Durante suas viagens pela bacia amazônica no século XIX, o naturalista britânico Henry Walter Bates (1825-1892) observou, em meio a uma infinidade de aspectos da flora e da fauna que entraram para os anais da história natural, mariposas diurnas que pairavam como beija-flores ao se alimentarem de néctar. Eram parecidas a ponto de ele várias vezes abater os insetos na intenção de capturar a ave. “Só depois de vários dias de experiência aprendi a distinguir um do outro quando em voo”, relatou em seu livro Um naturalista no rio Amazonas, publicado em 1863, sobre insetos do gênero Aellopos em Caripi, na baía de Marajó, Pará. Quase 170 anos depois de suas observações, as mesmas mariposas da família dos esfingídeos dão origem à hipótese de um novo tipo de mimetismo, de acordo com artigo publicado este mês na revista Ecology.
“Elas se parecem com animais que não fazem parte da dieta de seus predadores, que são aves insetívoras”, explica o biólogo Felipe Amorim, do Instituto de Biociências do campus de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “É diferente do mimetismo batesiano, no qual animais inofensivos se parecem com perigosos, e assim repelem potenciais predadores. Também não se encaixa no mimetismo mülleriano, no qual duas ou mais espécies diferentes se assemelham umas às outras, e assim reforçam o sinal de perigo aos predadores.” O curioso é que esses tipos de mimetismo, que dependem da existência de espécies perigosas, impalatáveis ou nocivas de alguma maneira, foram batizados em homenagem aos trabalhos realizados por naturalistas no Brasil. O primeiro por Henry Bates e o segundo pelo naturalista alemão Fritz Müller (1822-1897), que vivia em Santa Catarina.
Assim como Bates, Amorim confundiu as mariposas com beija-flores quando as conheceu durante a infância na recém-fundada Palmas, capital do Tocantins. Só depois de construir um puçá e capturar um exemplar, percebeu o que via. A semelhança vai além do comportamento peculiar. Quando sugam néctar, as línguas (ou probóscides) das mariposas-beija-flor lembram os bicos das aves que mimetizam. Elas também têm uma cauda semelhante às dos colibris, que lhes permite fazer manobras acrobáticas durante o voo, e uma listra branca no dorso como os beija-flores do gênero Lophornis.
No século XIX, quando a metamorfose de lagartas em mariposas e borboletas ainda era novidade, tudo isso causava ainda mais confusão. De acordo com Bates, “até os brancos estudados” locais achavam perfeitamente natural que as mariposas se transformassem em aves, em uma segunda metamorfose. Seria, portanto, uma única espécie. Indígenas e negros sustentariam a teoria mesmo com a mariposa na mão, apontando as “penas” de sua cauda.
O biólogo da Unesp voltou a essas mariposas cerca de 10 anos do primeiro encontro, durante a iniciação científica na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Um projeto de seu orientador, o biólogo Paulo Eugênio Oliveira, tinha como foco a polinização de plantas de Cerrado por mariposas esfingídeas, um sistema de polinização que poucas pessoas no mundo estudam. Desde essa época, 2003, Amorim tem observado as relações entre plantas, esfingídeos e beija-flores, investigando se mariposas e aves são equivalentes funcionais na polinização em áreas de Cerrado. Verificou que, tal como os beija-flores pequenos e de bicos curtos, as mariposas-beija-flor têm um espectro alimentar que inclui flores com morfologias que permitem a visita e polinização por ambos os grupos, como as flores de ingá (gênero Inga). Esse padrão foi observado por Amorim ao longo da distribuição de Aellopos no Cerrado.
É preciso muita atenção para perceber que o animal pairando em frente à flor é um inseto, e não uma ave
Fabiano Bastos / Embrapa Cerrados
A seção da revista Ecology no qual o artigo foi publicado, “The scientific naturalist” (O naturalista científico), busca trazer novos relatos e percepções sobre história natural que incitem a curiosidade e suscitem novos estudos. Foi nela que Amorim e colaboradores publicaram, em fevereiro deste ano, um relato sobre uma flor polinizada por gambás, observação até então inédita.
Ele já delineia o que deve ser feito para testar a hipótese de mimetismo entre os esfingídeos do gênero Aellopos e beija-flores: mapear as características das mariposas (como a imitação de cauda) na árvore filogenética para verificar se essas características surgiram múltiplas vezes em resposta a particularidades ecológicas; medir a frequência de batimento das asas de mariposas e beija-flores, para melhor caracterizar as semelhanças; criar larvas de Aellopos e alterar a faixa branca ou manipular outras características do animal para fazer experimentos de predação com aves insetívoras.
Se a hipótese for aceita e a ideia pegar, será mais um tipo de mimetismo descrito a partir de estudos no Brasil, depois do batesiano e do mülleriano.
Artigo científico
AMORIM, F. W. Are the new world hummingbird‐hawkmoths functional equivalents of hummingbirds? Ecology. 16 ago. 2020.