Filho de uma família inglesa abastada, ele estudou medicina e também artes, etapa inicial para quem almejava a carreira de clérigo na igreja anglicana, mas dedicou-se às ciências naturais, sobretudo geologia e botânica. Seguindo recomendação de um de seus professores na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, embarcou aos 22 anos no navio HMS Beagle, em que deu a volta ao mundo ao longo de quase cinco anos. Ao retornar à Inglaterra, viveu um período em Londres e depois de casado mudou-se para os arredores com a mulher, Emma, e filhos. Ao todo, foi pai de 10 crianças, das quais sete sobreviveram. Por duas décadas dedicou-se às investigações que se transformariam em um dos famosos livros da história da ciência, A origem das espécies, publicado em 1859.
Aspectos da trajetória do naturalista britânico Charles Robert Darwin (1809-1882), bem como do contexto histórico em que se desenvolveram as experiências e pesquisas do autor da teoria da evolução das espécies pela descendência comum e seleção natural, são o tema da exposição Darwin, o original. A mostra, que fica em cartaz até dezembro, no Sesc Interlagos, em São Paulo, foi concebida pela Cité des Sciences et de l´Industrie, da Universcience, instituição de divulgação científica, técnica e industrial vinculada ao Ministério da Cultura francês, em parceria com o Museu Nacional de História Natural, em Paris.
“Além da originalidade do pensamento de Darwin, o título também remete ao fato de que utilizamos seus textos originais para compor o conteúdo da mostra”, explica Christelle Guiraud, museóloga da Universcience e uma das curadoras da exposição. “Isso não quer dizer que estamos exibindo documentos de época na exposição, mas que utilizamos como fontes livros, notas e cartas que Darwin realmente escreveu, pois muito de seu pensamento foi deturpado ao longo do tempo.”
Para costurar conteúdos históricos, biográficos e científicos, a mostra usa recursos tecnológicos – elemento recorrente nas mostras criadas pela Universcience que, entre outras, também produziu Pasteur, o cientista, com estreia prevista para abril no Sesc Santo André. “Como variedade é uma palavra-chave no pensamento de Darwin, procuramos contar essa história por meio de gráficos, filmes e jogos”, completa Astrid Aron, também museóloga da Universcience e curadora da exposição.
Tempo profundo
O módulo final da exposição intitula-se Darwin no Brasil, com curadoria das escritoras e roteiristas Leda Cartum e Sofia Nestrovski, dupla à frente do podcast Vinte Mil Léguas. Em 2020, a primeira temporada do podcast, realizada pela revista de literatura Quatro Cinco Um e pela livraria Megafauna, com apoio do Instituto Serrapilheira, foi dedicada ao cientista inglês e rendeu o livro As vinte mil léguas de Charles Darwin, que acaba de ser lançado pela Edições Sesc São Paulo e editora Fósforo. “A bordo do Beagle, na única grande viagem que fez na vida, Darwin passou pela costa brasileira em 1832 e 1836, quando visitou lugares como Fernando de Noronha e várias cidades do Rio de Janeiro”, relata Nestrovski. O interesse dos viajantes que vinham da Europa para o Brasil, ressalta, não era meramente científico. “Havia interesses comerciais, inclusive do próprio Beagle. De qualquer forma, Darwin se encantou pelas paisagens que viu aqui e se indignou com a escravidão vigente no país de então”, continua Nestrovski.
A meta do módulo, diz a dupla, é convidar o visitante a olhar para o próprio entorno de maneira darwiniana. “Muito mais do que falar de Darwin, queremos falar a partir de Darwin. Pensar a respeito do tempo profundo, do tempo geológico que se acumula de maneira vertical e foi fundamental para Darwin compreender como se deram as transformações das espécies”, comenta Cartum. Exemplo disso, aponta, são as amostras de terra e rochas coletadas a cada 2 metros na escavação de um poço artesiano com cerca de 400 metros de profundidade no próprio Sesc Interlagos, em 2019. “Quanto mais fundo, mais longe se alcança o passado. A partir dos 60 metros foram encontradas rochas da era Pré-Cambriana, como granito e xisto. A ideia é mostrar que estamos pisando em um lugar onde existem várias camadas de tempo e que a teoria da seleção natural não está distante de nós”, prossegue Cartum.
Parte dos itens do módulo brasileiro veio do Museu de Geociências e do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP). É o caso de réplicas de fósseis de animais pré-históricos, a exemplo do Mesossaurus tenuidens, réptil que viveu há cerca de 280 milhões de anos na bacia do Paraná. Ou então de um fóssil de tronco de madeira com 270 milhões de anos encontrado na região da cratera de Colônia, no distrito de Parelheiros, na zona sul de São Paulo. O módulo tem consultoria científica de Flávia Natércia da Silva Medeiros, doutora em biologia e divulgadora científica. “O desafio foi encontrar informações de interesse geral, como o tamanho, a aparência, os hábitos e os ambientes em que viveram esses organismos. Isso para ajudar o visitante a imaginar como eles eram”, conta Medeiros, que recorreu a artigos científicos e contou com a ajuda do paleontólogo Felipe Alves Elias, do MZ-USP, para verificar datas e informações técnicas sobre as peças.
Interesse ampliado
A exposição Darwin, o original estreou em 2015, em Paris, e passou pela Bélgica e Argentina. Nesses lugares atraiu ao todo 500 mil visitantes, segundo as museólogas do Universcience. De acordo com o Sesc Interlagos, quase 3 mil pessoas visitaram a mostra em seus primeiros 20 dias. “Embora a gente viva hoje tempos de negacionismo científico, com grupos criacionistas questionando a teoria da evolução biológica, Darwin é um cientista pop, do qual ouvimos falar desde o ensino básico. Sua contribuição à ciência é imensa, embora esteja sujeita, como qualquer produção teórica, a altos e baixos, sem contar que precisa ser entendida dentro do contexto do século XIX”, observa o biólogo Nelio Bizzo, da Faculdade de Educação da USP e especialista na obra de Darwin. “Ele ainda é mais falado do que lido e infelizmente permanece conhecido apenas por algumas ideias genéricas, mesmo na área das ciências biológicas.”
A bióloga e historiadora Maria Elice de Brzezinski Prestes concorda. Professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP, há quatro anos ela ministra uma disciplina sobre A origem das espécies para estudantes de graduação e pós-graduação de todas as áreas do conhecimento. “Embora Darwin tenha escrito o livro para o público leigo e não para acadêmicos, trata-se de uma obra árida, de difícil leitura, e apenas uma parcela pequena de alunos a conhece por completo”, constata a estudiosa, que no momento prepara um livro sobre a teoria que pretende reunir 25 especialistas brasileiros e estrangeiros, como Bizzo, Aldo Mellender de Araújo, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IB-UFRGS), e Gregory Radick, da Universidade de Leeds, no Reino Unido. “A ideia é destrinchar os 14 capítulos que compõem a primeira edição de A origem das espécies e fazer algo próximo de um manual para ajudar estudantes de qualquer área a adentrar no pensamento darwiniano”, explica.
Dentre essas áreas está a medicina. “Princípios darwinianos como a seleção natural estão sendo utilizados pelos cientistas para entender o desenvolvimento de células cancerígenas e auxiliar em tratamentos contra a doença”, exemplifica Guillaume Lecointre, curador científico da mostra Darwin, o original e diretor do Departamento de Sistemática e Evolução do Museu Nacional de História Natural, em Paris. “O interesse pelo pensamento de Darwin não está circunscrito aos biólogos, embora essa concepção ainda seja pouco difundida no Brasil”, observa o economista José Eli da Veiga, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Para averiguar o impacto das ideias do naturalista inglês em outras esferas do conhecimento, Veiga promove o ciclo “Conversas sobre a teoria darwiniana”, que estreou em março e está programado para acontecer uma vez por mês ao longo de todo este ano. O evento on-line é um desdobramento do ciclo “Evolução darwiniana e ciências sociais”, realizado na instituição em 2007, por Veiga, que também é autor de Amor à ciência – Ensaios sobre o materialismo darwiniano (Editora Senac São Paulo, 2017). Na obra, ele discorre sobre o desenvolvimento das bases lançadas por Darwin e sua apropriação por outras áreas das ciências, como a psicologia, a física quântica e a antropologia. “É um fenômeno novo, iniciado nos anos 1980, que gera controvérsia e, portanto, merece ser debatido”, diz o economista.
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