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Resenhas

Dois retornos e uma linha de fuga

O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens Renato Sztutman Edusp / FAPESP 576 páginas R$ 85,00

Se os antigos Tupi do começo da conquista fazem parte do imaginário brasileiro, a antropologia política de Pierre Clastres e a obra de Hélène Clastres sobre os profetismos Tupi-guarani são também parte daquilo que institui ao menos uma área dos estudos antropológicos. O Profeta e o principal, de Renato Sztutman, vale-se desses dois repertórios (“dois retornos”) para refletir a respeito dos limites da antropologia política, iluminando aspectos como: a gênese do poder entre os ameríndios; os sentidos da chefia indígena; o surgimento (ou não) do Estado; e a dimensão política dentro do domínio da religião.

O livro tem seu mote em uma interrogação de Pierre Clastres que parece contradizer uma de suas teses centrais, aquela que propõe ser “a sociedade primitiva” guiada por uma filosofia política que carrega horror à centralização, agenciada pela coerção e promotora de um apagamento das diferenças. A questão que se põe Clastres, a partir das fontes dos séculos XVI e XVII, é a da possibilidade de um poder político coercivo surgir em uma “sociedade primitiva”, o que configuraria um paradoxo.

Hélène Clastres, por sua vez, transforma o paradoxo em contradição, por entender o sistema dos Tupi e Guarani antigos clivado pela distinção entre o político e o religioso, instâncias de natureza diversa e incompatível. O surgimento de um poder político a partir do profetismo só poderia redundar em um enviesamento, uma vez que este deveria se constituir como movimento de pura negação política (do coletivo, da territorialização, do colonizador). Assim, este movimento só poderia se dar como resposta ao sistema colonial opressor.

Para reposicionar estes questionamentos, Sztutman irá se valer de diferentes materiais de pesquisa – fontes históricas, historiografias, etnografias das sociedades ameríndias atuais e antigas e trabalhos arqueológicos –, produzindo um diálogo entre tempos e espaços também distintos, que abarcam povos indígenas de diferentes filiações linguísticas, localizações geográficas e presença na história. O livro atentará para os processos de subjetivação implicados nas transformações das máquinas sociais indígenas, demarcando-se de uma concepção da dimensão política entendida como consequência da relação com o colonizador, cujos efeitos devastadores seriam resultado de um “mau encontro”, na acepção de Pierre Clastres apropriada de La Boétie. O desafio posto é o de trazer as ideologias nativas para o plano dos conceitos, de uma reflexão que possa ser apreendida enquanto filosofia, recuperando a agência indígena no processo histórico.

A conceptualização nativa encontra-se no livro articulada a teorias e conceitos da antropologia e da filosofia. O autor incorpora as noções de Deleuze e Guattari de “segmentaridade flexível” e “linhas de fuga”, ambas meios que quebram as tendências centrípetas pelas quais se subjugam (sob um centro único, o Estado) as diferenças presentes nas distintas linhas de força da política. O Estado é, por esse meio, definido como um agregado de tendências maleáveis, passíveis de composição e recomposição. A concepção de “ação política” é portanto entendida pelo seu caráter processual. O que conta é o embate de forças e o olhar tanto para aquilo que organiza e constitui coletivos humanos e centros de decisão como para o que os desconstrói.

O autor alia a estas duas noções “o devir” trabalhado por Eduardo Viveiros de Castro em sua tupinologia, indicando que o caminho explicativo para o sentido da ação política e do poder será mesmo seguido pelas “linhas de fuga”. O acento está na abertura à alteridade. Seu corolário é um movimento constante de extensão e contração de coletivos e pessoas, que pode ou não produzir momentos de cristalização de unidades, aos moldes do Estado, abrindo espaço para uma possível política de representação. Não se deve perder de vista que tais momentos também carregam o sentido da impermanência e transição. E o autor nos demonstra que foi por congelar este instante pausado no tempo e no espaço que Pierre e Hélène Clastres encontraram um paradoxo e uma contradição.

Artionka Capiberibe é antropóloga, professora da EFLCH/Unifesp e autora de Batismo de fogo: os palikur e o cristianismo, Annablume, 2007.

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