenteamento dos resultados de pesquisas, agora incentivado; e, por fim, o licenciamento de tecnologias às empresas, de modo a tornar comerciais as pesquisas, sobretudo as de evidente caráter tecnológico. “A inovação efetiva só ocorre quando a tecnologia se torna um produto”, comenta Zanotto.

Se uma ou mais empresas se interessarem pelo invento, a FAPESP providenciará a patente definitiva, “apenas no Brasil, nos Estados Unidos ou no mundo todo, dependendo do mercado”, diz Zanotto. Segundo ele, a Fundação, ao cobrir os custos, reserva-se o direito da titularidade – em outras palavras, torna-se a proprietária da patente, conforme o modelo em estudo, embora os lucros resultantes da exploração comercial sejam compartilhados em proporções iguais com o inventor e o empregador (a universidade ou o instituto de pesquisa).

Zanotto alerta para o fato de que a produção científica brasileira tem crescido, encontrando-se no momento próxima a 1% da produção mundial, mas o desenvolvimento tecnológico – avaliado pelo número de patentes depositadas nos Estados Unidos, equivalente a 0,05% das patentes concedidas anualmente naquele país – mantém-se estável há mais de dez anos. Os caminhos agora trilhados pela FAPESP, ele ressalta, constituem alternativas aos escritórios de transferência de tecnologia mantidos por universidades e institutos de pesquisa, de modo que o pesquisador possa escolher a forma que julgar mais adequada para cuidar de seu invento.

Sem uma estrutura formal ligada à propriedade intelectual, há apenas 11 patentes com a participação da FAPESP registradas espontaneamente no banco de patentes Derwent, um dos maiores do mundo, disponível desde dezembro para pesquisadores e empresários paulistas. “Centenas de projetos de pesquisa poderiam ter sido patenteados, se o caminho fosse menos árduo”, diz Zanotto. Sua estimativa é que cheguem de uma a duas centenas de pedidos por ano, à medida que ganhe corpo a nova estrutura de exame de viabilidade de patenteamento e de licenciamento de tecnologias na Fundação.

Encontro
A reorientação nessa área resulta de estudos iniciados pela diretoria científica da FAPESP em 1998. Culminou nas apresentações e nos debates realizados durante o workshop Propriedade Intelectual e Patentes , realizado pela FAPESP no dia 15 de dezembro de 1999, com cerca de 200 participantes. “Estamos muito atrasados nessa área no Brasil”, observou o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, na abertura do workshop. Segundo ele, a busca de mecanismos de proteção à propriedade intelectual tornou-se prioritária para a Fundação, em vista das sucessivas descobertas científicas com potenciais aplicações industriais. “A FAPESP vai atuar de modo mais incisivo e compatível com os programas de indução tecnológica que mantém”, reiterou.

Osires Silva, diretor do Departamento de Tecnologia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e criador da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), comentou que propriedade intelectual é um tema “da maior importância, que envolve interesses e cifras elevadas”. Alertou: “Infelizmente, a taxa de desenvolvimento mundial é bastante grande. Estamos perdendo tempo nessa corrida e está aumentando o fosso entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento.”Mas há como reagir. Osires Silva contou que a Embraer negociou US$ 7 bilhões no Salão de Le Bourget, em junho de 1999, em Paris, porque detém a propriedade das marcas e da tecnologia de fabricação dos aviões. “Se fizéssemos licenciamento, como sugeriram, teríamos no máximo o domínio do mercado interno.”

Em seguida, o presidente da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, lembrou que o Brasil depositou 56 patentes nos EUA em 1996, enquanto a Coréia deposita 1.500. “Como é que a Coréia consegue?”, questionou. Não se trata, ele lembrou, de um país tão diferente do Brasil. “Uma instituição que financia pesquisa, em um ambiente acadêmico e industrial, precisa induzir à reflexão”, disse.

As apresentações dos especialistas convidados, reproduzidas no encarte especial que acompanha esta edição de Pesquisa FAPESP , incentivaram os pesquisadores a registrar e a negociar tecnologias, ao delimitar os riscos, os custos, os benefícios e as exigências de uma patente. David Allen, assessor da vice-presidência do Escritório de Licenciamento da Universidade Estadual de Ohio, tratou dos conceitos básicos em uma de suas apresentações, pela manhã, e dos mecanismos de licenciamento de tecnologias, à tarde.

De Israel, vieram duas especialistas: Paulina Ben-Ami, vice-presidente de patentes e propriedade intelectual da Yeda, uma empresa que patenteia e licencia os inventos do Instituto Weizmann, e Renée Ben-Israel, gerente de propriedade intelectual da Yissum, empresa privada ligada à Universidade Hebraica de Jerusalém.

Situação brasileira

Maria Celeste Emerick, coordenadora de gestão de tecnologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, analisou as diretrizes e os resultados das estratégias de proteção à propriedade industrial da Petrobras, IPT, USP, Unicamp, Embrapa e Fiocruz. “Se não mudarmos, perderemos tudo o que já fizemos”, afirmou. No final, Luiz Otávio Beaklini, diretor de patentes do INPI, comentou a respeito dos critérios e dificuldades das análises de patentes. Diante de críticas da platéia, tratou também dos mecanismos que o instituto procura implantar para atender com presteza os pedidos que chegam.

O encontro deixou claro uma série de procedimentos imediatamente aplicáveis em relação à propriedade intelectual. Um deles: não publicar nada antes de patentear, sob o risco de perder a patente, pois a maioria dos países exige o ineditismo para conceder o privilégio de exploração de um invento. Outra constatação é que o patenteamento, por si só, não resolve problemas. Cria, sim, mecanismos legais de proteção de uma idéia e caminhos de negociação.

Após o acordo, o pesquisador pode agir como consultor da empresa ou como antena das tendências de mercado. A regra é não se acomodar, jamais. Mais: não adianta fazer patente se o inventor ou financiador não está interessado em explorar o mercado atingido pela nova tecnologia. Por fim, uma comprovação espantosa: os acordos de licenciamento com empresas gerados a partir das patentes resultam principalmente de contatos dos próprios pesquisadores.

O próprio Zanotto, o organizador do workshop, conta que reveria suas atitudes. Entre 1995 e 1996, um de seus alunos de doutorado, Oscar Peitl, participou do desenvolvimento de biovidros na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. O invento hoje é explorado comercialmente pela US Biomaterial e os royalties cabem inteiramente à Universidade da Flórida, que detém a titularidade. Os pesquisadores nada recebem, embora constem como inventores. “Hoje eu não procederia da mesma forma”, reconhece Zanotto.

Banco de patentes
Em qualquer país, um pedido de patente só é aceito se cumprir três requisitos: a não-obviedade, a originalidade mundial e o potencial comercial do invento. Para saber se o trabalho que se pretende registrar atende a essas exigências prévias, é possível economizar tempo e dinheiro pesquisando em bancos internacionais de patentes.

Um dos maiores bancos de patentes do mundo, o Derwent, um dos maiores do mundo, do Institut for Scientific Information, está disponível desde dezembro para universidades e instituições paulistas de pesquisa que têm acesso ao Web of Science, o banco de artigos científicos apoiado pela FAPESP.

Segundo o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, o acesso ao Derwent deve se estender em breve às empresas que participam dos programas de inovação tecnológica mantidos pela FAPESP, o de Inovação Tecnológica em Pequena Empresa (Pipe) e o de Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). Por meio de outras instituições, deve se tornar ainda mais amplo o acesso no meio empresarial.

O Derwent (dii.derwent.com) contém quase 10 milhões de patentes concedidas no mundo desde 1963. A pesquisa pode ser feita a partir do nome do inventor, depositante, ano, país ou por palavra-chave, em três seções distintas, Química, Eletroeletrônica e Engenharia em geral. O Derwent mantém o diálogo com o ISI, por meio do qual permite acesso a artigos e citações.

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