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Resenha

Do mítico ao afetivo

O jardim das hespérides. Minas e as visões do mundo natural no século XVIII | Laura de Mello e Souza | Companhia das Letras | 200 páginas | R$ 89,90

O passado colonial de Minas Gerais foi, muitas vezes, simplificado e deslocado do universo colonial da América portuguesa. Laura de Mello e Souza é esteio inaugural de uma historiografia rigorosa e investigativa a uma diversidade de fontes documentais, criadora de uma compreensão do passado mineiro, ao mesmo tempo complexo e específico, mas interligado ao mundo moderno. O jardim das hespérides apresenta as Minas sintonizadas a um universo amplo, não “serranias impenetráveis, […] guardadas por dragões”, como descreve Diogo de Vasconcelos (1843-1927), mas outra capitania, aberta a um cosmopolitismo instigante e decifrável.

“Dimensões” é a expressão escolhida pela autora para tipificar as suas compreensões das “visões do mundo natural no século XVIII” mineiro. Ela as divide em quatro vertentes: mítica, trágica, prática e afetiva. Apresentadas em capítulos distintos, vêm permeadas por uma bela cartografia que problematiza a ocupação, a colonização, as formas de pensar e de viver, os imaginários historicamente construídos. A “dimensão mítica” traz elementos de edenizar a geografia e a natureza, com o sertão a ser desbravado, e matas atraentes “para uma infinitude de pássaros”, mas difíceis para o colonizador. Este, não edeniza o clima, algumas vezes demonizado. Encanta-o uma fauna em profusão variada, os pastos férteis, os rios piscosos, um verdadeiro paraíso terreal.

Na dimensão “trágica”, as montanhas parecem configurar um terreno aberto aos desastres, sepultura de homens e de suas consciências. Espaço de potencialidades e de dramaticidades; território de climas desafiantes e de motins perigosos. “O clima é tumba da paz e berço da rebelião”, sintetizou dom Pedro de Almeida e Portugal (1688-1756), o conde de Assumar, transformando o paraíso em inferno, onde a chuva destrói as urbes e os caminhos labirínticos e torna os rios corredeiras intransponíveis. Febres, natureza bruta, “gentio feroz” e animais monstruosos espreitam a vida e vislumbram a morte. O mistério, entretanto, atrai os homens.

A “prática” é a dimensão onde a conquista do sertão evidencia a dura realidade cotidiana. Ela vai sendo conhecida, nomeada e vivida como experiência transformadora, onde há protagonismos de indígenas, quilombolas e homens “práticos”. Universos distintos vão sendo conquistados e devassados, indicando lugares virgens a se desbravar. Esse é o sentido da prática colonizadora: dizimar os “bravios”, civilizar a “barbárie”. As comarcas de Sabará, Serro do Frio, Rio das Mortes e Vila Rica demarcam uma Minas, identificada em mapa de José Joaquim da Rocha (1737-1807), de povos comuns “que trabalhavam a terra, iam à missa, cumpriam funções de vereança” e ordenavam a vida e o meio natural. A natureza se domina com práticas de lavrar a terra, em uma faina agrícola produtora de milho, feijão, arroz, mandioca e aguardente.

A terra agora tem seus cientistas e seus homens de letras a cantar arcádias e a prever uma civilização. Na “dimensão afetiva”, apresenta-se ao leitor uma Minas de “floração intelectual e artística, sem par na América portuguesa”. Os núcleos urbanos, mais bem ordenados, contradizem a queda da produção aurífera e reafirmam a diversidade da economia colonial mineira. Filhos da elite da terra se formam em Coimbra e veem com olhos científicos as paisagens naturais e humanas, riquíssimas e distintas da Europa. A terra canta-se como pátria: “pátrios rios” e “riquíssimos tesouros” pátrios. “Destes penhascos fez a natureza o berço em que nasci”, verseja Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), que Laura de Mello e Souza (tão bem) biografou. O poeta, como tantos outros, subordina a natureza à ação humana, mas não deixa de se impressionar com ela e, como em Alvarenga Peixoto (1742-1792), natural do Rio, mas radicado nas Minas, a vê como “bárbara, mas abençoada”.

Há um equilíbrio no tratamento dado às quatro dimensões, distinguindo-as de forma clara e, com a mesma inteligibilidade, interligando-as, traçando com elas as várias redes de um território em ocupação. A autora é professora de ofício e gosto. Como tal, é didática e criativa. Não abdica, entretanto, da erudição e do gosto pela verticalidade da análise, expondo-os em narrativa clara e elegante. Atenta ao universo local, Laura de Mello e Souza esgarça as fronteiras do regional, as amplia para um universo mais dilatado, manuseando com esmero as escalas de tempo e espaço.

José Newton Coelho Meneses é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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