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Ciência Política

Dinheiro para as democracias

Evitar corrupção e garantir a competição são preocupação no debate para identificar qual o melhor modelo de financiamento político

catarina bessellTão antigo quanto a democracia moderna, o financiamento político é indispensável para sua existência: é o que mantém partidos políticos, divulga candidatos, realiza campanhas eleitorais. Igualmente indispensáveis são as medidas para sua regulamentação, que datam do final do século XIX. A Grã-Bretanha é pioneira ao criar, em 1883, uma lei para prevenir a corrupção nesse campo. Décadas depois, em 1928, com a mesma preocupação em combater práticas ilegais, o Uruguai adotou pela primeira vez no mundo o financiamento público, por acreditar que este seria mais eficaz. Até então, a fonte de recursos era exclusivamente privada. O exemplo uruguaio foi seguido pela Argentina, em 1955, e pela Alemanha, em 1959. Logo outros países optariam por esse tipo de financiamento. Porém não há consenso sobre qual, se o público ou o privado, é o melhor para coibir práticas ilegais – como se vê indistintamente pelos escândalos em países que têm um ou outro tipo, com regras as mais variadas.

No debate sobre financiamento de partidos e eleições, impedir manobras corruptas não é a única preocupação. Existe também a de garantir que haja competição saudável, de modo que setores menos fortalecidos economicamente possam, em tese, concorrer com as mesmas possibilidades. “Um modelo adequado de financiamento político para um determinado país pode não ser o melhor para outro”, afirma a cientista política Adla Youssef Bourdoukan, que estudou o tema em sua tese O bolso e a urna: financiamento político em perspectiva comparada, defendida recentemente no Departamento de Ciência Política da USP, sob orientação de Maria Hermínia Tavares de Almeida. “E o melhor será aquele que garantir um fluxo de recursos que permita a competição eleitoral ao mesmo tempo que minimize as possibilidades de corrupção”, acrescenta.

No Brasil, o financiamento é misto – ou seja, os recursos vêm tanto do setor privado quanto do público, sendo o primeiro o predominante. Desde o escândalo Collor – quando denúncias de caixa 2 levaram ao impeachment do então presidente, Fernando Collor de Mello, em 1993, uma série de medidas foi criada pelo TSE  (Tribunal Superior Eleitoral) para aumentar a transparência nas contas partidárias, fiscalizar e punir os políticos e partidos transgressores. Mas esse é, segundo a pesquisadora, um processo ainda em andamento, e há diversos casos de impunidade para alguns protagonistas de escândalos em torno de “recursos não contabilizados” em eleições anteriores.

Como exemplo dessas medidas importantes, a pesquisadora cita aquelas que permitem que as prestações de contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais possam ser consultadas pelos eleitores na internet. Já é possível verificar as prestações de contas das campanhas eleitorais desde 2002 e dos partidos políticos dos anos de 2007 e 2008. Além disso, evitam-se hoje as “doações ocultas”, aquelas feitas aos partidos e imediatamente transferidas aos candidatos. No passado, a identidade dos doadores permanecia oculta. Eleitores só sabiam que um doador contribuiu para a campanha de determinado partido quando este prestasse contas em abril do ano seguinte à eleição; e mesmo assim não era informado o destino da doação. Com as novas medidas, os partidos políticos têm de declarar a fonte dos recursos que irão transferir para candidatos durante as campanhas eleitorais.

catarina bessellO cientista político Bruno Wilhelm Speck, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor das pesquisas Caminhos da transparência: análise dos componentes de uma sistema nacional de integridade (Editora Unicamp) e Control ciudadano del financiamento politico (Transparency International Secretary), diz que, de fato, o Brasil já avançou bastante no aperfeiçoamento do seu modelo de financiamento. O país, segundo Speck, aposta menos em proibições e vetos e mais em regras básicas de prestação de contas e transparência. “O anterior proibia doações de empresas, mas de fato era uma fachada que camuflava o vale-tudo. Hoje é menos precário”, afirma Speck. Os candidatos e partidos podem receber recursos de praticamente todas as pessoas físicas e empresas, sem limitação efetiva sobre os valores, com a condição única de que prestem contas sobre a origem e a aplicação à Justiça Eleitoral, que divulga estes dados na íntegra na internet. “Há certamente recursos não declarados ainda. Mas há também um volume considerável de recursos – em torno de R$ 2 bilhões por eleição – dos quais sabemos a origem e a aplicação. Conhecemos os grandes doadores. Mesmo que sejam doações dentro da lei, a imprensa observa de perto estas empresas e os políticos que se elegeram com ajuda destes recursos. É um sistema que tem falhas ainda, mas é inegavelmente superior ao que estava em vigor antes. Requer uma Justiça eleitoral eficiente e cidadãos atentos e críticos, que questionem os seus candidatos sobre estas doações”, explica o cientista político.

Aperfeiçoa-se, assim, o modelo de financiamento já existente, adotando regras mais rígidas para a prestação de contas e a divulgação dos dados. Outra opção, além desse aperfeiçoamento, seria, segundo ele, uma mudança radical para um sistema de financiamento público exclusivo. Porém, como diz Speck, o Congresso Nacional, que tem competência para isso, não avança nesse rumo. “A dicussão em torno do tema sugere explorar caminhos alternativos para tirar a reforma política do beco sem saída em que se encontra há anos”, afirma Speck.

No Brasil há muita literatura sobre partidos, sistemas partidários e eleições, mas quase nada sobre como os partidos financiam suas atividades, avalia Maria Hermínia Tavares de Almeida. Por esse motivo, ela considera como pioneira a tese de Adla Bourdoukan. “Os estudos sobre financiamento partidário estão engatinhando no Brasil. A literatura internacional, bem explorada no trabalho dela, mostra que há diversidade nos modelos de financiamento e que são raros os países que se baseiam em apenas um tipo de financiamento. Predominam aqueles que combinam o público e o privado, como ocorre no Brasil”, diz. Novos estudos, segundo ela, podem fazer avançar o debate em várias questões: “Os determinantes da preferência pelos distintos modelos; a espinhosa questão do peso dos recursos não oficiais no financiamento aos partidos; as formas possíveis de monitoramento público do financiamento partidário”.

Os modelos de financiamento político envolvem uma série de variáveis, como explica a autora de O bolso e a urna. São eles que determinam como os recursos podem ser arrecadados. As fontes de recursos podem ser, como se disse, públicas, privadas ou ambas. A depender da escolha de cada país, os doadores podem ser indivíduos, empresas, sindicatos ou associações. Países também podem definir quais os limites para as doações individuais e para a arrecadação dos partidos. E também estabelecer regras sobre como esses recursos são gastos e se podem ser realizados por partidos, candidatos ou por terceiros, se há limites, vetos ou prazos. Geralmente se classificam os modelos de financiamento político em termos das fontes de receita. Dessa forma, nas democracias contemporâneas, encontram-se três modelos de financiamento político: exclusivamente privado, misto e por matching funds (ou contrapartidas).

catarina bessellNo levantamento que fez, Adla Bourdoukan encontrou países que adotam um teto máximo para os gastos com campanhas eleitorais, como Reino Unido, Portugal, Espanha, Argentina, México. Alguns proíbem as doações de empresas com finalidade lucrativa, como Estados Unidos, México, Israel. Outros impedem aquelas feitas por associações sindicais ou patronais. Entre eles incluem-se Brasil, Argentina, França, Portugal, Estados Unidos. Em alguns países há pulverização das fontes de receita dos partidos e candidatos. Os Estados Unidos são um exemplo. Nas suas últimas eleições presidenciais, 34% das doações individuais para a campanha de Barack Obama foram de valores considerados baixos, inferiores a US$ 200. A campanha de Obama, segundo ela, foi notória por mobilizar grande número de pequenos doadores, mas se pode dizer que as pequenas doações são uma característica do sistema norte-americano: na campanha de George Bush, em 2004, 26% do total de arrecadação foi em valores inferiores a US$ 200.

O modelo de matching funds, no qual o Estado contribui com recursos proporcionais aos arrecadados pelos candidatos, é adotado nas eleições para determinados cargos nos Estados Unidos e na Alemanha, mas, de acordo com a pesquisadora, sofreu um grande golpe nas últimas eleições norte-americanas com a recusa de Barack Obama de participar do esquema por não desejar se comprometer com um teto máximo para seus gastos de campanha.

O financiamento privado sempre foi predominante no Brasil, com exceção do período militar, quando as doações vindas de empresas com finalidade lucrativa foram proibidas e surgiu o fundo partidário. A primeira forma de financiamento público no Brasil foi o horário gratuito para campanhas eleitorais no rádio e na TV, que teve início em 1962. O financiamento público direto, na forma do fundo partidário, foi estabelecido em 1965 e teve existência ininterrupta até hoje, embora com modificações na distribuição dos recursos. Pelos cálculos da pesquisadora, o financiamento público no Brasil representou aproximadamente 28% do total do financiamento político total em 2002, 24% em 2004 e 28,3% em 2006.

Em países que utilizam financiamento exclusivamente privado a competição se dá não só em torno de votos, mas também em relação aos recursos para financiar as campanhas políticas e o funcionamento dos partidos políticos. “Mas não é correto supor que os partidos com acesso a mais recursos seriam mais beneficiados, porque esses recursos não necessariamente irão se transformar em votos”, explica a pesquisadora. “É claro que um mínimo de recursos é necessário para que as propostas do partido ou candidato se tornem conhecidas dos eleitores e assim possam gerar votos, mas uma série de estudos aponta também para um efeito oposto: votos atraem recursos. Isso porque poucos doadores estão dispostos a desperdiçar dinheiro contribuindo com campanhas com poucas chances de vencer as eleições, ao passo que um grande número de doadores estaria disposto a contribuir com campanhas que supõem que possam ser vencedoras, mesmo quando as preferências políticas dos doadores e dos candidatos não são as mesmas”, acrescenta Adla Bourdoukan.

catarina bessellNo caso do financiamento público, a possibilidade de haver efeitos sobre a competição partidária é maior, alerta a pesquisadora. “O Estado tem de estabelecer critérios para distribuir os recursos públicos: pode dar uma quantidade igual de recursos para todos os partidos ou candidatos, o que equalizaria artificialmente a disputa eleitoral, além de atrair para a disputa candidaturas oportunistas cujo objetivo único seria se apropriar desses recursos, ou destinar recursos proporcionalmente à relevância política dos partidos ou candidatos”, explica. Existem basicamente duas possibilidades para medir essa relevância política, diz ela: com base no desempenho dos partidos nas eleições anteriores ou na eleição atual.No primeiro caso, que é a opção adotada pela maior parte dos países com financiamento público, existe uma tendência ao engessamento do sistema partidário, pois as eventuais mudanças de preferência do eleitorado no tocante aos partidos políticos não estarão sendo levadas em conta na distribuição dos recursos públicos.

Em O bolso e a urna, a cientista política se detém principalmente no efeito de cada tipo de financiamento – privado ou público – na competição eleitoral. Uma das conclusões é que este costuma variar em função do sistema eleitoral. Em países com sistema eleitoral proporcional – aquele em que se exige um número mínimo de votos e há divisão de votos entre partidos – há mais financiamento público. Na outra ponta, em países em que o sistema eleitoral é majoritário – ou seja, o candidato vitorioso é o que obtém a maioria, e os eleitores votam em pessoas –, há maior predomínio de financiamento privado. “Há predominância de financiamento público em sistemas proporcionais como instrumento de restrição do mercado eleitoral em benefício de partidos mais estabelecidos”, afirma.

A pesquisadora diz que países com sistemas proporcionais tendem a utilizar critérios para a distribuição dos recursos públicos baseados no resultado das eleições anteriores. Com isso, segundo ela, a competição pode ficar prejudicada. Tendo em conta as regras atuais para distribuição dos recursos do fundo partidário, a pesquisadora afirma que, no Brasil, é possível que um aumento no percentual do financiamento público em relação ao total (hoje é pouco mais de 20%), ou uma eventual implementação do financiamento exclusivamente público, como já foi proposto, tenha como consequência o engessamento da disputa eleitoral, o que pode levar a uma diminuição do número de partidos.

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