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Genética

Desgaste em alta velocidade

Pesquisadores brasileiros testam hormônio masculino para amenizar sintomas de doença rara que afeta a produção de células sanguíneas

SCIENCE PHOTO LIBRARY Imagem de microscopia eletrônica de um cromossomo humano ampliado 19,5 mil vezes. Os telômeros são suas extremidades, coloridos artificialmente de verdeSCIENCE PHOTO LIBRARY

Há pouco mais de três anos 18 pessoas comparecem uma vez a cada duas semanas ao Centro de Terapia Celular da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto para tomar uma injeção de nandrolona, uma versão sintética do hormônio sexual masculino testosterona. Com idade variando entre 4 e 55 anos, elas apresentam um grupo de doenças genéticas raras que atinge, em média, uma pessoa em cada grupo de 1 milhão e provoca o encurtamento acelerado dos telômeros – as extremidades dos cromossomos, estruturas formadas por DNA e que abrigam os genes no interior das células. A redução acentuada dos telômeros leva algumas células, como as do sangue, a envelhecerem rapidamente e morrer mais cedo, na maioria dos casos, antes de serem repostas. Uma das consequências mais graves dessas enfermidades é a redução na capacidade da medula óssea (compartimento no interior dos ossos) de produzir os diferentes tipos de células sanguíneas. Por essa razão, quem sofre com algumas dessas doenças – em especial, a disqueratose congênita, a mais grave delas – tem de se submeter a transfusões de sangue frequentes ou ao transplante de medula óssea, que nem sempre funciona.

No ensaio clínico que vem desenvolvendo em Ribeirão Preto desde 2014, o hematologista Rodrigo Tocantins Calado testa a segurança e a eficiência do uso da nandrolona para promover o aumento da extensão dos telômeros e estimular a medula óssea a produzir células sanguíneas. Há algum tempo se sabe que os hormônios sexuais masculinos são fundamentais para o bom funcionamento da medula óssea. Além dessa evidência, resultado de observações clínicas, o próprio Calado havia verificado em 2009, em testes in vitro com células-tronco da medula óssea, que o aumento da produção de células sanguíneas é decorrente do alongamento dos telômeros, por sua vez induzido pelo hormônio masculino.

Os testes com a nandrolona ainda não terminaram e devem incluir ao menos dois outros participantes. Os resultados preliminares, no entanto, sugerem que, assim como outro hormônio sintético masculino testado previamente pelo grupo, a nandrolona promove a produção de telomerase, enzima que restaura os telômeros, reduzindo o ritmo de encurtamento dessas estruturas. De fato, pessoas com disqueratose e outras doenças que causam desgaste acentuado dos telômeros produzem uma versão falha dessa enzima. Os dados, que ainda não foram publicados, também indicam que essa versão do hormônio produziu poucos efeitos indesejados. Apenas duas pessoas tiveram de interromper o uso da medicação: uma que foi diagnosticada com depressão e outra que desenvolveu um quadro grave de acne. “São eventos que não comprometem a segurança e não interferem na continuidade do estudo”, diz Calado, coordenador do trabalho, financiado pela FAPESP, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Ministério da Saúde.

Batista Lab / Universidade de Washington em Saint Louis infográfico ana paula campos Cromossomos de células com mutações típicas da disqueratose congênita. Seus telômeros (pontos verdes) são mais curtos que os de células sadiasBatista Lab / Universidade de Washington em Saint Louis infográfico ana paula campos

Calado decidiu testar a nandrolona como alternativa a outro composto avaliado alguns anos antes. Em um estágio de pós-doutorado no laboratório do hematologista Neal Young, nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, ele havia participado de um ensaio clínico no qual 27 pessoas com disqueratose congênita foram tratadas por dois anos com uma dose diária de danazol, composto sintético com ação semelhante à dos hormônios sexuais masculinos. Segundo os resultados, publicados em maio de 2016 no New England Journal of Medicine, 19 (79%) dos 24 participantes avaliados no terceiro mês de tratamento passaram a produzir mais células sanguíneas, efeito que se mostrou duradouro. Das 12 pessoas que completaram os dois anos de terapia, 10 continuavam com a medula óssea funcionando melhor e produzindo mais células e apresentaram uma redução de 20% no ritmo de encurtamento dos telômeros. Apesar dos resultados promissores, o composto era mais tóxico: 41% dos participantes passaram a apresentar níveis elevados de enzimas no fígado, um sinal de possíveis danos hepáticos, e seis pessoas desenvolveram cirrose. “Até o momento, a nandrolona parece apresentar níveis menores de toxidade, embora também seja metabolizada no fígado”, conta o hematologista da USP. “Esses resultados servem de estímulo para a busca de compostos ainda menos tóxicos que estimulem a produção da telomerase.”

Em paralelo à avaliação da nandrolona, Calado e a bioquímica Raquel Paiva trabalham para compreender por que pessoas com disqueratose e doenças semelhantes apresentam problemas de fígado em diferentes níveis de gravidade. Com a equipe de Young e a do hepatologista Bin Gao, também dos NIH, Raquel, Calado e a bióloga molecular Sachiko Kajigaya trabalharam com camundongos geneticamente alterados para não produzir dois componentes da telomerase. Além de reparar os telômeros, essa enzima também influencia a produção de energia nas células.

Nos experimentos, os pesquisadores alimentaram os animais por duas semanas com uma dieta hiperlipídica e observaram que aqueles que quase não produziam telomerase acumulavam mais gordura nas células do fígado (hepatócitos), causando uma inflamação no órgão, segundo artigo publicado em janeiro de 2018 na revista Liver International. “Já se sabia que telômeros curtos demais reduziam a produção de energia nas células do fígado por afetar outras vias bioquímicas”, conta Calado. “Agora, identificamos um mecanismo adicional.” Como os danos hepáticos são mais frequentes em pessoas com disqueratose congênita e enfermidades similares, Calado considera “fundamental que esses pacientes evitem uma dieta gordurosa”.

Outro achado recente que contou com a participação de brasileiros ajuda a entender por que as pessoas com disqueratose congênita perdem progressivamente a capacidade de produzir células sanguíneas. Algumas estimativas indicam que, a partir do final da infância, 85% delas apresentam uma diminuição importante na capacidade de gerar uma das três linhagens de células do sangue (hemácias, leucócitos e plaquetas) e que, na idade adulta, 95% têm problemas para produzir as três. Nos casos extremos, a medula óssea para de funcionar e leva à morte.

Imaginava-se que, na disqueratose, a renovação do sangue deixasse de ocorrer porque o encurtamento excessivo dos telômeros afetasse o funcionamento das células-tronco hematopoiéticas, as células imaturas que originam os diferentes tipos de células sanguíneas. Como é difícil fazer biopsias para averiguar a influência do encurtamento dos telômeros sobre a evolução da produção de células sanguíneas, o biólogo brasileiro Luis Francisco Zirnberger Batista e seu colega canadense Christopher Surgeon, ambos professores na Universidade de Washington em Saint Louis, Estados Unidos, desenvolveram um modelo in vitro para simular o amadurecimento do sistema hematopoiético em condições semelhantes à da disqueratose.

Usando a técnica de edição de genes CRISPR-Cas9, eles inseriram as mutações genéticas mais frequentes na disqueratose em células-tronco derivadas de embriões humanos. Apresentado em agosto na Stem Cells Report, o resultado revelou que a suspeita era parcialmente correta. O encurtamento acelerado dos telômeros, decorrente da baixa atividade da telomerase ou de sua produção insuficiente, prejudica essencialmente uma fase da produção das células sanguíneas chamada hematopoiese definitiva, que se inicia no final do desenvolvimento embrionário, quando são originadas as células das três linhagens sanguíneas. Mas parece favorecer a hematopoiese primitiva, que ocorre antes, quando o embrião começa a se formar, e é responsável pela produção das populações transitórias de células do sangue características do início da vida. “Esses resultados coincidem com o que se vê na prática clínica”, afirma Batista.

Projetos
1. Correlação entre genótipo, comprimento telomérico e fenótipo nas telomeropatias (nº 16/12799-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rodrigo do Tocantins Calado de Saloma Rodrigues (USP); Investimento R$ 142.917,48.
2. Centro de Terapia Celular (CTC) (nº 13/08135-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Dimas Tadeu Covas (USP); Investimento R$ 31.294.138,11 (para todo o projeto).

Artigos científicos
ALVES-PAIVA, R. M. et al. Telomerase enzyme deficiency promotes metabolic dysfunction in murine hepatocytes upon dietary stress. Liver International. v. 38, p. 144-54. jan. 2018.
TOWNSLEY, D. M. et al. Danazol treatment for telomere diseases. New England Journal of Medicine. v. 374, p. 1922-31. 19 mai. 2016.
FOC, W. C. et al. p53 mediates failure of human definitive hematopoiesis in dyskeratosis congenita. Stem Cell Reports. v.9 (2), p. 409-18. 8 ago. 2017.

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