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Resenhas

Diálogo intermitente

Cartas provincianas: Correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira | Silvana Moreli Vicente Dias (org.) | Global Editora | 472 páginas | R$ 69,00

eduardo cesarCartas se caracterizam por serem textos efêmeros, inscritas no tempo de sua produção e escritas, muitas vezes, no papel que se tem à mão. Por isso, frequentemente, salvo um esforço dos próprios missivistas ou de terceiros, preocupados em preservá-las, facilmente desaparecem, seja pelo corriqueiro de seu conteúdo, seja pela sua fragilidade material. Nem sempre é assim, porém.

Temos assistido, nestas duas décadas do século XXI, a um grande interesse pelas chamadas écritures du moi (“escritas do eu”, na expressão de Georges Gusdorf): nunca se estudaram tantas memórias, diários, cartas, quanto nesses últimos tempos. Publicações de memórias, diários, cartas sempre houve. Estudos, no entanto, que os enxergassem como objetos de pesquisa, e não como auxiliares para a interpretação da obra de um escritor, como protagonistas, e não como coadju-vantes, eram raros.

Nesse sentido, engana-se quem abre o volume Cartas provincianas: Correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, recém-lançado pela Global Editora, e julga deparar-se apenas com um livro de cartas. Sim, é um livro de cartas, que reúne “68 peças, sendo 14 de autoria de Gilberto Freyre e 54 de Manuel Bandeira”, mas não é só isso. Organizado e exaustivamente anotado por Silvana Moreli Vicente Dias, o livro vai além de uma mera correspondência anotada (o que já seria um trabalho e tanto). A organizadora preocupou-se em contextualizar cada uma das 68 cartas, em um trabalho cuidadoso e pormenorizado de reconstituição das condições de produção de cada uma delas, um verdadeiro resgate. Fruto de sua pesquisa de doutorado desenvolvida na Universidade de São Paulo, é exemplo perfeito a ilustrar o interesse que se tem visto, nos últimos anos, em relação à produção epistolar brasileira.

O livro vem dividido em quatro grandes blocos. Em “Correspondências provincianas: Aproximações”, a organizadora aponta aos leitores as linhas gerais que nortearam a compilação do volume. No segundo capítulo, “Correspondência entre Gilberto Freyre & Manuel Bandeira”, explicita os critérios da edição, antes de o leitor adentrar a correspondência propriamente dita, que mereceu mais de 700 notas, que se distribuem entre “notas de edição” e “comentários exegéticos”. Em “Textos seletos de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira”, encontram-se reunidas produções de ambos os missivistas, produções que dialogam com as cartas que as precedem e lhes completam o sentido. O capítulo 4, “Leituras da Província”, por fim, tem o objetivo de alinhavar “dados dispersos nos capítulos 2 e 3” por meio de “ensaios críticos elaborados de modo a ressaltar diversas facetas do diálogo” estabelecido entre Freyre (1900-1987) e Bandeira (1886-1968).

O esforço exegético da organizadora se justifica: a troca epistolar entre os dois pernambucanos é não apenas assimétrica (se se leva em consideração que existem 14 cartas de Freyre para 54 de Bandeira), mas intermitente, sendo, salvo em curtos períodos em que se torna um pouco mais assídua (como entre os anos de 1934 e 1936), amiúde interrompida e retomada meses (ou anos) depois. Assim, o diálogo estabelecido entre as cartas e demais produções de ambos os escritores, acompanhado de rica iconografia, permite, se não o preenchimento completo do vácuo entre uma carta e outra, que a passagem entre elas se faça de maneira menos abrupta. Ao mesmo tempo, os comentários exegéticos presentes em rodapé, para além de informações de caráter enciclopédico (por exemplo, notas biobibliográficas sobre as personalidades mencionadas na correspondência), situam o seu objeto na produção dos missivistas, por meio de trechos garimpados na vasta obra de ambos. É o que se vê em notas como a dedicada a Carlos Drummond de Andrade, em que, após informações de caráter biobibliográfico, a organizadora cita ensaio de Bandeira sobre o poeta de Itabira, assim como uma carta inédita de Freyre a ele endereçada, que “mostra, por sua vez, como Freyre procurava cultivar esta amizade”.

Cartas provincianas está ao lado, certamente, dos mais sérios estudos sobre correspondência que têm surgido nos últimos anos. Interessará não somente aos pesquisadores da obra de ambos os escritores, mas também aos interessados na cultura brasileira e, particularmente, na pesquisa epistolográfica.

Emerson Tin é docente das Faculdades de Campinas (Facamp). Traduziu e analisou os tratados que compõem A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio (Editora da Unicamp, 2005).

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