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Resenhas

Delicado amor filial

O pai, a mãe e a filha | Ana Luisa Escorel | Ouro sobre Azul, 288 páginas, R$ 35,00

Uma menina cheia de lembranças poéticas

Finda a leitura de O pai, a mãe e a filha de Ana Luisa Escorel, limpidez e sobriedade são as impressões que ficam. Fortes e duradouras. Quase 300 páginas de um elegante volume de capa dura em tons alaranjados, na qual uma risonha menina com laço de fita na cabeça contempla o leitor.

Amor à primeira vista.

Celebra-se assim, desde a mais externa das dimensões de um livro – sua capa –, o pacto de sedução e fidelidade entre quem conta uma história – a filha menina – e o leitor do livro. Ou a leitora. Em qualquer caso, estas enigmáticas figuras já na primeira linha são jogadas na São Paulo de meados do século XX onde ressoa a voz da mãe da menina explicando o endereço: Rua Perdões, por favor. Ali onde a Conselheiro Furtado encontra a Pires da Mota.

A cartografia do livro é espalhada e por ela o leitor transita levado pela mão firme e pela memória rigorosa da narradora. Ruas de terra de um bairro paulistano, varais de roupa, o centro da cidade com restaurantes e casas de chá, uma cidade do interior paulista, uniformes escolares, terrenos baldios com mamona, viagens de trem e férias na fazenda. Sotaques de imigrantes, molecada de rua, caneladas, primos e primas, gosto de pipoca, cheiros de empórios bem sortidos, miudezas de um armarinho e texturas de tecidos.

A menina se lembra de tudo: o mundo evocado ganha a concretude dos cinco sentidos e envolve o leitor, provocando-lhe, talvez, suas próprias lembranças. A história que o livro conta – de cunho memorialístico – cobre alguns poucos anos da vida da menina e os muitos anos da vida de sua família.

À medida que se desfia, a narração vai desdobrando tempos: não é mais apenas o tempo da filha menina, do título e da capa. A história se distende pelo tempo de seu pai e de sua mãe, dos pais de seu pai e dos pais de sua mãe. Nesse retorno ao passado, episódios familiares bordejam um pouco da história do Brasil. Não pelas personagens, mas pelo que encenam, na vida pública e privada, do mundo de duas famílias precursoras das classes médias formadas por sucessivos rearranjos da outrora poderosa aristocracia agrária brasileira.

Com este alargamento temporal, também se amplia a geografia que a narração percorre: Rio de Janeiro, Minas Gerais e Europa dissolvem fronteiras nas várias gerações que engendraram a família da risonha menina da capa que conta sua história no interior do livro.

Ao longo da leitura, no entanto, o leitor vai percebendo as artimanhas da narração ao dar-se conta de que a voz que conta a história não é, certamente, a voz de uma risonha menina. A voz que narra a história, numa sóbria terceira pessoa, é uma voz sofisticada. Sofisticadamente construída para parecer uma voz infantil. E é convincente no artifício: parece, mesmo, narrativa de criança.

A informalidade da linguagem, a coloquialidade do tom, as frases curtas, o esforço bem-sucedido de reproduzir hesitações e certezas do discurso infantil são traços que constroem a verossimilhança do tecido narrativo. Já a sofisticação transparece na precisão da linguagem e – sobretudo – no desvio que a terceira pessoa da narração imprime ao gênero autobiográfico, por excelência escrita do eu.

Trata-se aqui de um eu travestido de ela. A filha anunciada no título participa da história que conta revestida da sobriedade de uma terceira pessoa.

Mas a distância do eu ao ela, que formalmente garante a limpidez do estilo, não abafa – antes realça e nesse realce engolfa o leitor – o sentimento profundo e a emoção forte que acompanham histórias de vida. Emoção e sentimento (prováveis) de quem as escreve e (também prováveis) de quem as lê.

Mas, se a autoria testemunhal de protagonista fica assim cifrada na linguagem elegante de Ana Luisa, são dela – o leitor é informado – os muitos desenhos que ilustram o livro. Estes sim  são de autoria da menina da capa.

Guardados, datados e muitas vezes legendados pela mãe da menina, os desenhos ingênuos e belos que se espalham em folhas de papel às vezes pautadas (as fichas onde o pai da menina anotava leituras?) reproduzem, no traço livre e tosco da mão de uma criança, formas incríveis. Bichos, flores, figuras humanas, prédios, automóveis, ensaios de letras, e uma princesa em noite estrelada.

As imagens talvez revelem o que a palavra cala.

Mas… não é uma menina qualquer a menina da capa, a ela que a narração constrói. Filha de professores da (então) recém-fundada Universidade de São Paulo, Ana Luisa dedica o livro a seus pais, Gilda e Antonio Candido.

A partir desta dedicatória, a história narrada pela menina pode também ser lida em outra clave, espécie de roman à clef. Cruzam-se, nas páginas do livro, figuras que muitos leitores certamente identificarão logo: um dos amigos que visitam a casa da menina dá ao pai dela a máquina onde tinha escrito Raízes do Brasil, e outro amigo namorava uma mocinha magra chamada Ruth e acabou sendo presidente do Brasil.

É no cotidiano desses pais enredados em livros, teses e artigos, e de amigos dos pais com o mesmo ritmo de vida, que a menina vai construindo seu arquivo, vai vivendo a vida que narra. Nas páginas finais, uma discreta nota funciona como um making off do livro. Conta Ana Luisa que ao longo de dois anos ela, suas irmãs e alguns primos trocavam reminiscências pela internet. O que, por assim dizer, coletiviza as memórias registradas, construídas por este substrato comum dos que compartilharam com a autora a vida narrada.

Desta vida fazem parte muitas histórias. As contadas pelo pai da menina e as contadas pela avó dela, exímios ambos na fina arte de contar histórias. Não falta à cena nem mesmo a lembrança do pratinho de doces que a narradora ia trazendo mas… se foi com o vento, a chuva…

É uma destas histórias que encerra o livro. A hoje pouco conhecida história de Limo Verde, príncipe transformado em ave. Incansavelmente recontada pela avó, linda história, cheia de encantamentos, objetos mágicos, sofrimento e amores. Finda a história, a menina – na pele da narradora – como que casualmente registra que história de família, de coisa acontecida, ou conto de fadas era tudo a mesma coisa e ela gostava igual.

Como gostam igual (e muito!) os leitores deste livro que se tece, igualmente, de histórias de família, de coisas acontecidas e até – como se viu – de contos de fadas!

Marisa Lajolo é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e  professora convidada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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