O casamento do laser com a medicina está perto de produzir uma ferramenta capaz de aprimorar o delicado trabalho de triagem de fígados destinados ao transplante. Pesquisadores do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof) de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram uma forma de biópsia óptica que fornece, em tempo real, de maneira não invasiva e objetiva, o teor de gordura acumulado no órgão. O aparelho que realiza o exame – uma fina cânula que emite um feixe de laser sobre o tecido em análise, absorve a luz devolvida pelo tecido biológico e envia os dados para um espectrômetro e um computador portátil acoplados em uma maleta – foi testado com sucesso em ratos e num estudo piloto com seres humanos por cirurgiões da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), também da USP.
A nova abordagem fornece com precisão e de maneira quase instantânea o grau de esteatose hepática (lipídios no fígado), uma informação indispensável na busca por órgãos mais viáveis para transplantes. Fígados gordurosos, com esteatose maior do que 30%, não podem ser utilizados para esse fim. “(A biópsia óptica) pode ser uma alternativa promissora aos métodos de diagnóstico convencionais usados em cirurgias e transplantes”, escreveram Giovanni Bottiroli e Anna Cleta Croce, da Universidade de Pavia (Itália) em editorial na revista Liver International de março deste ano. Nessa mesma edição do periódico internacional os cientistas paulistas publicaram um artigo relatando o trabalho com os roedores. O Cepof, onde foi criada a técnica de diagnóstico de gordura no fígado com o auxílio do laser, é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP.
O médico Orlando Castro e Silva Júnior, chefe da divisão de cirurgia digestiva e coordenador do grupo de transplantes da FMRP, está convencido de que a nova abordagem será de grande valia em sua especialidade. “Com o resultado da biópsia óptica em mãos, basta fazermos uma regra de três para determinar o grau de esteatose do fígado”, explica o cirurgião, um dos autores dos trabalhos com animais e seres humanos. Dificilmente há tempo hábil para retirar uma amostra de tecido do fígado disponível para transplante e submetê-la aos devidos exames. Por isso, o diagnóstico do grau de esteatose hepática é feito normalmente de forma subjetiva pelo próprio cirurgião.“Hoje a avaliação do órgão doado é feita pelo olho do médico”, comenta Castro e Silva. “Não dá tempo de realizar uma biópsia (convencional).” O laser pode ser uma luz nessa lacuna de incerteza.
Para conceber um sistema rápido e acurado de diagnóstico do acúmulo de gordura no fígado, os pesquisadores da USP exploraram um fenômeno muito conhecido da física: a espectroscopia de fluorescência. Algumas moléculas apresentam a capacidade de absorver energia e emitir luz depois de excitadas por meio de uma fonte luminosa. No caso dos trabalhos com a esteatose hepática, um feixe de laser disparado sobre o tecido biológico em questão atua como agente indutor da fluorescência. “O que fizemos foi correlacionar diretamente a intensidade da fluorescência com o conteúdo de gordura do fígado”, explica Vanderlei Salvador Bagnato, coordenador do Cepof e um dos principais pesquisadores dessa área. “Cada grau de esteatose (leve, moderada ou avançada) gera respostas distintas.”
O desenho da estratégia não é novo. Os próprios cientistas de São Carlos trabalharam de forma semelhante quando desenvolveram sistemas de diagnóstico em tempo real por espectroscopia de fluorescência para outras condições clínicas e tecidos, como alguns tipos de tumores de boca e de fígado e a doença do cancro cítrico que ataca os laranjais. Nesse tipo de abordagem, o primeiro passo é verificar se a técnica capta a alteração biólogica estudada e é capaz de gerar um padrão confiável que permita diferenciar os distintos estágios ou fases dessa patologia. “Temos de verificar se o método é sensível a essa condição biológica num modelo animal”, diz Cristina Kurachi, uma das pesquisadoras do Cepof. “Sem essa confirmação, fica muito difícil propor a técnica para uso em seres humanos.”
Os testes com os roedores animaram os pesquisadores de São Carlos e Ribeirão Preto – e também os editores da revista Liver International. O diagnóstico com espetroscopia de fluorescência deu conta de separar os ratos nos quatro grandes grupos em que estavam divididos clinicamente: animais normais (sem gordura no fígado), com grau leve, moderado e elevado de esteatose hepática. No artigo do periódico médico a equipe da USP mostra que, ao jogar um feixe de laser de um determinado comprimento de onda sobre o tecido biológico, é gerado um fator de fluorescência da esteatose que varia linearmente de acordo com a presença de lipídios no fígado: quanto mais gordura no órgão, maior é o fator. De posse desse dado, o cirurgião em dúvida sobre a real condição de um fígado doado pode descobrir instantaneamente o nível de lipídios no órgão. “Testamos o método em 27 fígados humanos doados, seis deles já descritos em nosso estudo piloto, e ele parece ser fantástico para o diagnóstico de esteatose”, afirma o cirugião Castro e Silva. “Acredito que possamos usar essa tecnologia para analisar outros problemas hepáticos, como a cirrose.” Antes de ganhar as salas de cirurgia dos hospitais, o laser a serviço da medicina terá de ser posto à prova em mais fígados humanos destinados ao transplante.
O projeto
Biofotônica – Fluorescência óptica; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids); Coordenadores Vanderlei Salvador Bagnato e Cristina Kurachi – Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof) da USP de São Carlos
Orlando Castro e Silva Júnior – FMRP da USP; Investimento R$ 40.000 e US$ 32.000 por ano para o projeto (FAPESP)
Artigo científico
OLIVEIRA, G.R. et al. Fluorescence spectroscopy to diagnose hepatic steatosis in a rat model of fatty liver. Liver International. v. 29, n. 3, p. 331-336. mar. 2009.