As duas principais formas de demência – a doença de Alzheimer e a demência vascular – não atingem brancos e negros no Brasil de maneira uniforme. Em ambos os grupos, o Alzheimer é a enfermidade que com mais frequência causa declínio cognitivo com o avanço da idade. Ele, no entanto, afeta uma proporção maior de brancos do que de negros. Já a demência vascular, o segundo tipo mais comum, atinge uma porcentagem maior de negros do que de brancos, segundo estudo liderado pela geriatra Claudia Suemoto, da Universidade de São Paulo (USP).
No trabalho, publicado em julho na revista JAMA Open Network, Suemoto e colaboradores analisaram amostras de 16 áreas do cérebro e de outras estruturas do encéfalo de 1.815 pessoas com média de idade de 74 anos que morreram na cidade de São Paulo e doaram o material para o Biobanco para Estudos do Envelhecimento da USP, um dos maiores acervos de cérebro do mundo. Dois terços dos doadores eram brancos e um terço negro, grupo que incluía pretos e pardos. Ao examinar as amostras ao microscópio, os pesquisadores notaram que 28% dos brancos apresentavam placas neuríticas no tecido cerebral, lesões iniciais típicas da doença de Alzheimer, encontradas em 21% dos negros. Já os danos característicos da demência vascular, provocada por bloqueio ou rompimento de pequenos vasos sanguíneos, foram observados em 30% dos negros e 22% dos brancos.
Dos 1.815 casos avaliados, 747 concentravam lesões em quantidades compatíveis com o diagnóstico de demência. As mais comuns foram o Alzheimer (37% dos casos), a demência vascular (26%) e uma combinação das duas (12%). Entre os brancos com demência, 39% tinham Alzheimer. Essa fração era de 33% nos negros. Já o problema de origem vascular afetava 24% dos brancos e 32% dos negros. Não houve diferença na frequência de outros tipos de demência entre os dois grupos.
“Não sabemos se fatores genéticos podem contribuir para explicar a diferença nas taxas de prevalência dessas formas de demência, uma vez que não fizemos testes genéticos”, conta a geriatra da USP. “O mais plausível é que negros tenham mais demência vascular porque têm menos acesso a serviços de saúde e controle inadequado de fatores de risco cardiovascular”, afirma. Os negros eram mais jovens e com menos anos de educação formal que os brancos. Além disso, uma proporção maior de negros fumava, consumia níveis elevados de bebidas alcoólicas e tinha hipertensão.
O que Suemoto e colaboradores viram agora em uma amostra da população brasileira só havia sido observado antes nos Estados Unidos. Em um estudo publicado em 1989 no Journal of the National Medical Association, a patologista Suzanne de La Monte, da Escola Médica Harvard, e os colegas Grover Hutchins (1933-2010) e G. William Moore, da Universidade Johns Hopkins, realizaram a autopsia em 144 pessoas com demência e verificaram que a doença de Alzheimer era 2,6 vezes mais comum em brancos do que em negros. Com a demência vascular, ocorria o oposto.
Mais recentemente, a epidemiologista Teresa Filshtein, da Universidade da Califórnia (UC) em São Francisco, e a patologista Brittany Dugger, da UC em Davis, avaliaram 435 casos de demência em três grupos étnicos: negros, hispânicos e brancos não hispânicos. De acordo com os resultados, publicados em 2019 no Journal of Alzheimer’s Disease, a frequência de demência vascular era mais elevada em negros (40% tinham o problema) do que em brancos (28%) e ainda mais alta entre os hispânicos (54%) – mais estudos são necessários para explicar essa elevada ocorrência de demência vascular no grupo hispânico.
Além de corroborar dados da população norte-americana, o estudo brasileiro é importante por pelo menos três motivos. O primeiro é que, com o aumento da população e da expectativa de vida global, se espera uma elevação importante dos casos de demência, principalmente nos países de média e baixa renda, onde a prevenção e o acesso a diagnóstico e tratamento são mais limitados.
Uma projeção publicada em 2022 na The Lancet Public Health calcula que o total de pessoas com demência no mundo deve aumentar 2,6 vezes até 2050, passando dos atuais 57 milhões para 153 milhões. No Brasil, estimativas do grupo da psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicadas em 2023 no The Journals of Gerontology – Series A, sugerem um aumento de casos proporcionalmente maior, de 3,3 vezes na próxima década e meia, subindo de 1,8 milhão para 5,5 milhões. Mais recentemente, o “Relatório nacional sobre a demência”, lançado em setembro, reviu esses números para cima. Resultado de uma parceria da Unifesp com o Ministério da Saúde e do consenso de especialistas da área, o documento indica que o total de casos teria sido de 2,5 milhões de casos em 2019 e chegaria a 8,7 milhões em 2050.
O segundo motivo é que a demência vascular parece ser mais comum no Brasil do que em outros países. Em um estudo publicado em 2017 na revista PLOS Medicine, Suemoto e colaboradores examinaram amostras de tecido cerebral de 1.092 indivíduos e constataram que, entre os casos de demência, pelo menos 35% eram de origem vascular. A média em outros países é de 20%.
A terceira razão é que, de acordo com alguns especialistas, os casos de demência vascular podem ser em grande parte prevenidos, até mais do que os de outras formas do problema – que incluem a demência frontotemporal, a demência com corpos de Lewy e a demência da doença de Parkinson (ver Pesquisa FAPESP nº 329). Para isso, é necessário o controle adequado de problemas que afetam a saúde dos vasos sanguíneos, como diabetes, obesidade, colesterol elevado, pressão arterial alta, entre outros.
Estar com a saúde cardiovascular em dia contribui para retardar o declínio cognitivo – a redução da memória, da capacidade de concentração e da agilidade mental que está exacerbada na demência. Em um estudo coordenado por Suemoto, os pesquisadores avaliaram quatro hábitos de saúde (dieta, atividade física, tabagismo e qualidade do sono) e quatro indicadores de saúde (índice de massa corporal, níveis de colesterol, níveis de glicose e pressão sanguínea) de 11.390 brasileiros. Os participantes integravam o Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), realizado em São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador. Eles foram acompanhados por oito anos e depois agrupados por um escore de saúde cardiovascular. Aqueles que obtiveram pontuação mais alta (entre 80 e 100) nesse escore apresentaram uma redução 42% mais lenta na memória, na fluência verbal e na capacidade de raciocínio do que os de escore mais baixo (entre 0 e 49 pontos), em sua maioria pretos e pardos (55%). Segundo os resultados, publicados em novembro de 2023 no European Journal of Neurology, o efeito benéfico se deveu principalmente ao controle dos níveis de açúcar (glicose) no sangue e da pressão arterial.
Controlar a hipertensão e o diabetes não são os dois únicos fatores que podem proteger contra a demência. Em seu relatório mais recente, publicado em agosto na revista The Lancet, a Comissão de Prevenção, Intervenção e Cuidado em Demência do periódico, da qual participa Ferri, da Unifesp, elencou outros 12 fatores de risco que podem ser modificados e, se fossem totalmente controlados, evitariam 45% dos casos de demência (ver infográfico abaixo). Em sua terceira edição, o documento, elaborado sob a coordenação da psiquiatra Gill Livingston, da University College London, no Reino Unido, trouxe duas novidades em relação aos anteriores: a redução da acuidade visual e o colesterol elevado. Os 14 fatores de risco identificados podem incidir em diferentes fases da vida, da infância à idade avançada.