Imprimir PDF Republicar

Medicina

Defesa modulada

Avanços contra a leishmaniose envolvem controle da resposta imunológica e do inseto transmissor

NÁGILA SECUNDINO E PAULO PIMENTA / FIOCRUZMal atravessam a pele e penetram em nosso corpo, microrganismos estranhos deparam com proteínas que circulam pelo sangue e funcionam como uma espécie de radar. Esse contato – tal qual uma fileira de dominó que tomba – ativa, em seqüência, outras 30 proteínas e põe o sistema de defesa do organismo em ação. Células com funções específicas chegam ao local da invasão e iniciam o combate gerando uma inflamação. Quanto mais intensa essa resposta, mais eficiente e rapidamente o inimigo é eliminado. Mas essa reação, em geral benéfica, torna-se nociva quando exagerada porque, além de destruir o invasor, danifica os tecidos do próprio corpo. É exatamente a hiperatividade desse mecanismo a causa das lesões na pele e nas mucosas características das formas mais comuns da leishmaniose tegumentar, doença tropical que ocorre em 88 países, provocada pelo protozoário (parasita de uma única célula) Leishmania brasiliensis.

A partir dessa constatação, a que chegou em 1997, após mais de dez anos de pesquisa, a equipe do médico Edgar Marcelino de Carvalho Filho, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), propôs alterações no tratamento das duas formas mais comuns da leishmaniose tegumentar (a cutânea e a mucocutânea), que, ao que tudo indica, tornaram a terapia mais barata e eficaz – quase um século após o médico escocês William Boog Leishman identificar o causador da doença.

As novas formas de tratamento consistem em associar ao uso do composto tradicionalmente empregado – o antimonial pentavalente, que combate o parasita, mas pode causar dores musculares e alterações nos batimentos cardíacos – drogas capazes de controlar o nível de atividade do sistema de defesa. Aplicada de maneira ainda experimental aos casos em que o antimonial não surte o efeito desejado, a terapia vem mostrando bons resultados, conforme mostram estudos recentes da equipe baiana.

A esses resultados, acrescenta-se outro achado animador. Uma equipe do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Belo Horizonte, identificou uma nova espécie de verme – ainda sem nome – capaz de matar o mosquito transmissor do parasita Leishmania chagasi, protozoário causador de uma forma mais grave da leishmaniose: a visceral ou calazar, que afeta o baço e o fígado e pode ser fatal quando não tratada. Se os próximos experimentos e testes em campo forem bem-sucedidos, a contaminação dos insetos com esse verme pode se tornar a primeira forma de controle biológico do transmissor da doença, o Lutzomyia longipalpis, hoje combatido com pesticidas fortes que podem contaminar o ambiente e, em seres humanos, causar danos ao sistema nervoso central.

Problema urbano
Avaliados em conjunto, os trabalhos das equipes baianaemineira trazem importantes contribuições para a compreensão e o combate a essa doença, que desde 1980 vem se espalhando por todas as regiões do país, de acordo com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Com a devastação de áreas de florestas e a migração da população rural para os centros urbanos, tanto a leishmaniose tegumentar quanto a visceral estão deixando de ser exclusivamente silvestres e atingindo a periferia das médias e grandes cidades. Entre 1980 e 2001, a Funasa registrou 760 mil casos de leishmaniose tegumentar, que já atinge 41% dos 5.561 municípios brasileiros, em especial nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Nesse período, detectaram-se 47 mil casos da forma visceral, sobretudo em Belo Horizonte, em Minas; Natal, no Rio Grande do Norte; Teresina, no Piauí; Fortaleza, no Ceará; e São Luís, no Maranhão.

Embora a doença não tenha chegado à cidade de São Paulo, sua incidência no Estado vem aumentando, desde que os primeiros casos apareceram, na região noroeste, em 1999, segundo o epidemiologista Luiz Jancintho da Silva, superintendente do órgão que controla as endemias no Estado, a Sucen. Em uma faixa que vai de Bauru ao sul do Mato Grosso do Sul, as autoridades sanitárias registraram 98 casos de leish-maniose visceral em humanos (com 11 mortes) entre 1999 e 2002, além de 9,3 mil em cães (5,1 mil apenas em Araçatuba). De acordo com Silva, a Sucen testa o uso de coleiras com inseticida como alternativa à eliminação dos cachorros.

Tratamento
Especialista em imunologia de parasitas como a leishmânia, Carvalho, da UFBA, começou a suspeitar de que a causa das lesões da leish-maniose cutânea e mucocutânea fosse a resposta excessiva do sistema de defesa – e não uma atividade abaixo do normal, como se acreditava – em 1986, ao examinar moradores do vilarejo rural de Corte de Pedra, no município de Presidente Tancredo Neves. Situada 280 quilômetros ao sul de Salvador, essa é uma das regiões com maior número de ocorrências de leishmaniose tegumentar na Bahia. A cada ano, surgem mil casos da forma cutânea – que causa impressionantes feridas na pele em número e tamanhos variados (vão de lesões semelhantes a espinhas a ulcerações) – e 30 da mucocutânea – que destrói a mucosa e cartilagens do nariz, da boca e da garganta, podendo, em casos extremos, causar morte por asfixia.

Ao comparar a resposta imunológica de pessoas com leishmaniose cutânea com a de portadores da mucocutânea, Carvalho notou algo anormal: no sangue dos indivíduos com a forma mais branda, a cutânea, os níveis de citocinas (um tipo de proteínas) contra o protozoário eram mais baixos do que no das pessoas com a forma mais agressiva – o oposto do esperado. Era o primeiro sinal de que talvez a resposta imune mais forte fosse a causa das lesões mais graves. É o contrário do que se verifica em uma terceira forma da leishmaniose tegumentar, a difusa, e na leishmaniose visceral, em que o corpo praticamente não produz resposta imunológica contra o protozoário.

Outro indício de que os pesquisadores baianos trilhavam o caminho certo surgiria apenas anos mais tarde. Ao examinar portadores da forma cutânea e mucocutânea da doença em Corte de Pedra, a equipe de Carvalho decidiu avaliar amostras de tecido retiradas das lesões, em vez de testar o sangue. Para surpresa de todos, os ferimentos estavam livres dos protozoários. Mas as lesões apresentavam uma quantidade elevada de duas proteínas fundamentais na defesa do organismo: o interferon gama e o fator de necrose tumoral-alfa. O interferon gama funciona como um sinalizador químico e ativa células chamadas macrófagos, que, por sua vez, combatem o protozoário invasor liberando o fator de necrose tumoral-alfa. Taxas elevadas de ambas nos ferimentos indicam que o sistema imune se encontra mais ativado que o normal.

Quatro anos mais tarde, em 1996, desta vez na cidade de Santo Amaro, a 80 quilômetros ao norte de Salvador, os pesquisadores encontraram indivíduos que haviam sido contaminados pela Leishmania brasiliensis, mas não desenvolveram a doença. Realizaram testes para detectar o nível de fator de necrose tumoral e de interferon gama, produzido por outras células do sistema de defesa. Ao comparar os resultados das pessoas que não apresentavam sintomas da leishmaniose com o de portadores da forma cutânea e da mucocutânea, a equipe notou que quem não tinha as feridas da leishmaniose apresentava uma resposta imune cinco vezes menor que a das pessoas com leishmaniose cutânea e 30 vezes inferior à daqueles com a forma mucocutânea. No primeiro grupo, a atividade do sistema de defesa aumenta temporariamente, mas volta a baixar 30 dias após a infecção, enquanto nos outros dois ela permanece elevada.

Com esse resultado, Carvalho derrubava, ao menos no caso da leishmaniose cutânea e mucocutânea, a idéia de que a ação mais intensa dos mecanismos de combate ao parasita fosse o mais desejável. “Vimos que a resposta imune mais baixa era suficiente para combater o protozoário”, comenta o pesquisador, que coordena o setor de imunologia do Hospital Universitário Edgar Santos, da UFBA. A partir daí, o grupo baiano decidiu tentar controlar – ou, como dizem os médicos, modular – essa resposta. No caso da leshimaniose cutânea, conseguiu regular essa resposta adicionando ao tratamento tradicional um composto chamado fator estimulador de colônias de granulócitos e macrófagos (GM-CSF, na sigla em inglês) – uma proteína que estimula a produção de células de defesa e também é capaz de controlar a resposta imune.

Cicatrização mais rápida
Para verificar a eficácia dessa terapia, trataram dez pessoas com a forma cutânea da enfermidade com antimonial mais injeções de GM-CSF nas feridas e dez voluntários com antimonial mais uma solução inócua. Os resultados mostraram que o tratamento alternativo reduziu o tempo médio de cicatrização das lesões de 110 dias para apenas 40 dias, como mostra um trabalho publicado no Journal of Infectious Diseases de outubro de 1999, realizado com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Cornell, dos Estados Unidos.

Num estudo semelhante, ainda não concluído, os pesquisadores baianos substituíram as injeções pela aplicação de GM-CSF diretamente sobre os ferimentos na pele. Os dados preliminares indicam novamente que o uso do modulador do sistema imune é mais eficaz. Os ferimentos de sete dos dez indivíduos tratados com antimonial e GM-CSF fecharam em 50 dias, enquanto nesse tempo a cicatrização se deu apenas em uma pessoa que usou o remédio habitual, à base de antimônio. Os resultados pareceram tão bons que a equipe da UFBA partiu para um desafio maior: usar essa terapia em pessoas que continuavam a apresentar as lesões na pele por não responderem ao antimonial – o remédio não funciona em 10% a 15% dos casos de leishmaniose cutânea. Os pesquisadores trataram dez portadores de leishmaniose com antimonial pentavalente junto com a aplicação tópica do fator estimulador.

Cerca de 60 dias mais tarde nenhum deles apresentava mais os ferimentos. Segundo Carvalho, o resultado surpreendeu tanto, que já vem sendo aplicado, ainda de modo experimental, nos pacientes que resistem ao tratamento convencional – para se tornar a terapia padrão são necessários mais exames e a aprovação do Ministério da Saúde. Mas há uma vantagem adicional: a associação do GM-CSF reduziu o custo da terapia da leishmaniose cutânea resistente ao antimonial para R$ 300,00. Até recentemente, a alternativa era a droga anfotericina B, que custa R$ 2.500,00 e é mais tóxica, podendo causar insuficiência renal e alterações cardíacas. Como a forma mucocutânea da doença, em que há lesão de mucosas e cartilagens, inviabilizava a aplicação de injeções de GM-CSF, a equipe da UFBA tentou a pentoxifilina, um medicamento usado para tratar complicações da hanseníase que controla a produção do fator de necrose tumoral, proteína que o organismo dessas pessoas produz em excesso para combater o protozoário. Os cientistas trataram dez portadores da forma mucocutânea cujas feridas não haviam sarado com o antimonial. Adicionaram à aplicação desse remédio três doses diárias de pentoxifilina durante um mês e as lesões de 90% deles cicatrizaram em 90 dias, segundo artigo publicado em 2001 no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene.

Outro trabalho, em fase de conclusão, aponta que o uso de antimonial e pentoxifilina elimina a falha do tratamento, que é de 42% quando se usa só o primeiro medicamento. Com base nos resultados dessas pesquisas, Carvalho acredita ser possível até mesmo eliminar o emprego do antimonial e tratar a leishmaniose cutânea e mucocutânea apenas com moduladores do sistema imune, o que reduziria os efeitos colaterais da terapia convencional. “Na grande maioria dos casos, o organismo nunca elimina completamente os parasitas, mas aprende a conviver com uma pequena quantidade deles”, afirma Carvalho.

Verme
No Centro de Pesquisa René Rachou, da Fiocruz, os biólogos Paulo Pimenta e Nágila Secundino fazem um trabalho complementar: investigam a capacidade de mosquitos transmitirem a leishmânia – e outros parasitas – para seres humanos. Foi ali que, cinco anos atrás, a equipe mineira viu uma aparente seqüência de eventos de má sorte originar uma importante descoberta capaz de auxiliar no combate à forma mais grave – e menos comum – da leishmaniose: a visceral, transmitida no Brasil pelo mosquito-palha (Lutzomyia longipalpis). Em 1999, Pimenta e Nágila tentaram, sem sucesso, criar as primeiras colônias de L. longipalpis em laboratório. De três a quatro meses após a captura, realizada na Gruta da Lapinha (em Lagoa Santa, a 35 quilômetros da capital mineira), por algum motivo, os insetos morriam antes que a equipe terminasse os experimentos. Só encontraram a causa da morte dos mosquitos ao dissecá-los e analisá-los ao microscópio: tinham o abdômen repleto de vermes de corpo cilíndrico (nematódeos), com cerca de 1 milímetro de comprimento quando adultos. Era um caso muito raro de contaminação de vermes capazes de matar flebotomíneos, a família à qual pertence o Lutzomyia longipalpis.

A análise da forma e do ciclo de vida do verme permitiu descobrir a ordem a que pertencem (Rhabditida ) e à família (Steinernematidae), conforme descrevem os pesquisadores no Journal of Invertebrate Pathology de junho de 2002. Atualmente, tentam determinar a espécie do verme que mata o transmissor da leishmaniose visceral por se proliferar no abdômen e impedir que o inseto se alimente adequadamente. A análise dos mosquitos mostrou que, na natureza, apenas 0,5% deles contém o verme. Mas, quando criados em laboratório, a contaminação é mais rápida e metade dos mosquitos apresenta o verme em quatro meses – o nível de infestação atinge toda a colônia após um ano, fato que torna o nematódeo candidato a ser usado no controle biológico do transmissor da leishmaniose visceral. Uma das vantagens, segundo Pimenta, é que o verme parece contaminar apenas os flebotomíneos. Pimenta e Nágila pretendem agora ver se o verme infecta outras espécies do gênero Lutzomyia, que transmitem a leishmaniose tegumentar, e se os insetos contaminados em laboratório transmitem os vermes a outros mosquitos ao serem soltos na natureza.

Republicar