A formação de coalizões, em geral majoritárias, tem sido a maneira predominante de governar no Brasil. Ainda que eleito para exercer um mandato independente e com a possibilidade de nomear livremente seus ministros, não é na figura do presidente que se baseia a força do presidencialismo de coalizão, mas nos poderes que tornam o ocupante do Palácio do Planalto capaz de influenciar o processo de definição das políticas públicas. “A base institucional no presidencialismo de coalizão a partir de 1988 são os poderes de definir a agenda legislativa, conferida pelo texto constitucional, complementada pela centralização do processo decisório no interior do Congresso.” A conclusão é dos cientistas políticos Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi e está em reflexão publicada recentemente na Dados – Revista de Ciências Sociais. Segundo eles, no Brasil os governantes não têm como escapar do que classificam como imperativo: “Se pretendem aprovar leis e alterar as políticas vigentes, presidentes serão forçados a buscar apoio dos partidos no Legislativo.” Desde o início da década de 1990 os dois se revezam na coordenação de uma equipe de pesquisadores que investiga as relações entre Executivo e Legislativo federais. Em dezembro de 1999, os primeiros resultados dessa pesquisa foram objeto de reportagem de capa da revista (ver Pesquisa FAPESP nº 49).
A ideia de investigar as relações entre os dois poderes foi do cientista político argentino Guillermo O’Donnell (1936-2011), a partir de interesse manifestado pela The Andrew W. Mellon Foundation em financiar pesquisa científica, no Brasil, sobre o Congresso Nacional. “Quando ingressei no Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], em 1990, ele estava lá e me pediu para preparar um pré-projeto. No Brasil havia pouca coisa sobre o Congresso, visto então como uma espécie de reino do parlamentar individual e tomado como um ator único. Todos os trabalhos tratavam de comportamento parlamentar e pensavam o objeto a partir da legislação eleitoral”, recorda Figueiredo, atualmente professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
Batizada por O’Donnell de Terra incógnita – Funcionamento e estrutura do Congresso Nacional, mas sem a participação do argentino, a pesquisa começou a ser desenvolvida em 1991 e recebeu US$ 200 mil dólares da instituição norte-americana. A ênfase foi dada à atuação da Câmara dos Deputados. “Decidimos coletar toda informação sobre a tramitação da legislação de 1988 em diante. Nossa diretriz era não usar como fonte o que os deputados falavam, mas o que faziam”, conta Figueiredo. Por essa razão, foram poucas as entrevistas – apenas alguns líderes da Câmara, que tiveram papel relevante na elaboração do regimento interno, foram ouvidos.
O presidente segue sendo o principal legislador do país, detém o controle do orçamento, da burocracia e pode editar medidas provisórias, explica Limongi
Naquela época, pesquisar no Congresso Nacional não era tarefa simples. No começo, os funcionários do setor de documentação da Câmara faziam a busca, nos termos indicados pela equipe, enviavam o material impresso para São Paulo e, no Cebrap, os pesquisadores sistematizavam as informações em planilhas. Com a chegada de Limongi, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 1993, as votações nominais passaram a integrar o escopo da investigação, tornando imprescindível fotocopiar milhares de páginas dos diários do Congresso, para mapear a atuação de cada um dos deputados. A descoberta de tópicos até então ignorados do processo, como abstenção e orientação do líder, por exemplo, rendeu idas extras a Brasília, para a coleta de dados. “Com a pesquisa, caímos no centro do debate institucional brasileiro, que se seguiu à redemocratização: se o presidencialismo funcionava ou não”, lembra Limongi, atualmente professor na Escola de Economia de São Paulo, na Fundação Getulio Vargas (FGV-EESP). Na academia, a opinião corrente era de que o regime político não funcionaria.
Entre os estudiosos do tema, como os cientistas políticos norte-americanos Barry Ames e Scott Mainwaring e o sociólogo espanhol Juan Linz (1926-2013), permanecia a visão de 1964: eminentemente conservador, no Brasil o Legislativo constituiria um obstáculo à ação do Executivo. O problema seria de governabilidade. “Predominava a ideia do Congresso como um chantageador do Executivo”, informa Figueiredo. “Linz, por exemplo, dizia que como os presidentes podiam escolher seus ministros não teriam incentivos para fazer coalizão.” O cientista político Regis Stephan de Castro Andrade (1938-2002), da FFLCH-USP, foi um dos primeiros a mudar o foco das investigações. Ao analisar o poder das comissões, começou a prestar atenção nas inovações trazidas pela Constituição recém-aprovada. A pesquisa coordenada por Figueiredo e Limongi acabaria por demonstrar que a atual relação entre o Executivo e o Legislativo deriva do texto constitucional.
Disciplina partidária
Sem uma hipótese propriamente dita, a preocupação inicial dos estudiosos era entender o funcionamento do sistema político brasileiro e qual o papel desempenhado pelo Legislativo. Decidiram acompanhar o trâmite de propostas do governo. “Se o Executivo não consegue aprovar suas medidas porque supostamente o Legislativo não coopera e barra, vamos olhar as propostas de lei do Executivo e ver o que acontece”, propôs Limongi. A percepção geral era a de que o individualismo imperava no Congresso e que não haveria disciplina entre os partidos políticos.
“Eu não tinha expectativa de que fosse diferente, até as primeiras estatísticas indicarem a existência de disciplina partidária. Foi surpreendente”, relata. Desde 1989, o percentual de deputados da base do governo que votou de acordo com a indicação do líder do governo tem sido superior a 80%. Durante a pesquisa, também veio a constatação de que os regimentos internos da Câmara e do Senado favorecem as legendas políticas. “No plano institucional, os partidos são atores políticos privilegiados”, completa (ver Pesquisa FAPESP nº 114).
A comparação entre os textos constitucionais evidenciou que todas as reformas feitas pelos militares, para reforçar o poder Executivo, foram mantidas na Constituição atualmente em vigor – o instrumento da medida provisória (MP), por exemplo, é uma adaptação do decreto-lei ao regime democrático. Diferentemente do que assegurava a Constituição de 1946, de acordo com Figueiredo e Limongi, o modelo político implantado no Brasil a partir de 1988 combina “regras de difusão de poder no sistema de representação e de concentração de poder no sistema de tomada de decisões de governo”. “O presidente segue sendo o principal legislador do país, detém o controle do orçamento, da burocracia e pode editar medidas provisórias”, resume Limongi. Segundo ele, trata-se de tendência observada nas constituições democráticas aprovadas depois da Segunda Guerra Mundial. “Tal característica, com o parlamento racionalizado, não está em desacordo com a teoria constitucional moderna. Se eu fosse escrever um texto constitucional, escreveria dessa mesma forma”, diz.
As bases institucionais do presidencialismo de coalizão estão no poder Legislativo do presidente, que tem mecanismos para controlar a agenda do Congresso, diz Figueiredo
Isso reflete, por exemplo, no padrão de sucesso e de dominância do Executivo na aprovação da legislação nacional, muito semelhante ao observado em governos parlamentaristas. O padrão de sucesso do Executivo diz respeito ao percentual de projetos propostos pelo presidente da República que se torna lei. A dominância, por sua vez, está relacionada ao percentual do total de leis aprovadas que foram encaminhadas por ele. Desde a redemocratização, a média tem sido de 77,3% e 83,5%, respectivamente. “No desenvolvimento das nossas pesquisas, identificamos que as bases institucionais do presidencialismo de coalizão estão no poder legislativo do presidente, que tem mecanismos constitucionais para controlar a agenda do Congresso”, explica Figueiredo.