Nos primeiros meses da pandemia, em 2020, os Estados Unidos proibiram um dos principais fabricantes de máscaras do país de exportar seus produtos e interceptaram a compra de um carregamento de 200 mil respiradores artificiais fabricados pela China e adquiridos pela Alemanha, pagando mais pelos produtos e limitando sua oferta para outros países. Em um panorama global marcado pelo enfraquecimento das relações multilaterais, o caso ilustra estratégias adotadas por alguns governos no combate à disseminação do vírus Sars-CoV-2, caracterizadas pela busca de soluções nacionais. Resultado de pesquisas desenvolvidas por cerca de 60 especialistas, brasileiros e estrangeiros, livros editados pelo Observatório de Saúde Global e Diplomacia da Saúde do Centro de Relações Internacionais da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz) indicam, por outro lado, que desde o início a pandemia impulsionou o diálogo entre instituições científicas. O desenvolvimento e a aprovação de vacinas em um curto espaço de tempo são reflexos desse movimento.
“Globalmente, as relações entre instituições científicas foram ampliadas durante a pandemia, diferentemente da lógica dos países, cujos diálogos foram caracterizados por interferências políticas que prejudicaram a adoção de estratégias cooperativas”, observa o médico Paulo Buss, coordenador do Cris/Fiocruz e organizador das obras Diplomacia da saúde e Covid-19: Reflexões a meio caminho (Fiocruz, 2020) e Diplomacia da saúde: Respostas globais à pandemia (Fiocruz, 2021). De acordo com ele, o contexto da atual pandemia difere de momentos anteriores envolvendo o combate a doenças infecciosas, caso da poliomielite. Buss lembra que, a despeito da Guerra Fria e da tensão política entre a União Soviética e os Estados Unidos, entre as décadas de 1950 e 1990, foi possível haver cooperação e as nações se articularam para disseminar a aplicação de vacinas, aderindo a um esforço coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). “A co-operação internacional foi fundamental para o controle da enfermidade. Foi assim que a região das Américas conseguiu eliminar a poliomielite nos anos 1990.”
Estratégia local que mais tarde foi adotada como modelo de iniciativa internacional, o jurista Gustavo Santiago Torrecilha Cancio, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), menciona o protagonismo e a articulação do Brasil no combate à epidemia de HIV. Em 1996, o país aprovou a Lei Federal n° 9.313, tornando obrigatória a distribuição gratuita de medicamentos para o tratamento da Aids. Com isso, o Ministério da Saúde aumentou em sete vezes os investimentos em retrovirais, criou uma rede logística de distribuição dessas drogas, qualificou profissionais da saúde para realizar o diagnóstico da doença, desenvolveu uma campanha para conscientizar a população sobre seus riscos e reduzir o preconceito associado à enfermidade, além de melhorar a estrutura de laboratórios públicos e estabelecer protocolos de tratamento. “O programa de distribuição gratuita de retrovirais do Brasil permitiu melhorar a qualidade de vida de pacientes com Aids, desacelerou a disseminação da doença e reduziu custos hospitalares. A OMS adotou a iniciativa como modelo a ser seguido por regiões em desenvolvimento e o país passou a colaborar tecnicamente com outras nações no enfrentamento da epidemia”, relata o jurista.
Na avaliação de Buss e Cancio, em sua fase inicial a atual pandemia foi marcada por uma “corrida desenfreada” de países para obter máscaras, equipamentos de proteção individual e respiradores, “que chegou a ponto de lembrar atos de pirataria”, conforme escreveu o pesquisador da Fiocruz em um dos capítulos do livro editado em 2021. Nesse texto, Buss descreve situações em que agentes públicos de países desenvolvidos desviaram cargas de insumos durante seu trânsito em aeroportos, cobrindo a oferta daqueles a quem se destinavam os produtos – caso dos Estados Unidos e os respiradores. O pesquisador da Fiocruz explica que a corrida se estendeu até os primeiros meses de 2021, quando nações ricas adquiriram vacinas em produção, dando início a um processo de distribuição desigual dos imunizantes. “No final do ano passado, 10 economias avançadas detinham 75% de todas as doses de vacina disponíveis no mundo, enquanto algumas nações em desenvolvimento enfrentam, até hoje, dificuldades para conseguir quantidades mínimas”, relata Buss.
Embora a pesquisa e o desenvolvimento dos imunizantes tenham sido em grande parte financiados com recursos públicos, observa o médico, monopólios farmacêuticos foram autorizados a reter os direitos de propriedade intelectual. “Com isso, as vacinas estão sendo vendidas por um preço entre oito e 10 vezes mais alto do que o custo de sua produção”, calcula. Na perspectiva do pesquisador, a assimetria poderia ter sido amenizada se a Organização das Nações Unidas (ONU) estipulasse, por exemplo, a inserção de cláusulas em contratos com farmacêuticas para garantir preços acessíveis, compartilhamento de dados, conhecimentos e tecnologias e licenciamento de produtos.
Para Janina Onuki, professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (DCP-USP), o multilateralismo está em um momento de retrocesso, mais pronunciado desde 2010. Segundo ela, das principais instituições multilaterais, a ONU encontra-se presa em um modelo de atuação que fazia sentido quando a organização foi criada, em 1945, mas que hoje apresenta problemas de legitimidade. Isso decorre, por exemplo, de problemas como a ausência de reformas em seu Conselho de Segurança, que hoje restringe o poder de veto a cinco países: Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China. Já a Organização Mundial do Comércio (OMC), fundada em 1995, conquistou mais credibilidade, por envolver decisões consensuais que incluem, também, o voto de países em desenvolvimento. “No entanto, apesar de a OMC contar com mecanismos por meio dos quais os interesses comerciais de nações em desenvolvimento podem ser reivindicados de forma mais legítima, o poder das grandes potências acaba se sobressaindo”, afirma. Além disso, a dinâmica de tomada de decisão por consenso tornou os processos demorados e a organização foi perdendo legitimidade. Por outro lado, a cientista política analisa que a ascensão, há cerca de uma década, de governos com viés autoritário na Europa e América Latina desestimulou a cooperação internacional. “Essas conjunturas fizeram com que os países optassem por atuar de forma unilateral na pandemia”, argumenta.
Outro fator que colaborou com o enfraquecimento do multilateralismo foi a mudança de posição dos Estados Unidos em relação à ONU. Três anos depois de abandonar o Conselho de Direitos Humanos, em 2020, após mais de sete décadas de filiação e sendo seu principal financiador, o governo norte-americano também anunciou sua decisão de deixar a OMS. As iniciativas foram revertidas com a posse do atual presidente Joe Biden, mas suas consequências, não. “Em linha com as diretrizes dos Estados Unidos, o Brasil, que historicamente teve uma postura de adesão ao multilateralismo, cooperando especialmente com países latino-americanos, passou a adotar uma política de isolamento e uma atitude de desconfiança em relação à globalização”, informa Buss, da Fiocruz.
Em um esforço para tentar reverter as iniquidades no acesso a insumos, produtos e equipamentos, em 2021 o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a OMC se comprometeram a ofertar US$ 50 bilhões para a OMS, que seriam investidos em programas para equalizar produção, oferta e distribuição de itens hospitalares, testes e vacinas. Desse montante, no âmbito da iniciativa, o G7, grupo dos países mais industrializados – Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Reino Unido e Japão –, ficou responsável por aportar US$ 15 bilhões. Com o investimento, a ideia era imunizar 40% da população mundial ainda em 2021, mas o objetivo não foi atingido, em decorrência da concentração de estoques em determinadas nações, por um lado, e da escassez de vacinas identificadas em 92 países, por outro. “Apesar do compromisso estipulado, o G7 acabou por doar efetivamente US$ 1 bilhão à finalidade, valor muito abaixo da proposta inicial”, lamenta Buss.
Autor de análises sobre a cooperação entre nações da América Latina e do Caribe, o sociólogo Sebastian Tobar, do Cris/Fiocruz e assessor da Aliança Latino-americana de Saúde Global, também considera que os países têm respondido aos desafios impostos pela pandemia com “letargia diplomática” que contrasta com o alinhamento político registrado até a primeira década do século XXI. Resultado da tendência de enfraquecimento do multilateralismo, a Organização Pan-americana da Saúde (Opas) tem enfrentado a maior crise orçamentária desde sua criação, há 119 anos, com impactos no protagonismo que deveria exercer na articulação da resposta regional de combate à pandemia. “Diferentemente de blocos regionais como a União Europeia ou a União Africana, que têm procurado negociar vacinas e estabelecer protocolos comuns para frear a expansão da pandemia, as iniciativas de integração regional da América Latina, como o Mercado Comum do Sul [Mercosul] e o Fórum para o Progresso da América do Sul, se limitaram a emitir comunicados e a apresentar propostas isoladas, com pouco potencial de impacto significativo no panorama epidemiológico da região”, sustenta o sociólogo. Segundo a Opas, até setembro do ano passado, cerca de 80 milhões de pessoas tinham sido infectadas pelo vírus e mais de 2 milhões morreram de Covid-19 nas Américas, o que representou 38% dos casos positivos e 46% das mortes globais no período.
Comparando a situação atual com a pandemia de gripe H1N1 em 2009, Tobar lembra do trabalho desenvolvido pela União de Nações Sul-americanas (Unasul), que possibilitou a aquisição conjunta de vacinas, estabelecendo um teto de preço e definindo os grupos prioritários na campanha de imunização. “Noventa e cinco por cento dos itens que nações da região necessitam para produzir medicamentos e vacinas são feitos em países de alta renda. A falta de união enfraquece o combate à pandemia”, constata. Até o início deste ano, 14 países latino-americanos registravam cobertura vacinal de 70%, enquanto em outros o percentual equivalente não passava de 40%, sendo a situação do Haiti uma das mais precárias. Lá, menos de 1% de sua população está totalmente imunizada.
Retomada do multilateralismo
Apesar da falta de cooperação ter caracterizado as estratégias governamentais de controle da pandemia até meados de 2021, com o passar dos meses aumentou a percepção sobre a necessidade de articulação dos países para combater a disseminação do vírus. “Essa tendência tem incentivado o início da retomada das relações multilaterais”, afirma Onuki, da USP. Com o objetivo de compreender e acompanhar esse movimento, no início de 2022 ela passou a coordenar, em parceria com cientistas políticos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para mapear como a cooperação internacional será reconstruída no pós-pandemia.
Além disso, algumas iniciativas conjuntas começaram a emergir ao final de 2021, especialmente a partir do trabalho de instituições científicas. Em setembro, por exemplo, a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) aprovou um plano para ampliar a autossuficiência sanitária e fortalecer capacidades produtivas para vacinas e medicamentos na região. Como parte da iniciativa, a empresa Sinergium Biotech, da Argentina, e o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz foram selecionados para criar dois centros para o desenvolvimento e produção de vacinas de RNA mensageiro (mRNA). “A definição dos centros permitirá ampliar a capacidade produtiva da região para que, uma vez prontas, as vacinas recebam autorização da OMS para serem distribuídas em países com pouco acesso a imunizantes, por meio de um fundo operado pela Opas”, ressalta Tobar, da Fiocruz. De acordo com ele, no âmbito do Mercosul, outra iniciativa em curso é a discussão de critérios comuns para o trânsito entre fronteiras, incluindo padrões para o período necessário de quarentena e testes para entrada e saída desses países.
Tobar enfatiza que tanto o trabalho da Fiocruz quanto o do Instituto Butantan, que logo no começo da pandemia se associou ao laboratório chinês Sinovac Biotech para conceber, desenvolver e testar uma vacina para combater a disseminação do vírus, fez com que o Brasil se tornasse um dos poucos países em desenvolvimento, em todo o mundo, a produzir um grande volume de imunizantes. Até o início de março, haviam sido entregues 250 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19, a partir de matéria-prima importada. “O Brasil foi, ainda, um dos poucos países da América Latina a investir em processos de transferência tecnológica para produzir vacinas nacionais”, observa o sociólogo. Como resultado da iniciativa, em parceria com o laboratório anglo-sueco AstraZeneca, no mês de fevereiro a Fiocruz anunciou o início da produção da primeira vacina 100% nacional contra a Covid-19. Atualmente a instituição trabalha na qualificação do imunizante para ser oferecido à Covax Facility, mecanismo de solidariedade internacional, constituído pela OMS para melhorar a distribuição de vacinas.
Artigo científico
QUINTEIRO, M. E. M et al. Os direitos humanos na diplomacia da saúde: As lições trazidas da cooperação internacional no combate ao HIV/Aids para o enfrentamento à Covid-19. Revista Jurídica. v. 5, n. 62, p. 565-95. 2020.
Livros
BUSS, P. M e FONSECA, L. E. (orgs.). Diplomacia da Saúde e Covid-19: Reflexões a meio caminho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020.
BUSS, P. M. e BURGER, P. (orgs.). Diplomacia da saúde: Respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021.