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Resenha

Dos crimes de um governador no Antigo Regime

Vila Rica em sátiras: Produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732 | Adriana Romeiro | Unicamp | 336 páginas | R$ 60,00

Eduardo CesarÉ próprio da sátira, enquanto gênero literário ou forma de ver o mundo que herdamos dos antigos gregos, nos colocar diante de situações-limite, por vezes absurdas, em que somos capazes de rir e, ao mesmo tempo, nos reconhecer e indignar. Do ponto de vista da história e do conhecimento científico, as produções humorísticas são valiosos índices que revelam, apesar de efêmeros, as feições imprevisíveis e estranhas de algo que é aceito, socialmente ou por determinado grupo, como bastante familiar, por mais injusto, autoritário e discriminatório que possa vir a ser, como bem adverte Elias Saliba em artigo sobre as possibilidades de uma história cultural do humor.

A boa notícia é que os estudos sobre a sátira e o humor no Brasil, ainda escassos, é verdade, ganham uma fundamental contribuição com a obra de Adriana Romeiro: Vila Rica em sátiras: Produção e circulação de pasquins em Minas Gerais, 1732.

Primeiramente, por disponibilizar precioso conjunto de papéis satíricos que circulou no ano de 1732, em Minas Gerais e na própria sede do império português, com o propósito, aparentemente inofensivo, de “divertir” os povos e “festejar” a partida de dom Lourenço de Almeida, após sua longa e controversa atuação à frente do governo da mais preciosa “joia da coroa”, a capitania das minas do ouro e dos diamantes.

E, igualmente importante, pelos dois capítulos que nos colocam diante de uma expressiva cultura dos pasquins e da denúncia aberta que é feita, no caso específico dos papéis de Vila Rica, dos abusos de autoridade, do enriquecimento ilícito e demais crimes cometidos pelo governador, cuja culpa é confirmada pelas fontes daquela época, como asseveram as pesquisas realizadas pela autora em diferentes acervos, com destaque para a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino.

Esse conjunto, que se encontrava até agora praticamente esquecido na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, é composto por cinco peças, a começar por uma carta supostamente dirigida a dom Lourenço dando conta das sátiras que contra ele se faziam, mas que ao final se transforma em verdadeiro capítulo de acusação. E as outras, mais galhofeiras e cômicas, que encenam, metaforicamente e em tom de paródia, a morte e as exéquias fúnebres do governador, prática bem assimilada na cultura política do século XVIII, acentua Romeiro, em que o enterro simbólico de um mau governante podia ser festejado, inclusive, com grande alarde.

Mas o que teria feito o político para justificar tamanho “escândalo” e não ter, por parte da coroa, após a circulação das sátiras, o reconhecimento almejado pelos serviços prestados ao longo dos 11 anos em que administrou a capitania? Tinha a seu favor poderosos fatos: a manutenção da paz em Minas desde a revolta de 1720, que destituiu do mesmo cargo o conde de Assumar, e a extraordinária elevação das rendas da Fazenda Real, com a arrecadação dos quintos sobre o ouro e a arrematação dos contratos de obras públicas no território da capitania.

Seus crimes não foram poucos e o beneplácito da coroa foi conseguido, por isso mesmo, a preço de ouro. Conforme aponta Romeiro, ficou patente, à época, a “omissão” do governador em relação à descoberta dos diamantes e seu possível envolvimento no contrabando dessas pedras e do próprio ouro. Não foram poucas as vezes em que dom Lourenço excedeu sua própria jurisdição, distribuindo cargos a homens dispostos a todo tipo de violência em sua ambição desmedida pelas riquezas da terra e, principalmente, pelos privilégios que faziam girar a roda da fortuna naquela sociedade que se nutria da instabilidade para consolidar e constituir suas redes de poder. Aqui também reside a importância da obra de Adriana Romeiro e dos papéis satíricos de Vila Rica. Não apenas pelo riso, que certamente provocaram, mas pelas graves denúncias que levaram o próprio rei ao constrangimento e que nos chegam hoje, corroboradas pela história, devido às “alusões precisas a indivíduos, circunstâncias e eventos”. A autora ainda nos brinda com um apêndice de notícias biográficas que, juntamente com os demais achados, nos dão a dimensão concreta do que verdadeiramente se esconde por trás das práticas políticas e dos expedientes utilizados pelos poderosos de ontem e de hoje para burlar a justiça comum, dar vazão aos seus vícios e tomar de assalto o poder.

Maria Marta Araújo é historiadora do Programa de Pesquisa e Edição Coleção Mineiriana da Fundação João Pinheiro e autora de Com quantos tolos se faz uma república: Padre Correia de Almeida e sua sátira ao Brasil oitocentista (Editora da UFMG).

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