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METEOROLOGIA

Do pó à tempestade

Projeto com aeronave alemã vai investigar como nanopartículas produzem temporais na Amazônia

Aerossóis ultrafinos contribuem para a formação das tempestades mais violentas na Amazônia

Léo Ramos Chaves

A descoberta surpreendente de que as nuvens de tempestade na Amazônia se formam de uma maneira diferente do que ocorre em outras partes do globo virou de ponta-cabeça algumas das noções básicas da meteorologia. À primeira vista, as nuvens sobre a maior floresta equatorial do mundo parecem ser como as de qualquer outro lugar: um enxame de gotas-d’água e cristais de gelo suspensos no ar. As gotas surgem e crescem quando o vapor-d’água na atmosfera se condensa na superfície de partículas de fumaça e poeira microscópica carregadas pelos ventos, os chamados aerossóis. Como as fontes de aerossol estão normalmente no solo, seria esperado que a concentração dessas partículas diminuísse com a altura. Porém, entre 2014 e 2015, duas grandes campanhas de observação científica com a participação de brasileiros e estrangeiros, as missões GOAmazon e Acridicon-Chuva, registaram o contrário.

Na Amazônia, a maior concentração de aerossóis não está próxima do solo, mas acima do topo das maiores nuvens, a cerca de 15 quilômetros (km) de altitude, segundo estudos produzidos pelos participantes dos experimentos. Os trabalhos também indicaram que a maior parte dessas partículas suspensas acima das nuvens tem um diâmetro inferior a 50 nanômetros. Em geral, partículas desse tamanho seriam consideradas pequenas demais para contribuir à formação das nuvens de chuva. Mas, novamente, a Amazônia é uma exceção à regra. Em um artigo publicado em janeiro de 2018 na revista Science, uma equipe de pesquisadores de instituições brasileiras, alemãs e norte-americanas das duas missões afirmou que esses aerossóis ultrafinos são um dos ingredientes fundamentais da formação das tempestades mais violentas da região.

Agora, para entender melhor esse achado, os meteorologistas Luiz Augusto Machado, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que coordenou a missão Acridicon-Chuva, e Johannes Lelieveld, do Instituto Max Planck de Química (MPIC), na Alemanha, iniciaram os preparativos do projeto Cafe, sigla em inglês para Experimento de Campo de Química da Atmosfera. “A nova missão está sendo desenhada com o objetivo de estudar esse material particulado ultrafino que descobrimos na alta atmosfera”, diz Machado. “Queremos saber quais são as fontes desse material, como ele é armazenado na alta atmosfera e trazido para baixo.”

Luiz Augusto Machado
     

No começo deste ano, os pesquisadores do Cafe vão definir, entre outros detalhes, como serão os voos sobre a Amazônia da aeronave de pesquisa alemã Halo, previstos para ocorrer em 2020. O Halo é um avião a jato executivo modificado para pesquisas científicas, capaz de alcançar até 16 km de altura, cerca de 6 km acima da altitude de cruzeiro dos voos comerciais. Não será a primeira vez que a aeronave será usada para estudar a atmosfera da floresta tropical. Entre agosto e setembro de 2014, durante o projeto Acridicon-Chuva, o Halo realizou 14 voos. A partir de Manaus, o jato ia e voltava centenas de quilômetros, tanto à noroeste, onde ficam as regiões de floresta mais bem preservadas e o ar é relativamente livre da interferência da poluição, quanto ao sul, até o trecho mais poluído do “arco do desmatamento”, onde se concentram as queimadas que convertem a floresta em pasto ou plantações.

Além de instrumentos meteorológicos em terra, o GOAmazon contou, em suas missões, com equipamentos de análise da química atmosférica instalados a bordo de outro jato, um Gulfstream-1, do Laboratório do Noroeste do Pacífico (PNNL), do governo norte-americano, que era capaz de atingir até 7 km de altitude. Machado explica que o processo de planejamento e a aprovação de missões de coleta de dados com aeronaves estrangeiras são complexos e podem levar mais de um ano para serem aprovados, pois dependem do sinal verde dos conselhos de segurança do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Força Aérea Brasileira. “Voaremos a grandes alturas e em volta das nuvens de convecção profunda”, diz Machado.

Nuvens de convecção são formadas pelo movimento vertical das massas de ar em função de variações da temperatura. As profundas são aquelas nuvens bem grandes, parecidas com torres de algodão, com 10 a 15 km de largura e até 15 km de altura denominadas Cumulus Nimbus. Esse é o tipo de formação predominante de nuvens de tempestades em toda a Amazônia durante o final da estação “seca”, entre setembro e novembro, quando as chuvas acontecem com menos frequência, embora sejam mais intensas. Essas nuvens, de forma isolada, são também mais comuns na Região Metropolitana de Manaus e nas áreas com maior número de queimadas. Na estação chuvosa e nas regiões de floresta mais bem preservadas e isoladas da poluição, esse tipo de nuvem é menos intenso e profundo. Na floresta predominam nuvens, mais rasas, fonte de uma chuva mais suave e constante.

“O piloto do Halo faz o que todos os comandantes de avião sabem que é proibido: aproximar-se de uma nuvem de convecção profunda”, comenta a meteorologista Rachel Albrecht, da Universidade de São Paulo (USP), que colabora com Machado desde o início dos projetos GOAmazon e Acridicon-Chuva. Os perigos são muitos: a turbulência das correntes de ar, o gelo que cristaliza sobre a fuselagem e a deixa mais pesada, as pedras de granizo batendo nas janelas, além das descargas elétricas dos raios. Segundo a pesquisadora, ainda falta muito para se entender o processo de formação de gelo e dos raios nas nuvens convectivas. “É a partir do choque entre as partículas de gelo que se formam os raios dentro de uma nuvem”, explica Rachel.

Os cientistas querem descobrir como o material particulado é armazenado na alta atmosfera e transportado para baixo

Os efeitos da poluição de Manaus na formação das nuvens e da chuva sobre regiões de floresta vizinhas à metrópole amazônica foram quantificados na tese de doutorado do meteorologista Micael Cecchini, defendida em dezembro de 2017, sob orientação de Machado. Premiada pela Capes como a melhor tese da área de geociências daquele ano, o trabalho usou dados dos projetos GOAmazon e do Acridicon-Chuva para colher evidências de como a alta concentração de aerossóis provocada pela poluição da capital amazonense aumenta o número, mas diminui o tamanho das gotas de água das nuvens rasas durante a estação chuvosa. “Dobrar o nível de poluição no ar aumenta a concentração de gotas de uma nuvem em 84%, ao mesmo tempo que diminui o diâmetro médio das gotas em 25%”, diz Cecchini.

Os projetos Acridicon-Chuva e GOAmazon confirmaram que, na Amazônia, onde os rios e a transpiração das plantas fornecem vapor-d’água em abundância, o tipo de nuvem e a chuva de uma época ou região dependem principalmente do número de partículas de aerossol suspensas na atmosfera. Quanto maior a concentração de aerossóis, menor a quantidade de vapor-d’água que se condensa sobre cada uma das partículas suspensas no ar. A abundância de aerossóis resulta em nuvens com número elevado de gotas muito pequenas. Gotas menores têm menos chance de se chocarem e se fundirem para formar gotas maiores. Gotas que já nascem relativamente grandes tendem a crescer rapidamente e cair como chuva no chão.

Em áreas de floresta limpa, onde há pouco aerossol, formam-se nuvens mais rasas que rapidamente se dissolvem na forma de uma chuva suave. “Essas gotas maiores tornam a nuvem mais transparente e criam arco-íris”, conta o geoquímico Meinrat Andreae, do MPIC, que participou da missão Acridicon-Chuva. Já nas regiões de floresta afetadas pela poluição urbana de Manaus e pela fumaça das queimadas do desmatamento, a concentração de aerossol é milhares de vezes superior à das regiões de floresta pristina. Esse cenário dá origem a um número imenso de pequenas gotas-d’água capazes de permanecer por muito tempo suspensas no ar. Muitas dessas gotículas são carregadas por correntes de ar ascendente a grandes alturas, onde se transformam em cristais de gelo antes de serem transportadas de volta por correntes descendentes. “Essas nuvens normalmente não produzem chuva. Somente quando crescem o suficiente até alcançarem mais de 12 km de espessura geram uma chuva violenta, com granizo e relâmpagos.”

Ciclo biogeoquímico
A missão Cafe faz parte de um projeto de pesquisa maior, financiado pela FAPESP e coordenado por Paulo Artaxo, físico do Instituto de Física da USP especialista na formação dos aerossóis amazônicos. Ao longo de mais de três décadas de pesquisas, Artaxo e seus colaboradores nacionais e internacionais descobriram como uma série de compostos orgânicos voláteis emitidos naturalmente pela floresta influenciam a formação das nuvens e das chuvas da região. “No Cafe, investigaremos a convecção de ar dentro das nuvens que leva os compostos orgânicos voláteis a grandes alturas e os mecanismos que os transformam em nanopartículas”, diz Artaxo.

Em janeiro de 2018, um artigo dos brasileiros e seus parceiros internacionais publicado na revista Atmospheric Chemistry and Physics propôs como funcionaria todo o ciclo biogeoquímico ligando os gases da floresta à formação das nuvens e do aerossol ultrafino. “Mostramos como os aerossóis ultrafinos são formados a partir dos gases trazidos da alta atmosfera pelas nuvens convectivas”, diz Andreae, primeiro autor do estudo.

O ciclo proposto pelos pesquisadores começaria quando as correntes de ar ascendentes das nuvens convectivas levariam para cima os compostos orgânicos voláteis da floresta, como os gases terpenos e isopreno. Durante sua viagem até o topo das nuvens, a cerca de 15 km, esses gases sofreriam alterações físicas e reações químicas e se transformariam nos aerossóis ultrafinos observados pelos instrumentos do Halo. Os aerossóis ultrafinos se concentrariam na alta atmosfera até que uma corrente de ar descendente, criada por outra nuvem convectiva, os arrastasse para baixo.

Esse cenário explicaria a observação publicada pelos mesmos pesquisadores em outubro de 2016, na revista Nature, de que chuvas fortes aumentam a concentração dos aerossóis ultrafinos na superfície. Os aerossóis ultrafinos sofreriam ainda mais modificações físico-químicas em sua viagem em direção à superfície, aumentando sua capacidade de condensar água. Perto do solo, eles se combinariam com os compostos orgânicos voláteis emitidos pela floresta, fonte de aerossóis maiores a baixas altitudes, e dariam origem à formação de novas nuvens de chuva. Seria um ciclo que se alimenta perenemente dos gases.

Projetos
1. Processos de nuvens associados aos principais sistemas precipitantes no Brasil: Uma contribuição à modelagem da escala de nuvens e ao GPM (medida global de precipitação) (nº 09/15235-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Luiz Augusto Toledo Machado (Inpe); Investimento R$ 2.634.280,59.
2. GOAmazon: Interação da pluma urbana de Manaus com emissões biogênicas da Floresta Amazônica (nº 13/05014-0); Modalidade Projeto Temático; Programa Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Pesquisador responsável Paulo Artaxo (IF-USP); Investimento R$ 4.257.655,73.

Artigos científicos
FAN, J. et al. Substantial convection and precipitation enhancements by ultrafine aerosol particles. Science. 26 jan. 2018.
ANDREAE, M.O. et al. Aerosol characteristics and particle production in the upper troposphere over the Amazon Basin. Atmospheric Chemistry and Physics. 25 jan. 2018.

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