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Desafios da legislação

Apesar de rigoroso, Código Penal depende de políticas públicas para reduzir número de violações

Catarina Bessell

Em diálogo com os estudos de gênero e o movimento feminista, a legislação brasileira tem investido na criação de figuras jurídicas para punir diferentes modalidades de violência sexual. Na última década, por exemplo, o estupro deixou de ser considerado crime contra os costumes e se tornou violação da dignidade sexual de indivíduos. No mesmo período, o abuso de crianças e adolescentes passou a ser punido de forma mais severa. No entanto, apesar dos avanços, pesquisadores identificam obstáculos na aplicação da lei e defendem a necessidade de elaboração de políticas públicas capazes de impulsionar o combate ao problema.

A Lei n° 12.015, de 2009, define o estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, passível de ser punido com até 10 anos de prisão (ver glossário). Entre 2012 e 2021, 583 mil pessoas foram estupradas no país, segundo registros policiais, de acordo com o Anuário brasileiro de segurança pública de 2022, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em 2021, foram 66 mil boletins de ocorrência envolvendo esse crime, o que representa um crescimento de 4,2% em comparação com 2020. No Brasil, nove em cada 10 vítimas tinham no máximo 29 anos quando sofreram estupro, enquanto crianças e adolescentes de até 13 anos, qualificadas como vulneráveis, constituíram 61,3% de todas as vítimas.

A jurista Mariângela Magalhães Gomes, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP), explica que a legislação brasileira tem se desenvolvido, nos últimos anos, com o objetivo de prever condenações adequadas para cada tipo de crime envolvendo violência sexual. Em vigor no Brasil durante 200 anos, a partir de 1603, a legislação portuguesa de origem espanhola – denominada Ordenações Filipinas – não fazia menção a “estupro”, mas criminalizava “indivíduos que entrassem em casas de família e dormissem com mulher virgem, viúva honesta e branca escravizada”. “Nessas situações, o homem condenado cumpria pena de prisão e era obrigado a pagar uma indenização à família porque, não sendo mais virgem, a mulher estuprada não conseguiria se casar. Ou seja, de acordo com a lei, o crime de estupro feria, principalmente, o valor de casamento da mulher”, observa a jurista. No entanto, recorda, se o violador se dispusesse a casar com a vítima e a proposta fosse aceita, a legislação considerava o dano reparado e, portanto, a condenação era anulada.

O termo “estupro” foi incorporado pela primeira vez na legislação brasileira em 1830, com a entrada em vigor do Código Criminal do Império. O crime caracterizava-se pela penetração forçada de um homem em uma mulher. “A lei entendia que o pior dano causado pelo estupro era a violação da virgindade feminina, e não a violência contra a mulher, na medida em que, ao deixar de ser virgem, ela não estaria mais apta para um casamento. Além disso, considerava que o crime era mais grave quando praticado contra ‘mulher honesta’ do que contra prostitutas”, relata. A pena envolvendo violação de “mulher honesta” era de três a 12 anos de prisão. Se a vítima fosse uma prostituta, a condenação não ultrapassava 24 meses.

Em 1890, com a adoção do Código Penal da República, o termo “estupro” foi substituído por “violência carnal” no rol de crimes contra a honra das famílias e o sentimento de pudor da sociedade. A ideia de que o estupro constitui violação dos costumes e valores da sociedade permaneceu no atual Código Penal, vigente desde 1940. “Seguindo a lógica histórica dos códigos penais precedentes, essa legislação buscava proteger a reputação das mulheres. A liberdade sexual não era vista como um direito”, avalia a jurista.

Leis evoluem, mas sistema jurídico tarda em mudar suas aplicações

À época definida como conjunção carnal forçada entre homem e mulher, a legislação de 1940 separou o crime de estupro do de atentado violento ao pudor, que englobava outras formas de violência sexual contra homens e mulheres. As penas para os crimes de estupro eram de três a oito anos de reclusão, enquanto para atentado violento ao pudor variavam de dois a sete anos. “Apesar de esse código deixar de mencionar explicitamente o termo ‘mulher honesta’ ao abordar os crimes de estupro, na jurisprudência, o fato de a vítima ser virgem, recatada e apta para o casamento até o começo dos anos 2000 aparecia como elemento central à condenação dos agressores”, afirma Gomes. De acordo com ela, a despeito de o Código de 1940 deixar de estipular a extinção da condenação quando o agressor se casasse com a vítima, em 1977 a cláusula foi reinserida e a regra voltou a valer. Em 1984, com a inclusão do artigo 59 no Código Penal, a legislação passou a elencar os critérios que os juízes deveriam observar ao definir a pena a ser aplicada. “Uma dessas orientações é que os magistrados precisam considerar se o comportamento da vítima pode ter estimulado o crime”, comenta Gomes, recordando que em 1990, com a promulgação da Lei n° 8.072, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, as penas para estupro e atentado violento ao pudor tornaram-se equivalentes.

Com pesquisa realizada na década de 1990 para analisar julgamentos de crimes de estupro, a antropóloga Guita Grin Debert, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificou que, da mesma forma que ocorria em casos de homicídio, nas acusações de estupro, os julgamentos se davam em torno do comportamento da vítima. Debert recorda que foi somente em 2005, com a promulgação da Lei n° 11.106, que o termo “mulher honesta” foi retirado do Código Penal e foi extinta a determinação de que o estuprador deixaria de ser punido caso se casasse com a vítima. “Mesmo assim, até hoje muitos juízes analisam a reputação da mulher antes de determinar as sentenças”, pontua Debert. Quatro anos depois, com a sanção da Lei n° 12.015, o estupro deixou de constituir crime contra os costumes e passou a ser considerado crime contra a dignidade sexual. “Foi a partir daí que a lei parou de diferenciar estupro de atentado violento ao pudor. O estupro é o tipo mais grave de violência sexual”, destaca a antropóloga.

Em julho, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou projeto de lei de autoria da senadora Zenaide Maia (Pros-RN), proibindo o uso da tese de “legítima defesa da honra” como argumento para a absolvição de acusados de feminicídio, além de excluir atenuantes relacionados à violenta emoção e à defesa de valor moral ou social em julgamentos de crimes de violência doméstica e familiar. A proposta aguarda votação na Câmara dos Deputados. A despeito da previsão de punições rigorosas para o crime de estupro, tanto Debert quanto Gomes concordam que faltam, no país, políticas públicas capazes de enfrentar o problema de maneira efetiva. “A aposta na legislação penal como única solução para coibir crimes sexuais é equivocada. Devemos investir em abordagens sociais para educar a sociedade a respeitar o corpo das mulheres”, sustenta a jurista da USP.

Com reflexão similar, a antropóloga Heloisa Buarque de Almeida, da mesma instituição, observa que apenas 10% dos estupros são efetivamente denunciados, mencionando dados do FBSP. Uma das razões para o baixo percentual de notificação às autoridades policiais é o fato de que oito em cada 10 casos de estupro registrados em 2021 terem sido cometidos por pessoas conhecidas das vítimas, segundo a edição de 2022 do Anuário brasileiro de segurança pública. “As fronteiras entre assédio sexual e estupro são confusas e, muitas vezes, a vítima não compreende a violência sofrida, sente medo de retaliação, de ser revitimizada ou sofrer constrangimento. Por esses motivos, acaba por não denunciar o crime às autoridades”, analisa, lembrando que a percepção do que é considerado violência muda com o passar do tempo. “Antigamente, um assobio na rua era considerado elogio. Hoje, dependendo do contexto, pode ser classificado como assédio sexual”, detalha. Segundo ela, mesmo denunciados, crimes de violência sexual dificilmente resultam em condenações judiciais.

Outro desafio envolve a jurisprudência que, muitas vezes, segue observando diretrizes de códigos precedentes na tomada de decisões. “As leis têm evoluído, mas o sistema jurídico tarda em mudar suas aplicações”, avalia Almeida. Atento a esse contexto e com o objetivo de sensibilizar o Poder Judiciário, em 2021 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou um documento com orientações para que juízes tomem decisões considerando questões de gênero. O relatório chama a atenção para o fato de que estupros são crimes que afetam, majoritariamente, mulheres e meninas, sendo praticados, na maioria das vezes, por homens. Ou seja, refletem aspectos de sociedades marcadas por assimetrias de gênero. Além disso, por geralmente ocorrerem em locais privados, o documento alerta sobre as dificuldades para a obtenção de provas e testemunhas, de forma que os magistrados devem dar mais peso à palavra da vítima, em vez de questionar a suposta falta de evidências. O CNJ defende que é preciso usar o gênero como lente para leitura dos acontecimentos, identificando o contexto em que o conflito está inserido, bem como assegurar que todas as partes implicadas no processo compreendem o que está sendo discutido. O órgão recomenda, ainda, que os juízes avaliem a necessidade de estabelecer medidas de proteção, que permitam romper de forma imediata com o ciclo de violência que afeta a vítima, assim como evitem fazer perguntas que a façam revisitar momentos traumáticos.

Glossário

Violência sexual
Atos sexuais, ou tentativas de realizar um ato sexual, comentários ou investidas sexuais não consentidos. Abrange toda ação praticada em contexto de relação de poder, quando o abusador obriga outra pessoa à prática sexual ou sexualizada contra a sua vontade, por meio de força física, de influência psicológica ou de uso de armas e drogas. Inclui todas as formas de estupro: individual, coletivo, corretivo, de adultos ou de vulneráveis. Também abrange importunação sexual, assédio sexual, prostituição forçada, exploração sexual, pornografia de vingança e envio de fotos e conteúdos não solicitados de cunho sexual por meio de redes sociais.

Violação sexual
Penetração de natureza sexual, não consentida, no corpo da vítima por órgão sexual, membro ou objeto utilizado pelo violador, com o uso de força ou mediante ameaça de coerção. O estupro é considerado uma das formas possíveis de violação sexual.

Estupro
De acordo com as alterações da Lei n° 12.015, de 2009, no art. 213 do Código Penal, “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Estupro de vulnerável
Qualquer ato entre um ou mais adultos e uma criança, adolescente ou indivíduo com deficiência mental que tenha por objetivo estimular sexualmente a pessoa abusada, ou utilizá-la para a obtenção de estimulação sexual de qualquer ordem. Considera-se que, por serem dependentes ou imaturos, tais indivíduos não conseguem compreender as atividades sexuais e, portanto, são incapazes de consentir com sua prática.

Importunação sexual
No Brasil, figura jurídica instituída em 2017 por meio da Lei n° 13.718 no art. 215-A do Código Penal: “praticar, contra alguém, e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiros”. Podem se enquadrar nesse tipo penal, por exemplo, situações em que um homem ejacula em uma mulher no transporte público.

Estupro corretivo
Diz respeito a casos em que o crime de estupro pretende interferir no comportamento sexual ou social da vítima. O Projeto de Lei n° 452/2019 propõe incluir essa figura jurídica no Código Penal em casos de estupro para “corrigir” a orientação sexual de mulheres lésbicas e para “controlar a fidelidade” de cônjuge.

Fontes: Organização Mundial da Saúde, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Lei n° 12.015/2009 e Conselho Nacional de Justiça

Projetos
1. Significados de violência sexual: As mídias e a disputa pública por construção de direitos (nº 17/02720-1); ModalidadeAuxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsávelHeloisa Buarque de Almeida (USP); Investimento R$ 33.481,14.
2. Significados de violência sexual: As mídias e a disputa pública por construção de direitos (nº 18/10403-9); ModalidadeBolsa no Exterior; Pesquisadora responsávelHeloisa Buarque de Almeida (USP); Investimento R$ 100.102,68.

Artigos científicos
ALMEIDA, H. B. From shame to visibility: Hashtag feminism and sexual violence in BrazilSexualidad, salud y sociedad. v. 33. 2019.
GOMES, M. G. M. Duas décadas de relevantes mudanças na proteção dada à mulher pelo direito penal brasileiroRevista da Faculdade de Direito (USP). v. 115, p. 141-63. 2020.

Capítulo de livro
ALMEIDA, H. B. A visibilidade da categoria assédio sexual nas universidades. In: ALMEIDA, T. M. C. e ZANELLO, V. (orgs.). Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas. Brasília: OAB Editora, p. 195-220. 2022.

Relatórios
Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Conselho Nacional de Justiça, 2021.
Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022.

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