Imprimir PDF Republicar

obituário

Desbravador da ciência

Warwick Kerr formou equipes e dirigiu instituições de pesquisa, sempre atento à aplicação do conhecimento científico

O pesquisador em 1986 no Maranhão, onde formou apiários e novos grupos de pesquisa

Acervo SBPC

Enquanto trabalhava na tese de doutorado, concluída em 1948 na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), o engenheiro-agrônomo e geneticista Warwick Estevam Kerr começou a escrever artigos em linguagem simples sobre abelhas e produção de mel para a revista Chácaras e Quintais e para o jornal O Estado de S. Paulo – e seguiu escrevendo para o público geral nos anos seguintes quando seus estudos científicos sobre genética e comportamento de abelhas começavam a sair em publicações científicas como Evolution, Genetics e Science.

Sempre atento à aplicação do conhecimento científico, Kerr, que morreu em 15 de setembro aos 96 anos, foi um dos principais pesquisadores em genética e comportamento de abelhas no Brasil, criou grupos de pesquisa, foi o primeiro diretor científico da FAPESP e dirigiu instituições de pesquisa no interior de São Paulo, em São Luís (MA), Manaus (AM) e Uberlândia (MG). Em uma entrevista concedida a Pesquisa FAPESP em 2000, ele comentou sobre a preocupação que o norteou ao longo de 50 anos de carreira científica: “Temos de trabalhar para o povo brasileiro”.

Em 1958, era professor e chefe do Departamento de Genética na Esalq quando foi indicado por colegas da USP para criar o Departamento de Biologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, que viria a se tornar parte da Universidade Estadual Paulista (Unesp) nos anos 1970. O alemão Friedrich Gustav Brieger (1900-1985), um dos pioneiros da genética do Brasil e professor mais antigo na Esalq, tentou dissuadi-lo: “Na USP você tem tudo o que precisa para trabalhar decentemente. Aqui é o céu, lá é o inferno”. Kerr argumentou: “Lá eu criarei a minha escola”. Antes, havia feito dois estágios de pós-doutoramento nos Estados Unidos nas universidades da Califórnia (1951) e Columbia (1952).

Uma das professoras que contratou na Unesp foi a bióloga Carminda da Cruz Landim, recém-formada em história natural pela USP. “Mal cheguei, ele me mandou estudar as glândulas da cabeça das abelhas, que produziam substâncias importantes para a comunicação entre elas”, conta. Ao montar o currículo do curso de biologia, Kerr acrescentou disciplinas que surgiam na época, como estatística e ecologia. Ele convocava os estudantes para debates de artigos científicos à noite (o curso era integral) e aulas aos sábados, sob o argumento de que havia “a eternidade para descansar”, lembrou-se Carminda, que lecionou na Unesp até 2005.

Nascido em Santana do Parnaíba (SP) em 1922, Kerr trabalhou no desenvolvimento de linhagens mais produtivas da abelha europeia, Apis mellifera mellifera, para produção de mel. Em um de seus trabalhos, ele colocou rainhas de Apis mellifera scutellata, mais produtivas, que havia trazido da África, em colmeias da linhagem europeia. No início da década de 1960, 26 rainhas africanas escaparam do apiário, se espalharam e, por serem agressivas, causaram mortes de pessoas. Com o tempo, porém, o cruzamento entre as espécies resultou na abelha africanizada, mais produtiva que a europeia, menos agressiva que a africana e mais resistente a doenças. O aprimoramento das técnicas de manipulação das colmeias reduziu os acidentes e tornou o Brasil um dos grandes produtores de mel do mundo.

Acervo Departamento de Genética da FMRP-USP Kerr com sua equipe na USP de Ribeirão Preto, onde ele trabalhou de 1964 a 1975, antes de ir para a AmazôniaAcervo Departamento de Genética da FMRP-USP

Ainda em Rio Claro, ele recebeu o biólogo inglês William Hamilton (1936-2000), que trabalhou com vespas e criou uma teoria sobre a evolução do comportamento social dos insetos, considerada uma das maiores contribuições à evolução depois do trabalho de Charles Darwin (1809-1882). “Kerr sabia reconhecer talentos e tratava bem todo mundo”, observa a bióloga Vera Lucia Imperatriz-Fonseca, professora sênior da USP e pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale, em Belém. “Ele inspirou muitas gerações de biólogos e foi sempre um pioneiro nos centros que fundou, nos temas abordados, na formação de equipes multidisciplinares e no diálogo com os criadores de abelhas.”

Kerr foi o primeiro diretor científico da FAPESP, de 1962 a 1964, por sugestão de Paulo Emílio Vanzolini (1924-2013) e Crodowaldo Pavan (1919-2009). Ele criou o regimento interno, com o assessor jurídico da FAPESP, José Geraldo de Ataliba Nogueira (1936-1995), e do diretor administrativo, William Saad Hossne (1927-2016). A convite da Fundação Rockefeller, visitou instituições semelhantes em outros países e organizou a Diretoria Científica. “O professor Kerr estabeleceu na Fundação o compromisso com a pesquisa como eixo central e definidor das ações e o sistema de avaliação por pares”, comentou o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, à Agência FAPESP. “Sua dedicação e seu apreço pelo mérito científico, avaliado pelos pares, foi definitivo para o sucesso da FAPESP como entidade de apoio à pesquisa.”

Socialista declarado, Kerr foi preso duas vezes. A primeira em 1964, depois do golpe militar, e a segunda em 1969, quando era presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Sob sua liderança, a instituição repudiou as arbitrariedades praticadas contra cientistas que questionavam o governo militar.

Ele também criou grupos de pesquisa na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Depois, dirigiu o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) por duas vezes, de 1975 a 1979 e de 1999 a 2002. Encontrou o instituto com apenas um mestre e um doutor. Mandou os pesquisadores estudar nos estados do Sudeste, trouxe especialistas do exterior e ao encerrar a primeira gestão havia 50 mestres, 60 doutores e quatro cursos de pós-graduação. Depois voltou para Ribeirão Preto e se aposentou, mas não sossegou.

Em 1981, acomodou a mulher e os sete filhos em uma kombi e seguiu para São Luís, no Maranhão, que escolheu por ser um dos estados menos desenvolvidos do Brasil. Apresentou-se ao reitor da Universidade Federal do Maranhão e disse que gostaria de trabalhar lá. “Em Manaus e em São Luís, ele estimulou o cultivo de abelhas sem ferrão, organizou os produtores e usou a produção científica para dar suporte a eles”, conta Vera Lucia.

Kerr viveu os últimos anos em Ribeirão Preto. Deixou seis filhos, 17 netos e 17 bisnetos. A esposa, Lygia Sangilo Kerr, havia falecido em 2017.

Republicar