Imprimir PDF Republicar

PESQUISA FAPESP 20 ANOS

Desconstruindo mitos

Revista acompanhou desenvolvimento de investigação pioneira sobre as relações entre Executivo e Legislativo no Brasil

Registro do Congresso Nacional feito pelo fotógrafo Marcel Gautherot (1910-1996), por volta de 1960

Marcel Gautherot / Acervo Instituto Moreira Salles

A formação de coalizões, em geral majoritárias, tem sido a maneira predominante de governar no Brasil. Ainda que eleito para exercer um mandato independente e com a possibilidade de nomear livremente seus ministros, não é na figura do presidente que se baseia a força do presidencialismo de coalizão, mas nos poderes que tornam o ocupante do Palácio do Planalto capaz de influenciar o processo de definição das políticas públicas. “A base institucional no presidencialismo de coalizão a partir de 1988 são os poderes de definir a agenda legislativa, conferida pelo texto constitucional, complementada pela centralização do processo decisório no interior do Congresso.” A conclusão é dos cientistas políticos Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi e está em reflexão publicada recentemente na Dados – Revista de Ciências Sociais. Segundo eles, no Brasil os governantes não têm como escapar do que classificam como imperativo: “Se pretendem aprovar leis e alterar as políticas vigentes, presidentes serão forçados a buscar apoio dos partidos no Legislativo.” Desde o início da década de 1990 os dois se revezam na coordenação de uma equipe de pesquisadores que investiga as relações entre Executivo e Legislativo federais. Em dezembro de 1999, os primeiros resultados dessa pesquisa foram objeto de reportagem de capa da revista (ver Pesquisa FAPESP nº 49).

A ideia de investigar as relações entre os dois poderes foi do cientista político argentino Guillermo O’Donnell (1936-2011), a partir de interesse manifestado pela The Andrew W. Mellon Foundation em financiar pesquisa científica, no Brasil, sobre o Congresso Nacional. “Quando ingressei no Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], em 1990, ele estava lá e me pediu para preparar um pré-projeto. No Brasil havia pouca coisa sobre o Congresso, visto então como uma espécie de reino do parlamentar individual e tomado como um ator único. Todos os trabalhos tratavam de comportamento parlamentar e pensavam o objeto a partir da legislação eleitoral”, recorda Figueiredo, atualmente professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).

Batizada por O’Donnell de Terra incógnita – Funcionamento e estrutura do Congresso Nacional, mas sem a participação do argentino, a pesquisa começou a ser desenvolvida em 1991 e recebeu US$ 200 mil dólares da instituição norte-americana. A ênfase foi dada à atuação da Câmara dos Deputados. “Decidimos coletar toda informação sobre a tramitação da legislação de 1988 em diante. Nossa diretriz era não usar como fonte o que os deputados falavam, mas o que faziam”, conta Figueiredo. Por essa razão, foram poucas as entrevistas – apenas alguns líderes da Câmara, que tiveram papel relevante na elaboração do regimento interno, foram ouvidos.

O presidente segue sendo o principal legislador do país, detém o controle do orçamento, da burocracia e pode editar medidas provisórias, explica Limongi

Naquela época, pesquisar no Congresso Nacional não era tarefa simples. No começo, os funcionários do setor de documentação da Câmara faziam a busca, nos termos indicados pela equipe, enviavam o material impresso para São Paulo e, no Cebrap, os pesquisadores sistematizavam as informações em planilhas. Com a chegada de Limongi, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 1993, as votações nominais passaram a integrar o escopo da investigação, tornando imprescindível fotocopiar milhares de páginas dos diários do Congresso, para mapear a atuação de cada um dos deputados. A descoberta de tópicos até então ignorados do processo, como abstenção e orientação do líder, por exemplo, rendeu idas extras a Brasília, para a coleta de dados. “Com a pesquisa, caímos no centro do debate institucional brasileiro, que se seguiu à redemocratização: se o presidencialismo funcionava ou não”, lembra Limongi, atualmente professor na Escola de Economia de São Paulo, na Fundação Getulio Vargas (FGV-EESP). Na academia, a opinião corrente era de que o regime político não funcionaria.

Entre os estudiosos do tema, como os cientistas políticos norte-americanos Barry Ames e Scott Mainwaring e o sociólogo espanhol Juan Linz (1926-2013), permanecia a visão de 1964: eminentemente conservador, no Brasil o Legislativo constituiria um obstáculo à ação do Executivo. O problema seria de governabilidade. “Predominava a ideia do Congresso como um chantageador do Executivo”, informa Figueiredo. “Linz, por exemplo, dizia que como os presidentes podiam escolher seus ministros não teriam incentivos para fazer coalizão.” O cientista político Regis Stephan de Castro Andrade (1938-2002), da FFLCH-USP, foi um dos primeiros a mudar o foco das investigações. Ao analisar o poder das comissões, começou a prestar atenção nas inovações trazidas pela Constituição recém-aprovada. A pesquisa coordenada por Figueiredo e Limongi acabaria por demonstrar que a atual relação entre o Executivo e o Legislativo deriva do texto constitucional.

A reportagem de capa da edição nº 49, de Pesquisa FAPESP abordou estudo sobre os padrões de interação entre Executivo e Legislativo

Disciplina partidária
Sem uma hipótese propriamente dita, a preocupação inicial dos estudiosos era entender o funcionamento do sistema político brasileiro e qual o papel desempenhado pelo Legislativo. Decidiram acompanhar o trâmite de propostas do governo. “Se o Executivo não consegue aprovar suas medidas porque supostamente o Legislativo não coopera e barra, vamos olhar as propostas de lei do Executivo e ver o que acontece”, propôs Limongi. A percepção geral era a de que o individualismo imperava no Congresso e que não haveria disciplina entre os partidos políticos.

“Eu não tinha expectativa de que fosse diferente, até as primeiras estatísticas indicarem a existência de disciplina partidária. Foi surpreendente”, relata. Desde 1989, o percentual de deputados da base do governo que votou de acordo com a indicação do líder do governo tem sido superior a 80%. Durante a pesquisa, também veio a constatação de que os regimentos internos da Câmara e do Senado favorecem as legendas políticas. “No plano institucional, os partidos são atores políticos privilegiados”, completa (ver Pesquisa FAPESP nº 114).

A comparação entre os textos constitucionais evidenciou que todas as reformas feitas pelos militares, para reforçar o poder Executivo, foram mantidas na Constituição atualmente em vigor – o instrumento da medida provisória (MP), por exemplo, é uma adaptação do decreto-lei ao regime democrático. Diferentemente do que assegurava a Constituição de 1946, de acordo com Figueiredo e Limongi, o modelo político implantado no Brasil a partir de 1988 combina “regras de difusão de poder no sistema de representação e de concentração de poder no sistema de tomada de decisões de governo”. “O presidente segue sendo o principal legislador do país, detém o controle do orçamento, da burocracia e pode editar medidas provisórias”, resume Limongi. Segundo ele, trata-se de tendência observada nas constituições democráticas aprovadas depois da Segunda Guerra Mundial. “Tal característica, com o parlamento racionalizado, não está em desacordo com a teoria constitucional moderna. Se eu fosse escrever um texto constitucional, escreveria dessa mesma forma”, diz.

As bases institucionais do presidencialismo de coalizão estão no poder Legislativo do presidente, que tem mecanismos para controlar a agenda do Congresso, diz Figueiredo

Isso reflete, por exemplo, no padrão de sucesso e de dominância do Executivo na aprovação da legislação nacional, muito semelhante ao observado em governos parlamentaristas. O padrão de sucesso do Executivo diz respeito ao percentual de projetos propostos pelo presidente da República que se torna lei. A dominância, por sua vez, está relacionada ao percentual do total de leis aprovadas que foram encaminhadas por ele. Desde a redemocratização, a média tem sido de 77,3% e 83,5%, respectivamente. “No desenvolvimento das nossas pesquisas, identificamos que as bases institucionais do presidencialismo de coalizão estão no poder legislativo do presidente, que tem mecanismos constitucionais para controlar a agenda do Congresso”, explica Figueiredo.

O poder da agenda
À medida que foram avançando na compreensão do funcionamento do Legislativo, Figueiredo e Limongi acabaram por desconstruir o preceito dominante na literatura, inclusive internacional, envolvendo acordos políticos e alianças interpartidárias. “A literatura dizia que presidentes não formariam coalizão para governar. Isso era muito forte, mas com nossos achados começamos a destruir esse mito”, diz Limongi (ver Pesquisa FAPESP Edição Especial FAPESP 50 anos). “O estágio atual das pesquisas nos permite dizer que hoje, do ponto de vista institucional, o presidencialismo de coalizão funciona no Brasil.”

No artigo A crise atual e o debate institucional, publicado em 2017, eles sintetizam a lógica de operação de um governo desse tipo: “A iniciativa, a formulação e a proposição da agenda cabem ao Executivo, ao presidente ou ao seu partido. Os partidos da coalizão, em geral, colaboram com a implementação dessa agenda. Respeita-se assim o mandato popular que emerge das urnas. A versão final da agenda, aquela que é aprovada e que será implementada, cabe à coalizão.” No entendimento dos pesquisadores, em governos de coalizão, “mais do que uma relação vertical de conflito entre Executivo e Legislativo observa-se uma relação horizontal de barganha e cooperação entre o Executivo e os membros da coalizão”.

Por desenvolver-se de forma empírica e comparativa, ao rever o modelo anterior e evidenciar aspectos positivos do presidencialismo de coalizão, a pesquisa acabou por desafiar certa interpretação teórica que dividia o mundo da política em desenvolvido e subdesenvolvido. “Do ponto de vista institucional, não há razão para o Brasil ter complexo de inferioridade. A democracia brasileira é igual a qualquer outra, funciona do mesmo jeito, nosso povo não é diferente, a racionalidade política não é diferente”, observa Limongi, que, assim como Figueiredo, tem em Adam Przeworski, cientista político da Universidade de Nova York, seu mentor intelectual.

Ambos partem do pressuposto de que presidentes agem de forma racional, têm projeto de governo e querem implementar políticas públicas. “Nessa visão institucionalista a que estamos filiados, a racionalidade do governante é central. Mas ela não é determinista. As instituições não determinam o comportamento do ator político. A ação do político vai ser o link entre as instituições e os resultados que devem ser produzidos”, explica Figueiredo. “Os atores reagem estrategicamente à variação das instituições”, completa Limongi. À luz de dados atualizados, no livro que estão organizando, pretendem reexaminar o funcionamento do presidencialismo de coalizão.

Ponto de inflexão
Coordenadora do Núcleo de Estudos de Instituições Políticas e Eleições do Cebrap, Andréa Freitas, cientista política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), integra a segunda geração de investigadores do projeto. “Fui formada para pensar e fazer pesquisa dentro do grupo”, conta ela, que há 17 anos trabalha a relação entre o Executivo e o Legislativo e atualmente busca entender como se dá o processo de negociação que leva ao sucesso do Executivo. Para garantir a continuidade e vitalidade da proposta, o núcleo sob sua responsabilidade reúne pesquisadores em todas as etapas de formação. A preocupação com a capacitação técnica segue fundamental. “Os tipos de cursos ofertados foram mudando ao longo dos anos. Hoje, por exemplo, não há mais necessidade de dominar a ferramenta Access, mas é preciso saber estruturar um banco de dados e conhecer as linguagens do R e do Python, de programação”, conta.

Fabiano Santos, coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (Necon) do Iesp-Uerj e fundador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), vê no rigor metodológico um dos grandes méritos do projeto. “O trabalho deles abriu uma nova agenda ao chamar a atenção da comunidade científica para a necessidade de se desenvolver teorias mais sofisticadas, microfundamentadas, sobre o Legislativo”, avalia o pesquisador, que há cerca de três décadas investiga o Legislativo brasileiro. Recentemente, em parceria com Acir Almeida, Santos adaptou hipóteses da chamada teoria informacional – segundo a qual o Congresso Nacional se organizaria para buscar informações sobre como desenvolver políticas públicas – para complementar os achados de Figueiredo e Limongi, a respeito da dinâmica legislativa no Brasil, sob o presidencialismo de coalizão.

Especialista em instituições políticas na América Latina desde os anos 1990, o cientista político Timothy Power, diretor da Oxford School of Global and Area Studies, em Oxford, na Inglaterra, também identifica nos achados de Figueiredo e Limongi ponto de inflexão nos estudos sobre o Legislativo. “Eles mudaram a maneira como entendemos os partidos e corrigiram um grande erro de interpretação, de cientistas brasileiros e estrangeiros, que faziam inferências sobre a força dos partidos com base apenas nas características do sistema eleitoral do país”, avalia. “Ao medir pela primeira vez o número de deputados que seguiam a orientação do líder, facilitaram a análise empírica, disseminaram o uso dessa métrica e têm influenciado a pesquisa em outros países.” Power lamenta apenas que o conhecimento não tenha alcançado a imprensa. “Jornalistas ainda repetem que os partidos são fracos e preferem enfatizar a leviandade da classe política. Não entendem os incentivos institucionais que estão por trás dela e isso, sem dúvida, impacta a democracia.”

Projeto
Instituições políticas, padrões de interação Executivo-Legislativo e capacidade governativa (nº 16/14525-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Pesquisador responsável Fernando Limongi (Cebrap); Investimento  R$ 953.208,97.

Republicar