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José Jobson de Andrade Arruda

Documentos abrem novas oportunidades

Material poderá também ser colocado na Internet

Preocupado com a aproximação entre pesquisadores portugueses e brasileiros, o historiador José Jobson cita uma das grandes vantagens do Projeto Resgate: qualquer pessoa tem agora à mão o que antes exigia longas temporadas no Arquivo Ultramarino de Lisboa.

As previsões feitas quando o resgate da documentação paulista começou, em agosto de 1998, eram de que seriam encontrados cerca de 6.500 documentos referentes à Capitania de São Paulo, dos quais mais ou menos 1.500 não estavam ainda inventariados. Esses números se confirmaram?
Sim, eles se confirmaram. Tínhamos antes pouco mais de 5.100 documentos, que faziam parte do catálogo organizado pelo historiador Mendes Gouveia, em 1954. Agora, foram encontradas cerca de 30 latas, que continham um pouco mais de 1.500 documentos. Em termos de números, está confirmado.
Como os catálogos serão publicados?
Em dois volumes, mais um de índice. O primeiro volume é o catálogo de Mendes Gouveia, reavaliado, recondensado e retomado com procedimentos técnicos e políticas atuais. Quem conduziu esse processo foi a professora Heloísa Bellotto. O segundo volume é o da documentação nova. Os dois primeiros volumes têm cerca de 400 páginas cada um. O terceiro, cerca de 200.

E quanto à documentação referente à parte mais meridional do país, subordinada à Capitania de São Paulo? Nenhum dos documentos relativos a essa área estava catalogado.
Este material já está pronto. O trabalho esteve ligado ao projeto de São Paulo, mas foi realizado por pesquisadores de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Além dos documentos que esperávamos encontrar, foram descobertas mais ou menos 145 latas, com mais de 5 mil documentos, referentes a questões de fronteira, à Colônia do Sacramento e a contratos referentes ao sal.

Essa documentação nova trouxe revelações também novas?
Essa é uma preocupação que todas as pessoas têm. Querem saber o que há de novo. O que nós sabemos é o seguinte: essa documentação é uma documentação ampla. Ela fala da vida dos homens que viveram durante esse período aqui na colônia, na Capitania de São Paulo. Então, é claro que somente um trabalho em cima dessa documentação poderá dizer se há algo novo.

E o que virá agora?
Há o encontro neste mês de setembro: o congresso A História que Nasce do Projeto Resgate e o colóquio Agenda da História para o Milênio. A reunião na FAPESP, no dia 25, é apenas a abertura oficial do evento. Para a tarde, no Departamento de História da Universidade de São Paulo, está marcado um encontro do qual participarão cerca de 30 pesquisadores portugueses e 60 brasileiros. Alguns dos maiores pesquisadores portugueses participarão desse encontro. São dois os objetivos desse encontro: consolidar o Projeto Resgate, no que é, de certa maneira, uma festa de encerramento, e pensar na possibilidade de abrir um Projeto Resgate 2, para obter documentos sobre o Brasil em outros arquivos portugueses e de vários países europeus.

Mais alguma coisa?
Sim, vamos aproveitar a oportunidade e colocar frente a frente os historiadores brasileiros e portugueses. Juntos, eles podem pensar quais serão as diretrizes de nossa cooperação na área da história, em seis áreas principais. Temos as áreas da cultura e da religiosidade; os trabalhos relacionados com o município, o poder local e a globalização; a história econômica; os movimentos sociais; a população, família e migrações; e a relacionada com a historiografia e a memória social.

O que resultará disso?
Cada bloco será composto por 50% de historiadores portugueses e 50% de brasileiros. Cada pessoa vai elaborar um texto individual e todos, em conjunto, farão um texto síntese. Esses textos serão publicados num livro, que deverá estar pronto até o fim do ano. Nele, estará o que cada pesquisador pensa sobre como deve ser a cooperação.

Um objetivo amplo, não é?
Sim, muito amplo. Fazer melhor seria difícil. Pense, não é fácil trazer para um lugar no Brasil e pôr para discutir 30 historiadores portugueses de uma vez só. Não são só dois, três, cinco ou dez, são 30. Mais os brasileiros. A lista dessas pessoas mostra o que há de melhor nas historiografias brasileira e portuguesa. São essas as pessoas que vão pensar e escolher nossas diretrizes. Esta será uma espécie de política pública para a área de história na cooperação entre Brasil e Portugal nos próximos 20 ou 30 anos.

Qual será, então, o impacto do Projeto Resgate para o estudo da história do Brasil?
Acho que isso está mais ou menos consignado no título do congresso, A História que Nasce do Projeto Resgate. Creio, verdadeiramente, que há uma história nascendo do Projeto Resgate. Ela vai nascer porque a massa de documentos que está chegando e ficando à disposição dos pesquisadores é tão grande que, tenho certeza, grande parte da história terá de ser reescrita.

Haverá uma democratização?
Sim, acho que sobretudo é isso. Passamos a ter a informação democratizada. Os documentos vão estar reunidos em CDs, que qualquer pessoa pode comprar. Além disso, pretendemos, mais tarde, colocar todo esse material na Internet. Já há um projeto relativo a isso na FAPESP. Aí será a democratização absoluta dessa documentação.

Há dois anos, quando fizemos uma reportagem sobre o lançamento do Projeto Resgate de Documentação Histórica Referente à Capitania de São Paulo, surgiu o dado de que o Arquivo Ultramarino era muito mais visitado por pesquisadores brasileiros do que por portugueses. Isso continua a ser verdade?
Bem, foi feita uma estatística no Arquivo Ultramarino. Num período de quatro anos, ele foi visitado por cerca de 2.200 pesquisadores. Os brasileiros eram maioria absoluta. Representavam aproximadamente 1. 700 do total de 2.200.

Quem bancava isso?
Majoritariamente, recursos públicos. Foram bolsas pagas pela Capes, pelo CNPq, pela FAPESP e por outras fundações que permitiram aos pesquisadores ir ao Arquivo Ultramarino nesse período. É um custo que não teremos mais. Esse período se esgotou. O Arquivo e os pesquisadores portugueses terão como um presente, dado por nós, a documentação toda catalogada e microfilmada. Mas existe um contra-resgate.

E qual é esse contra-resgate?
No Brasil, há documentos fundamentais para a história de Portugal. Eles dizem respeito, principalmente, ao tempo em que a Corte Portuguesa se instalou no Brasil, com dom João VI. Eles ficaram, por exemplo, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Os portugueses nem tinham noção de quantos documentos eram, nem de quais os interessavam. Então, ao fazermos o resgate de lá para cá, também fizemos um resgate da documentação que está no Brasil e que interessava aos portugueses. Esses documentos vão permanecer aqui. Os portugueses estão fazendo agora o levantamento no Rio de Janeiro. O total chega a perto de 100 mil documentos. Os portugueses ainda não começaram o contra-resgate em Pernambuco, na Bahia, nas outras capitanias. Ora, nós estamos trazendo de Portugal 250 mil documentos. Talvez, no final, o total chegue a 300 mil. Acho que o número de documentos que os pesquisadores portugueses vão microfilmar no Brasil, transformar em CDs e levar para Portugal será equivalente ao dos que eles nos irão repassar.

Quais são as perspectivas de um trabalho conjunto entre historiadores brasileiros e portugueses, inclusive a partir de toda essa documentação que vem sendo resgatada?
Bem, durante muito tempo houve um distanciamento. Brasileiros e portugueses se mostraram arredios, uns com relação aos outros. São poucos os livros de historiadores brasileiros que se encontram em Portugal. De forma semelhante, são poucos os livros de historiadores portugueses encontrados no Brasil. Há problemas editoriais sérios. Os livros portugueses são muito caros no Brasil. Os brasileiros não são distribuídos lá. Além disso, também há um problema de língua. A sintaxe do português falado e escrito no Brasil não é muito agradável aos portugueses. A forma como os portugueses escrevem, por outro lado, não é muito agradável para o leitor brasileiro.

Há exceções?
Sim. Como historiador, eu pertencia à cadeira de História Moderna e Contemporânea, na Universidade de São Paulo. O catedrático era o professor Eduardo de Oliveira França. Ele achava que, para se fazer bem a história do Brasil, era necessário ligá-la, entrelaçá-la, à história de Portugal e da Europa. Em sua opinião, era difícil fazer a história do Brasil, sobretudo nos tempos coloniais, nos séculos iniciais da colonização, sem enlaçar a história do Brasil com a da Europa. Para ele, a idéia de que alguém pudesse fazer só história do Brasil, sem conhecer a história de Portugal, era uma idéia estúpida. E efetivamente não é?

Houve algum resultado concreto desse trabalho?
O próprio professor França começou a fazer uma tese sobre a monarquia portuguesa. Trata-se de um estudo considerado até hoje como -de alto nível em Portugal. É reconhecido, em Portugal, como um excelente trabalho sobre o Estado monárquico português e sobre os fundamentos do Estado português. Ele fez outro trabalho, sobre a restauração portuguesa, que até hoje é considerado um clássico. Além disso, como na época os catedráticos tinham muita força, ele empurrava seus assistentes para prepararem teses sobre os assuntos nos quais tinha mais interesse.

Há exemplos?
Os professores que fizeram parte dessa cadeira seguiam à risca o menu do mestre França. O professor Fernando Antônio Navais, por exemplo, fez um estudo, chamado Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial, um estudo do sistema colonial e do império português, sobretudo nas suas relações com o Brasil, que é considerado um clássico. Outro historiador conhecido, Carlos Guilherme Mota, também estudou as relações entre Brasil e Portugal, especialmente pelas atitudes de inovação e as questões relacionadas com a Independência e a Revolução Pernambucana de 1817.

E o senhor?
Bom, também segui esse caminho. Tenho um estudo sobre o império luso-brasileiro que é uma quantificação das relações comerciais no contexto do império português. Esse trabalho, efetivamente, me levou a estudar não só Portugal, mas, sobretudo, a Inglaterra. No contexto da formação da sociedade, do capitalismo, as relações envolvendo Brasil, Portugal e Inglaterra se tornaram privilegiadíssimas num momento essencial da vida brasileira, aquele que antecede a Independência.

Isso continuou?
Não. Depois da aposentadoria do professor França, percebemos que as pessoas estavam gradativamente abandonando esse campo. Era, então, necessário formar uma nova geração de pesquisadores interessados em Portugal. Foi assim que tomei uma série de iniciativas junto aos historiadores portugueses. Eles vieram ao Brasil, deram aulas, interessaram os alunos na história de Portugal, e vice-versa. Ultimamente, essa aproximação entre Portugal e Brasil cresceu muito. Cresceu a tal ponto que agora já é possível trabalharmos em conjunto.

E as publicações?
Ultimamente, os livros dos historiadores portugueses começaram a ser publicados no Brasil. A Editora da Universidade do Sagrado Coração de Bauru, por exemplo, publicou o livro História de Portugal. Trata-se de uma história de Portugal escrita por vários professores. É uma obra coletiva. Os principais historiadores portugueses fizeram sínteses de cada pedaço da história de Portugal, dentro de sua especialidade. O importante é que esses historiadores aceitaram ser “traduzidos” para o português falado no Brasil. Então, o livro foi publicado com grafia usada no Brasil, não na de Portugal.

O resultado ficou bom?
Sim, o pessoal que fez a adaptação é muito competente. O resultado é um texto acessível para um público de estudantes brasileiros. Esse é um caso. Outros certamente virão. Eu mesmo acabo de escrever um livro em conjunto com o historiador português José Penha Arriga. Ele se chama Historiografia Luso-Brasileira Contemporânea.

Na década de 1980, o senhor participou de uma espécie de projeto-piloto do Projeto Resgate, não foi?
Se formos repassar essa história pregressa, vamos encontrar muitas pessoas que tiveram consciência da importância dessa documentação. Mas o movimento mais sistemático começou há cerca de dez anos, quando eu era diretor de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas do CNPq. A propósito de comemorar o centenário de acontecimentos como a Proclamação da República e a Abolição da Escravatura, foram organizados vários eventos. Houve congressos, publicações de livros e documentos. Um acontecimento especial, relativo à Inconfidência Mineira, foi a publicação da documentação do Arquivo Ultramarino relativa a Minas Gerais. Foram abertas cerca de 190 latas. O CNPq, na oportunidade, mobilizou recursos para que um pesquisador, o professor Caio Boschi, fosse a Portugal.

E depois?
Em 1994, o Ministério da Cultura encarregou Esther Bertoletti de fazer o trabalho em escala nacional. A Esther assumiu o bastão e distribuiu estímulos para que o trabalho fosse realizado nacionalmente. Em 1997 e 1998, achei que estava na hora de fazer o trabalho também em São Paulo.

José Jobson de Andrade Arruda é o responsável pela coordenação do Projeto Resgate dos documentos da Capitania de São Paulo formou-se em História pela Universidade de São Paulo (USP) em 1966. Nesta instituição fez mestrado, doutorado e livre docência. É professor titular de História Moderna. Ocupa também o cargo de coordenador da cátedra Jaime Cortesão, do Instituto de Estudos Avançados, e é membro do Conselho Superior da FAPESP. Foi chefe do Departamento de História e diretor do Instituto da Pré-História da USP, além de diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia.

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