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Desigualdade em colaborações é questão de integridade científica, aponta Conferência Mundial

Evento na Cidade do Cabo, na África do Sul, mostra ampliação no conceito de responsabilidade na pesquisa

Marcus Deusdedit

Cerca de 700 cientistas, gestores acadêmicos e estudantes de várias partes do mundo estiveram presencial e virtualmente na Cidade do Cabo, na África do Sul, entre 29 de maio e 1º de junho, para discutir avanços relacionados à ética e à responsabilidade na pesquisa, e testemunharam o quanto esse campo do conhecimento vem se desdobrando em novos tópicos e ganhando amplitude. O tema principal da 7ª Conferência Mundial sobre Integridade em Pesquisa, a primeira realizada no continente africano, foi a importância de promover colaborações internacionais mais equânimes, respeitosas e diversas. A premissa é que essas parcerias são desiguais e, com frequência, desfavoráveis a países pobres.

O pano de fundo é um fenômeno positivo: o crescimento, a partir do final da década de 1990, do número de consórcios e iniciativas internacionais compreendendo colaborações entre nações do hemisfério Norte, que concentra a maioria dos países ricos, e do Sul, em desenvolvimento. Dados apresentados na conferência mostraram que, em cooperações globais, 90% do financiamento provém de nações de alta renda e isso em geral tem reflexos nas relações de poder. Os países de renda média e baixa, sequiosos por financiamento internacional, às vezes abraçam agendas que não necessariamente representam seus interesses de pesquisa mais prementes.

Entrevista: Sigmar de Mello Rode
00:00 / 19:39

É certo que assimetrias podem estar presentes até em parcerias entre países de renda equivalente, mas a conferência concentrou seu foco em casos que evoluem para situações claras de má conduta, nas quais cientistas de nações pobres são privados do reconhecimento de seu trabalho nas colaborações ou comunidades locais deixam de receber benefícios gerados pelo conhecimento que ajudaram a produzir. Um exemplo de desvio ético discutido no evento é a chamada “pesquisa de helicóptero”. Funciona assim: cientistas de países ricos visitam países pobres para obter dados de seu interesse – como amostras humanas para ensaios clínicos, espécimes para pesquisas biológicas ou material fóssil para estudos em arqueologia e paleontologia – e logo depois “levantam voo”, sem estabelecer colaborações respeitosas com colegas locais, muitas vezes privando-os de serem coautores de publicações e de patentes. Sue Harrison, vice-reitora da Universidade da Cidade do Cabo (UCT), classificou na abertura da conferência esse comportamento de “colonialismo científico”, por se apropriar de dados sem contribuir com o desenvolvimento da infraestrutura local e da formação de recursos humanos. “Tais práticas podem causar mais danos à credibilidade da ciência do que formas mais flagrantes de má conduta”, completou a médica, empresária e filantropista Precious Moloi-Motsepe, que desde 2019 é a reitora da UCT.

Um caso possível de “pesquisa de helicóptero” foi apontado em um estudo da UCT que analisou no ano passado 94 artigos sobre Covid-19 na África publicados em 10 revistas médicas. Divulgado no periódico BMJ Global Health, o trabalho constatou que 66,1% dos autores desses papers não atuavam no continente e um em cada cinco artigos não tinha um autor africano sequer. Editores mostraram o que estão fazendo para enfrentar o problema. Sabine Kleinert, editora-executiva da revista médica The Lancet e uma das copresidentes da conferência, afirmou ter rejeitado artigos com dados da África que não faziam menção à participação de colaboradores locais ao menos na coleta de informações. Segundo ela, a falha em reconhecer o trabalho feito por outros equivale a uma violação de integridade. “Isso é inaceitável”, disse.

Não há muitos estudos na literatura acadêmica sobre equidade em parcerias. Um deles, publicado em 2020 na revista PLOS ONE por pesquisadores da Austrália e da África do Sul, entrevistou um grupo de 15 cientistas de várias nacionalidades envolvidos em uma colaboração internacional em saúde, o Consórcio Atlas de Células Humanas (HCA), que busca mapear características das células em indivíduos saudáveis que representem a diversidade global. Um problema recorrente tinha a ver com a divisão desigual de trabalho. Em geral, pesquisadores de países pobres não participam do desenho dos projetos de investigação e ficam encarregados apenas da coleta de dados brutos. Também sofrem com outras limitações sutis, como o cumprimento de prazos exíguos para entregar sua contribuição.

Entrevista: Edilson Damásio
00:00 / 15:22

O estudo propôs algumas saídas para o problema. Uma delas é incentivar mudanças nas regras estabelecidas por universidades para que seus pesquisadores integrem colaborações: as instituições devem exigir de seus docentes o cumprimento de práticas equitativas. Outro ponto diz respeito ao financiamento de cientistas de países pobres em consórcios internacionais. De modo geral, as grandes agências de fomento disponibilizam menos recursos do que seria necessário para viabilizar a participação desses parceiros. Já as universidades de países pobres têm dificuldades em estimar seus custos e montar orçamentos factíveis.

Um estudo sobre equidade, publicado em 2018 na revista Annals of Global Health por pesquisadores do Quênia, do Canadá, da Tanzânia e da África do Sul, analisou os resultados de 125 parcerias internacionais celebradas por quatro universidades do leste do continente africano. Quarenta e dois por cento das experiências foram consideradas de pouco valor, a maioria por terem curta duração, escala limitada e pouco impacto em treinamento e capacitação local. Uma em cada quatro parcerias era percebida como de alto valor. Um dos casos apontados teve início em 1988. Foi criado por líderes das escolas de medicina da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, e da Universidade Moi, no Quênia, e envolve até hoje estudos sobre saúde global e formação de profissionais. Mais de mil médicos de Indiana estagiaram no Quênia, enquanto 400 quenianos complementaram sua formação em instituições norte-americanas.

Financiamento se reflete nas relações de poder em colaborações científicas

A preocupação com a desigualdade não está presente apenas nos países africanos. No Brasil, a FAPESP, nos convênios com instituições estrangeiras, requer que as parcerias sejam lideradas por um pesquisador paulista e um do exterior, em igualdade de condições. A Wellcome Trust, do Reino Unido, lançou no ano passado sua Estratégia para Diversidade, Equidade e Inclusão, alinhando-se a um consórcio de empresas e instituições científicas conhecido como Edis Group, que, entre suas metas, busca “aumentar a diversidade de pessoas envolvidas no ciclo de pesquisa” e ampliar a inclusão para “combater as desigualdades em saúde e melhorar a qualidade da pesquisa”. A London School of Hygiene & Tropical Medicine está reavaliando suas parcerias globais. No ano passado, uma revisão independente enumerou evidências de práticas injustas e até racismo atingindo alunos e colaboradores. A escola está discutindo novos parâmetros de relacionamento com nações pobres, segundo disse à revista Nature Patricia Henley, chefe de governança e integridade de pesquisa da instituição. Ela critica a imposição de financiadores de nações desenvolvidas no sentido de que seus pesquisadores liderem as colaborações. “Por que tudo precisa ser tão focado em instituições do Norte?”, indagou Henley.

Além dos dilemas éticos envolvidos, a desigualdade pode comprometer a qualidade da pesquisa. A compreensão de cientistas de países de baixa e média renda sobre a cultura local é essencial para analisar de forma adequada os dados coletados em seus territórios, proporá a Declaração da Cidade do Cabo sobre Integridade em Pesquisa, prevista para ser publicada até o final do ano com base em discussões alinhavadas em duas grandes plenárias na conferência. O documento deverá defender que práticas injustas em colaborações são questões de integridade e definir princípios e valores para promover a construção conjunta de agendas de pesquisa, além de formas equânimes de financiamento, produção, análise e gestão de dados.

James Lavery, especialista em bioética da Universidade Emory, em Atlanta, Estados Unidos, que ajudou a construir o documento de referência da declaração, afirmou à revista Science que o debate sobre a integridade tardou a olhar para a questão da equidade. “Por muito tempo, o espaço foi dominado pela abordagem regulatória norte-americana”, afirmou, referindo-se a um foco em plágio, fraude e ética em experimentos com seres humanos. A brasileira Sonia Vasconcelos, pesquisadora do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que copresidiu a quarta edição da conferência, realizada em 2015 no Rio, testemunhou a evolução desse debate. Ela lembra que, na primeira conferência, sediada em Lisboa, em 2007, a comunidade científica ainda estava pouco mobilizada e tentava compreender as implicações do crescimento do número e da dimensão de casos de desvios éticos. “Havia uma preocupação principalmente no sentido de entender o tamanho do problema e como ele se distribuía nos vários países e áreas do conhecimento, e de também desenvolver um sistema transparente que abordasse adequadamente casos de má conduta, a fim de evitar que a confiança na ciência fosse abalada”, recorda. A ênfase era maior nas responsabilidades de indivíduos e no ambiente de pesquisa – influenciados pela pressão crescente por produtividade em cenários altamente competitivos.

Entrevista: Anna Catharina Vieira Armond
00:00 / 27:90

O encontro seguinte, realizado em 2010 em Singapura, produziu uma declaração clara e articulada, embora ainda se ocupasse bastante de comportamentos individuais. “Naquele momento foram propostos princípios de integridade em pesquisa que seriam compartilhados entre comunidades de diferentes países, bem como responsabilidades, apontando como universidades, agências de fomento e sociedades científicas deveriam responder a alegações de má conduta e a outras práticas consideradas irresponsáveis.” Em Montreal, no Canadá, em 2013, observa Vasconcelos, a conferência chamou a atenção para conflitos éticos em redes de pesquisa colaborativas, por exemplo, relacionados ao acesso desigual a recursos e equipamentos e à existência de noções distintas de proteção de propriedade intelectual. No Rio de Janeiro, em 2015, avançou-se no sentido de discutir a importância do papel de programas de educação e treinamento a fim de promover uma cultura institucional de integridade (ver Pesquisa FAPESP nº 233).

Em Amsterdã, na Holanda, em 2017, um dos temas quentes foi a reprodutibilidade científica. Naquele momento, intensificavam-se preocupações sobre uma crise de confiança em resultados de pesquisa que não se repetiam em trabalhos subsequentes, especialmente em áreas biomédicas. “Os holandeses têm uma rede de integridade muito forte e eles imprimiram no evento a necessidade de se criar mecanismos para melhorar a confiabilidade na ciência.” Por fim, em Hong Kong, em 2019, o debate girou em torno do sistema de recompensas dos pesquisadores na promoção da integridade científica. O resultado foi uma declaração que critica a ênfase exagerada em indicadores quantitativos para avaliar a produção acadêmica. O documento também propôs reconhecer e recompensar quem adota os princípios da chamada ciência aberta, um ambiente marcado por uma dinâmica de colaboração vigorosa, com acesso aberto ao conhecimento e um compartilhamento amplo de dados.

Os temas das conferências anteriores, naturalmente, também estavam presentes em centenas de trabalhos apresentados na Cidade do Cabo. Pesquisadores brasileiros trataram de assuntos variados como uma iniciativa para reproduzir dados de estudos da área biomédica ou a elaboração de cursos on-line de integridade para editores científicos . Alguns tópicos tiveram desdobramentos importantes. Os desafios da ciência aberta foram tratados por um viés crítico – o das dificuldades enfrentadas por pesquisadores em ambientes com poucos recursos para participarem de parcerias que exigem treinamento e infraestrutura em gerenciamento e armazenamento de dados. Outra questão foi o avanço do movimento de acesso aberto de publicações científicas que, sobretudo na Europa, vem disseminando um modelo que transfere custos de publicação dos leitores para pesquisadores e agências de fomento, algo proibitivo para países pobres.

O epidemiologista Wongani Nyangulu, do Colégio de Medicina da Universidade do Malawi, recebeu o prêmio de melhor apresentação oral na qual propôs uma série de ações para reforçar a posição de pesquisadores de países pobres em colaborações internacionais, tais como a criação de escritórios de integridade em instituições e agências para monitorar as parcerias. Outro trabalho reconhecido foi a apresentação da grade curricular do Programa de Treinamento em Integridade em Pesquisa, criado pelas universidades de Nova York, nos Estados Unidos, e de Gana, na África. Financiado pelo Fogarty International Center, vinculado aos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, o programa busca formar especialistas em Gana com domínio em ética, integridade e governança de pesquisa a fim de liderar equipes internacionais e desenvolver políticas institucionais no país. O encontro da Cidade do Cabo também marcou a consolidação da Rede Africana de Integridade em Pesquisa, uma parceria para promover práticas éticas envolvendo universidades de todo o continente. Pesquisadores das nações em desenvolvimento preocuparam-se em demonstrar o que estão fazendo para acompanhar avanços e conceitos de integridade científica e estão trazendo novas questões à mesa.

Integridade em pesquisas com resultados rápidos

O Global Research Council, entidade que reúne mais de 60 agências de financiamento público à pesquisa de todos os continentes, aprovou no início de junho em uma reunião na Cidade do Panamá um documento sobre integridade e ética na pesquisa em ambientes de colaboração que requerem resultados rápidos, como os que envolvem estudos sobre a Covid-19 e as mudanças climáticas globais. Um dos destaques da declaração foi a necessidade de estabelecer critérios de avaliação de mérito de projetos que permitam análises transparentes e velozes, condizentes com a necessidade de obter respostas ágeis. Outro tópico tem a ver com a adoção de estratégias para reduzir conflitos em colaborações científicas, uma vez que elas tendem a ficar mais amplas e tensas em situações que demandam respostas prontas.

O texto ressalta ainda a importância de que agências de financiamento e instituições disseminem treinamento relacionado a condutas responsáveis com a criação de módulos e conteúdo específico para contextos de pesquisa como o de uma emergência sanitária. “Apoiar pesquisadores na concepção, execução e divulgação de resultados de pesquisa, garantindo uma cultura de integridade, é essencial para preservar a confiança pública na ciência”, afirma Euclides de Mesquita Neto, coordenador adjunto em Programas Especiais e Colaboração em Pesquisa da FAPESP e secretário-executivo do GRC.

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