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Engenharia

Dominando a tecnologia de produção de gálio

Em novembro do ano passado, um grupo de pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) colheu as primeiras gotas densas e prateadas de gálio de alta pureza. Foi um momento importante. Naquele instante, o Brasil passava a dominar a tecnologia de produção em escala laboratorial de um metal estratégico na indústria de informática e de telecomunicações e de alto valor comercial. Até então, por falta de conhecimento científico e tecnológico, nunca houve meios de aproveitar o gálio, mesmo que o país seja um grande produtor mundial de alumínio, que é retirado do mesmo mineral, a bauxita.

Essa pesquisa – Construção e Operação de Usina Piloto para Recuperação de Gálio a partir do Licor de Bayer – se desenvolve desde 1996, no âmbito do Programa de Parceria para Inovação Tecnológica, da FAPESP, e é realizado por pesquisadores da Poli/USP em parceria com a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA). Seu valor total é de R$ 627 mil, divididos meio a meio pela FAPESP e CBA. Os resultados representam, de imediato, a viabilidade de obter gálio como subproduto do processamento do alumínio a partir da bauxita

Para isso, é usado o chamado licor de Bayer, um líquido vermelho-escuro formado em uma das etapas iniciais da purificação do alumínio. O impacto desse trabalho poderá ser notado em pouco tempo. Francisco Afonso Albuquerque, engenheiro da CBA que acompanhou a pesquisa com a USP, calcula que uma usina piloto semi-industrial para retirada do gálio do licor de Bayer pode entrar em operação num prazo de um ano e meio, já contando as costumeiras dificuldades técnicas que surgem na ampliação da escala de produção.

“A extração de gálio não apresenta custos elevados, não interfere no processo de obtenção de alumínio e fornece um produto de cotação bastante elevada no mercado internacional”, diz Albuquerque. Cotado a um mínimo de US$ 400 por quilograma, o gálio custa cerca de duas mil vezes mais que o alumínio ou quatro O gálio: metal com valor comercial duas mil vezes maior que o do alumínio mil mais que o mais puro minério de ferro. A autonomia na produção desse metal poderá, assim, dentro de alguns anos, gerar um item de alto valor agregado na pauta de exportações brasileiras, além de abastecer o mercado interno.

Já a curto prazo, facilita o desenvolvimento de pesquisas de tecnologias avançadas. O gálio é usado na fabricação de chips (ou microprocessadores) para computadores dealto desempenho, telefones celulares, satélites e detectores de foguetes. Além de ter um enorme potencial no mercado de semicondutores, é indispensável em células solares como as da sonda espacial Galileu, que chegou a Júpiter, a 780 milhões de quilômetros da Terra.

Forças contrárias
O domínio tecnológico da produção de gálio exigiu não apenas tempo e apoio financeiro, mas, também, doses renovadas de paciência, humildade e criatividade. “Por diversas vezes, não conseguimos avançar nas linhas de pesquisa mais promissoras”, conta o engenheiro metalurgista Arthur Chaves, professor do Departamento de Engenharia de Minas da Escola Politécnica, que coordena a pesquisa. Por se tratar de uma matéria-prima de aplicações nobres e elevada cotação, as empresas que o produzem, sobretudo na França, na Alemanha e na Austrália, sequer cogitam a possibilidade de passar adiante a tecnologia de fabricação.

A colaboração foi nula também dos fabricantes dos reagentes químicos empregadosna extração do gálio, que cediam amostras para testes em pequena escala, mas recusaram-se a vender em quantidades maiores, à medida que a pesquisa progredia. “Enfrentamos a resistência de grandes empresas multinacionais que não queriam que nosso trabalho avançasse”, diz Arthur Chaves. O saldo final, porém, é bastante positivo. Os pesquisadores criaram alternativas nacionais à altura para os reagentes importantes, que os fabricantes resistiam em fornecer, e inovaram em diversos pontos do processo de recuperação do gálio.

O professor Arthur pode se considerar satisfeito também por outras razões. A partir da equipe formada para o Projeto Gálio, tomaram forma outros trabalhos na mesma linha de reciclagem e reaproveitamento de resíduos, a exemplo da recuperação da areia do Rio Tietê, já viabilizada em escala comercial. Em setembro, os resultados da pesquisa, que já renderam um pedido de patente, em co-autoria da USP com a CBA, serão apresentados em um simpósio sobre reciclagem e tecnologias limpas em San Sebastian, na Espanha. Resultados tão grandiosos tiveram uma origem convencional. Os pesquisadores da USP partiram do licor de Bayer, o mesmo tipo de material usado no mundo inteiro como fonte de gálio.

O licor de Bayer, um dos primeiros resíduos do processo, contém uma elevada concentração de alumínio, além de outros metais, entre eles o gálio, o zinco e o vanádio, em proporções bem menores. Trata-se, de resto, de um caminho clássico e ainda não superado para a purificação do alumínio, criado em 1895 pelo químico austríaco Karl Joseph Bayer. Como o licor de Bayer retorna ao processo industrial, para dele se retirar o máximo possível de alumínio, os pesquisadores adotaram como princípio básico do trabalho que as características químicas desse material não poderiam ser alteradas, sob o risco de tornar o processo antieconômico, quando deixasse a escala laboratorial. O licor de Bayer seria desviado do processo industrial para dele se extrair o gálio, mas voltaria nas mesmas condições, ainda que, obviamente, sem aquele metal.

Criando alternativas
Os problemas começaram já na etapa seguinte, quando o licor de Bayer deveria ser submetido à ação de solventes ou de resinas especiais, que, cada um a seu modo, separam o gálio do restante da solução. Como os fabricantes se recusaram a fornecer essas substâncias em grande quantidade para o laboratório da USP, os pesquisadores verificaram que seria inevitável desenvolver novas matérias-primas e caminhos inovadores. Preferiram desenvolver as chamadasresinas de troca iônica,um dos meios possíveis para a extração de gálio, por duas razões básicas: já havia especialistas nessa área no Brasil e os solventes, que representam o outro caminho habitual, têm um enorme potencial poluente. O tempo mostrou o acerto da escolha.

“Acreditamos que com as resinas poderemos obter um produto de maior pureza já nas primeiras etapas do processo”, assinala o químico Waldemar Avritscher, um dos pesquisadores do projeto. Nessa etapa da pesquisa, o laboratório da USP contou com a colaboração do Instituto de Macromoléculas do Rio de Janeiro, que projetou uma resina especial para extrair o gálio do licor de Bayer. À primeira vista, parece areia, embora, claro, seja muito mais refinada. Trata-se de um polímero do grupo dos poliacrilatos, que funciona como um esqueleto ao qual, em pontos determinados, juntam-se ramificações formadas por um grupamento químico específico, o radical amidoxima, que tem grande afinidade pelo gálio.

Há décadas, lembra Waldemar, os livros de química apontam os compostos que reagem com o gálio. “O problema era construir um polímero com um radical que fosse estável, funcionasse bem e tivesse a granulometria adequada”, diz ele. De modo mais simples: a resina não poderia ser muito grossa nem muito fina. Além disso, teria de extrair apenas o gálio, sem retirar o alumínio (os dois metais são parecidos quimicamente), e funcionar nas condições próprias do licor de Bayer, que é extremamente alcalino. Correram anos de testes e ajustes até chegar ao ponto ideal. Depois, uma inovação puxou outra.

Para retirar o gálio absorvido pelo polímero, em vez de usar substâncias ácidas, como normalmente é feito, os pesquisadores desenvolveram outro líquido, bem mais simples e seguro, com ótimos resultados. O gálio é, então, filtrado e passa por mais duas resinas, desta vez comuns (uma é usada para purificar suco de laranja, a outra para tratar água) até se tornar um metal líquido a temperatura ambiente, como o mercúrio. Ao avançar para a etapa industrial, a pesquisa deverá se beneficiar com o alto teor de gálio verificado na bauxita brasileira.

Segundo Waldemar, enquanto a média mundial situa-se entre 30 a 40 partes por milhão (ppm) de gálio, a bauxita retirada das minas de Poços de Caldas (MG), a mais usada nos experimentos, apresenta de 80 a 110 ppm (o teor de alumínio é cerca de 2.000 vezes maior). Além disso, o licor de Bayer, numa etapa intermediária de processamento da bauxita, é um material abundante nas refinarias de alumínio. O caminho, enfim, está aberto.

Círculos cor-de-rosa
O projeto de recuperação de gálio a partir dos resíduos da bauxita tem um colorido peculiar. De tempos em tempos, os pesquisadores coletam amostras dos líquidos que se formam durante o processo de extração do metal, misturam com uma solução com corante e pingam, gota a gota, em tiras de papel divididas em quadrados devidamente numerados. De acordo com o teor de gálio da solução, formam-se círculos cor-de-rosa, de uma tonalidade mais acentuada, se o teor do metal é elevado, e mais tênue, se a concentração é baixa.

Se não houver metal no líquido examinado, o corante não vai reagir e o papel permanecerá branco. É possível, assim, acompanhar instantaneamente o teor de gálio durante as etapas de purificação e, quando necessário, ajustar o processo. “Essas tiras são o nosso principal instrumento de trabalho”, diz o químico Waldemar Avritscher. Simples e eficiente, o teste de gálio, como é chamado, é uma das inovações surgidas durante o desenvolvimento da pesquisa.

Sua história é interessante. Já se sabia, há décadas, que um corante vermelho-vivo, a rodamina, reage com o gálio. O professor Alcídio Abrão, consultor do projeto, reuniu essa informação com os princípios do chamado spot test , um método criado no Brasil pelo químico austríaco Fritz Feigl, que identifica metais pingando reagentes sobre as amostras organizadas em uma placa de vidro. A partir daí, bastou adaptar o teste para o papel e ajustar a solução com o corante. O componente-chave é o benzeno. É ele que extrai a rodamina com o gálio para formar os diferentes tons de cor-de-rosa.

Quando não há gálio, o benzeno não se mistura com o corante, permanece sobrenadando no líquido e se mantém transparente. Trata-se, evidentemente, de um teste semi-qualitativo, puramente visual. Os resultados serão verificados e detalhados em seguida, por meio das análises qualitativas realizadas no espectrofotômetro de absorção atômica, um equipamento totalmente automatizado, de elevada precisão.
O professor Arthur Chaves, de 53 anos, é engenheiro metalurgista graduado pela Escola Politécnica da USP, onde fez mestrado e doutorado na área de tratamento de minérios. É professor titular do Departamento de Engenharia de Minas da Poli/USP e trabalha, desde 1990, em pesquisas de reciclagem e reaproveitamento de subprodutos da mineração.

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